A novela: cap. IV

Ao chegar do outro lado da rua Juliano olhou em frente e reparou que não dava pra ver dali o fim do parque. Devia ser grande pra mais de metro. Não estava com pressa. Uma caminhadinha ia fazer bem, já que tinha passado o tempo todo até ali sentado e a viagem até a casa do primo ainda ia demorar mais um eito. Pegou o carreiro que ia pra direita. Ele só queria ver as coisas. E queria saber naonde que aquela vereda ia de dar. E conhecer as coisas da cidade. Que mal tinha dele chegar um pouco tarde se o primo já tinha feito ele esperar lá tipo um bobo quase a manhã inteira?

Caminhou por uma boa meia hora e o parque não terminava. Não que Juliano estivesse preocupado com a passagem do tempo. As árvores eram bem altonas, tinha que quase quebrar o pescoço pra ver a copa delas. Muitas pessoas estavam correndo, vestiam calções e tênis. Eram homens, mulheres, jovens e até uns velhinhos viçosos e cheirosos. Tinha gente de todo tipo, gordinha inclusive.

Debaixo das árvores, em lugares sombreados, uma gentarada dormia em colchões sem capa, em papelão, ou no gramado mesmo. Homens, mulheres, moços e velhos. Barbados, negros, morenos. Uns sem camisa, só de calça e chinelo. Os ossos protuberando na pele, humanos desidratados, a pele encardida e rançosa. Alguns empurravam, capengando, carrinhos de supermercado. Pombos pinicavam o chão. Aquele povo que corria nem bola dava praquele bandão esfarrapado. Também tinha um pessoal apressado, bem vestido, em perfume e corte de cabelo modernoso e tudo, levando a vida deles pra longe dali, na pressa do compromisso.

Sentou o cansaço perto do parquinho. Idosos e outras gentes brincavam em equipamentos onde se balançavam ou puxavam alavancas. Brinquedos para os grandes? E aqueles malucos com carrinho de mercado, obviamente roubados? O que tavam azedando com aquilo no meio da cidade? Pra onde iam com as coisas que carregavam? E que tralha era aquela que levavam dentro de sacos plásticos? Deviam de tá catando lixo reciclável pra vender, latinha, plástico, essas coisa. Não devia ter problema morar no parque.

Uma mulher se balançando lateralmente em um dos aparelhos de ginástica. Juliano tinha o olhar fixo nela. Estava longinho, daí que a mulher nem ia se dar conta que ele a media, mais preocupado com os gestos, a coreografia, do que com a ausência de seios ou a finura das pernas sem coxas. Talvez ele até gostasse de mulher. Ele não sabia dizer, se perguntassem. Porque nunca soube de mulher que tenha gostado dele. E ele estava ali, sentado naquele banco, admirando uma mulher anônima se exercitando, quando sentiu o fedor. Alguém tinha sentado do seu lado. Podia até gostar, se precisasse. Mas não precisava.

O homem na outra extremidade do banco estava olhando fixamente Juliano, que fumava. Em seguida pegou com as mãos tremendo um cigarro que foi oferecido pra ele.

– Tem fogo?

Juliano vasculhou o bolso e entregou o isqueiro. O fedorento agradeceu. Estava fazia dias já só na xepa.

– Como é isso? – Juliano.

O homem explicou que tinha que ir juntando bitucas. Depois abria e ia guardando num pacotinho aquele restinho de fumo que sempre ficava ali no final, quase no filtro. Era um fumo já fedido, com gosto de baba azeda e carvão, mas dava pra matar a vontade. Mas não tinha pra bater um cigarro assim, daqueles inteiros, feito de fumo novo e cheiroso. Mesmo que fosse um desses cigarros jaguaras do Paraguai.

Tirou uma garrafa plástica do saco preto que trazia. Deu uma beiçada breve, como se só molhasse o lábio, e ofereceu pra Juliano.

– Das boas.

Juliano negaceou. O perfume de esgoto insistia:

– Experimenta, rapá. Tô vendo que tu gosta do troço. Tá aí me lambendo os beiço.

Não tinha pinga naquela tarde de banho de cachoeira, porque a gurizada sabia fazer merda, mas não daquelas, daquelas forte de comprar um litro de cachaça pra tomar sem mistura doce. Nunca viu disso. Viu eles tomando vinho, licor de menta com gasosa de limão, mas cachaça pura ele nunca tinha visto não, de fé. Tomar cachaça pura era coisa de véio bêbado que vive nos boteco e que depois sai trupicando nas calçada e caindo nas valeta.

Juliano pegou. Segurou um pouquinho olhando pra garrafa. Ergueu a cabeça, olhou pros lados, como tivesse medo de alguém conhecido ver o que ele fazia. Levou na boca. Tinha um gosto de terra e feijão azedo no bico da garrafa. O homem viu que ele mal encostou a boca no líquido.

– Me tome isso aí de verdade. Parece uma bichona!

Juliano não viu jeito senão dar um gole longo praquele sarna parar de azucrinar com ele e sair logo dali.

Quanto tempo? Fazia uns quatro anos aquilo. Aquela tarde gostosa de verão que ele pegou a bicicleta e foi tomar banho de cachoeira e aprendeu a fumar com a gurizada da cidade. E depois daquele dia ele começou a fumar sempre que alguém oferecia e até começou a comprar cigarro depois de uns tempos, quando já julgou que era grande e podia fazer o que quisesse.

– Agora sim… e-e-e, também não vai me tomar tudo agora, que essa é especial.

O homem pegou o litro, guardou no saco e levantou. Deu com a mão, como quem diz um até mais, a gente se cruza.

Juliano olhou pra um lado pra ver uma coisa que desviou a atenção dele e quando voltou o rosto pro lado que o aroma de gambá tinha rumado, o tal já tinha se escafedido.

Pensando bem, Juliano podia era estar em casa numa tarde quente daquelas. O que estavam me fazendo? Deviam de estar combinando de ir tomar banho lá na cachoeira ou iam estar na praça, comendo laranja e batendo papo. E por um instante Juliano quis voltar pra casa. Esqueceu por que ele tinha vindo pra cidade, que lá onde ele morava não tinha serviço e que tinha brigado com a irmã e que ele era um encosto pro pai e pra ela. E que ele disse pro pai “eu vou embora dessa cidade”, e o pai respondeu “então se suma, pegue teu rumo, a porta da rua é serventia da casa”.

E ele ali sentado naquele banco, passando um calor desgraçado naquela cidade. E ainda não tinha visto um rosto conhecido que fosse. Ninguém tinha dado oi pra ele. E não era como se ele pudesse virar as costas e voltar pra casa. Bom. Até que ele podia. Dinheiro ele tinha, né, pra passagem de volta.

E aí veio, num crescendo. E uma preguiça foi deitando o corpo dele naquele banco sombreado. Esperava que passasse aquela dorzinha logo. E com as pálpebras pesando, fechou os olhos, acomodando a cabeça na bolsa pequena em que trazia suas roupas e o grosso do seu dinheiro, e lembrando da rede na sombra do pé de Uva do Japão do quintal de casa.

A novela: continuação (ou não)

Mais um trecho da novela em que venho trabalhando. Esse é um capítulo em primeira pessoa. Tem capítulo em primeira e outros, a maioria, em terceira. Vamos ver como fica no conjunto depois. Alguns trechos tiveram mais trabalho em cima, outros ainda estão em primeira versão. Por isso não tenho publicado eles em sequência (além disso o cap. IV tá bem longo, aí não sei se vai dar pra publicar aqui, e também ainda não achei jeito de segmentar a coisa). Queria ter uma dinâmica industrial de trabalho, do tipo redigir todo o texto, e só depois ir parte por parte relendo e reescrevendo. Não consigo fazer isso. Até porque não tenho uma disciplina beneditina de produzir coisa nova todo dia. Tem dia que nada sai, aí eu reviso, releio, reescrevo. Quem sabe um dia eu consiga me organizar e passar um dia, dois, uma semana escrevendo por longos períodos (nunca consegui escrever continuamente por mais de duas ou três horas). Mas pra um texto que começou com cinco páginas, e já está com sessenta e pouco, acho que cresceu um tanto.

Chega de lero-lero. Boa leitura!

Vir pra capital, olha só que ideia de jerico. A mãe tivesse viva nunca que ia de achar que isso era ideia boa de se ter. Não seje bobo, ela ia me dizer, cê não perdeu nada lá. E no final das conta ela ia tá com a razão, porque essa sempre é que tava com ela. Como daquela vez…

Dizia ela, não, não me vá acampar com a piazada. E eu dizia que ia, que eu sabia acampar e que eu ia junto com eles, que tinham me convidado mesmo, que o primo Vilson ia junto e tudo. Ele chegou a ir lá em casa e dizer pra mãe, tia, deixa o Juliano ir junto que eu cuido dele. Eu disse que sabia me cuidar sozinho. E ela acabou deixando porque o Vilson era responsável, já tinha filho e tudo e já trabalhava. Pense, ele tinha largado o colégio antes de terminar porque teve que casar com a menina, que também largou o colégio, e foram morar os dois numa meia-água que tinha atrás da casa da mãe dele e que acabou virando quarto pros dois e o nenê. Hoje ele trabalha numa agropecuária e ela só cuida das criança. De que adianta ter estudo, ele diz, se não tem emprego pra gente aqui? O cara com estudo ou sem estudo vai ganhar a mesma coisa na hora de capinar um terreno ou carregar saco de milho. O Vilson manja, eu te disse.

Eu fui. Ia dormir na barraca do Vilson. A piazada brincava que ele ia comer meu cu. Claro que não ia, porque o Vilson era o meu primo e era casado. Não era que nem o Nilton, que todo mundo dizia que dava o cu pra piazada nas pescaria e nos acampamento, e que era até por isso que convidavam ele, não porque ele fosse um bom pescador, que diziam que era também, mas porque ele dava pra todo mundo. Eu nunca tinha entendido como essas coisa funcionava. Eu meio que imaginava, porque uma vez eu tinha achado umas revista velha lá em casa, com mulher pelada, e uma outra de sacanagem, uma mulher e um homem fazendo aquelas coisa lá. Eu vi, fiquei de pau duro e larguei a revista lá. A mãe dizia que ficar de pau duro era feio e que ficar na frente dos outros era mais feio ainda. Uma vez ela me viu de pau duro por que uma filha da vizinha tinha ido lá em casa tomar chimarrão e ela tava com um shortinho bem curtinho que praticamente aparecia a polpinha da bunda e mostrava tudo aquelas coxona bonita que ela tinha. Eu nem olhei muito que eu sabia que era feio, mas a mãe viu antes que eu já tava era pronto. Daí que ela veio me explicar que era feio, e que se eu sentisse me acontecer de novo perto de uma mulher era pra eu sair de perto, desviar o olhar, se distrair, sei lá, fazer qualquer coisa, mas parar de olhar e se mexer, que logo amolecia. O pai me falou a mesma coisa, mas lá do jeito dele de falar rápido e uma vez só, que ele não era de ficar repetindo. Se meu pai precisasse repetir a mesma frase duas vez ele já ratiava. Ele não podia só repetir. Ele tinha que reclamar antes, e só depois repetia. Era um negócio curioso, pensando agora. Vou falar isso lá pra ele qualquer dia. A mãe, não, que a mãe falava quantas vez era preciso falar, três, cinco, todo dia. Por vários mês ela falava até que ela mesmo enjoava da história, ou pra ficar bem gravado na minha cabeça. Era o que ela dizia. Eu vou ficar repetindo até você entender, porque o teu pai tem preguiça até pra falar, e ele só fala uma vez e quer que você entenda. Pra você me entender as coisa a gente tem que falar quantas vez for preciso. Se eu não te ensinar as coisa, a vida vai. E a vida não tem paciência, e vida ensina com dor, filho. E o pior é que era verdade mesmo, a mãe é que sabia das coisa da vida. A vida vai ficar te dando paulada na cabeça até você entender, ela dizia. O pai dela tinha fugido com uma índia quando ela era bem pequena, e ela largou o colégio pra trabalhar, porque a vó não vencia sustentar a família sozinha. A mãe tinha sofrido e sempre lembrava essa história pra gente, porque ela queria mostrar que tinha se virado com a mãe dela e cos tio e tia e que se ninguém teve estudo foi porque não deu pra ter, não era por vagabundagem ou burrice, que vadio e tongo não tinha na família.

No acampamento foi tudo muito legal de tarde. Além de eu e do Vilson, foi o Alcemar e o irmão dele, o Vilmar, e o Zeca e o Sílvio, dois primo. O pessoal armou as barraca, esquematizou a fogueira e eu fui junto com o Alcemar catar lenha. Eu tinha levado minhas coisa de pescar também e falei que ia pegar lambari. Ia mesmo. O Nilton não tinha ido, porque o Márcio não tinha. Era o que diziam. O Márcio não foi e o Nilton também não. A gente fez um monte de lenha pra ficar pra noite toda e depois foi pra barranca do rio armar nossas varinha.

Tinha muito espaço ali, naquela ceva. Era um lugar que o pessoal da região gostava de usar e que parecia que os peixe gostava também, porque sempre dava peixe, até uns maiorzinho, tipo jundiá, bagre, saicanga, traíra, cará, tambu. Não que eu conheça esses tipo de peixe tudo só de olhar. Eu sei o que é o lambari, que é pequeno, sei que o bagre tem bigode e sei que o jundiá não tem escama. O resto é peixe. Que por mais que eu goste de ir pescar, eu nunca fui lá muito bom nisso não. Eu sei dos nome, como sei que existe canela, cedro, cerejeira, imbuia, pinus, eucalipto, mas que se você me pedir pra ir no mato e achar a árvore eu só sei qual é o pinus e o eucalipto, que qualquer coió sabe o que é essas árvore. E pensar que nem são daqui, tipo, daqui mesmo, nativa, como dizem. Alguém trouxe e agora tem por todo canto plantação dessas árvore pra reflorestamento. Os fazendeiro prefere plantar pinus e eucalipto pra vender. Você planta e deixa lá as árvore crescendo, e elas vão crescendo mesmo, até chegar, tipo uns dez, vinte ano depois, eu acho, só sei que é pra mais de ano, e na hora que vai cortar você vende e dá um dinheirão, as madeireira vem e corta e leva embora, nem com isso você precisa se preocupar. Olha só! Pra você ter uma base. Mesmo lá, naquele matão que a gente tava pescando, perto da chácara de um tio do Vilmar, tinha um pinus ou um eucalipto por perto.

Ficamos um par de tempo ali, dando banho nas minhoca e comida pras butuca. Eu peguei só uns lambarizinho. Dois, pra você não dizer que eu tô mentindo. O Vilson pegou um cará, um bagre e um punhado de lambari. O resto do pessoal só lambari. Pra você ver, pescador mesmo, ali, era só o Vilson. O Sílvio era metido a pescador, e diziam que era mesmo, mas não tava com sorte. Tomemo uma garrafa de cachaça nessa brincadeira. Tá, eu ajudei só dando uns golinho assim, umas beiçadinha, que eu não sou lá da cachaça, e fui bebendinho porque me ofereciam.

O pessoal começou se recolher. O Vilson foi fazer o fogo pra esquentar a água pra fazer o café e o carreteiro, antes que anoitecesse e daí ficava mais difícil com pouca luz. Fui junto. Ajudei ele no que precisava e fiquei ali por perto. O pessoal chegou logo que escureceu, se abancaram, tomaram um gole de café, comeram um pedaço de cuque cada um e depois ficaram de papo e falando dos peixe que eles tinha pegado. Gavaram bastante o Vilson. Pra ele também o rio tava com pouco peixe, que ia jogar uma quirera lá depois pra ver se amanhã aparecia mais. Já tinha visto tarde melhor que aquela. Dava pra nada aqueles peixe mixuruco que tinham pegado.

O carreteiro que o Vilson fez foi de lamber os beiço. Charque, bem vermelhinho e molhado, pra comer com cuque é um negócio de louco, vou te falar. Eu comi até demais pro meu tamanho. Tomei um gole de café, logo depois da janta. E o pessoal ficou ali falando que a janta do Vilson tava tão boa que comeram tudo, que ele era entendido de cozinhar, que qualquer dia ele tinha que fazer aquele pernil de ovelha dele de novo, na próxima pescaria, que ele deixava dois dias pegando o tempero. E ele disse que ia arrumar uma paca pra gente comer. Que uma paca bem temperada, dessas de caça mesmo, era dez vez melhor que qualquer carneiro que a gente já tinha comido. E o Vilson fazia mesmo essas coisa, que o cara entendia, porque ele tinha trabalhado um tempo de peão numa fazenda lá dos interior, até que aconteceu dele achar melhor voltar pra cidade, que a mulher não gostava de ter ele longe de casa, que se precisasse dele, até a notícia chegar, podia ser tarde, e com criança pequena e tudo… ele voltou e foi trabalhar na agropecuária.

Nisso começou a me dar uns revertério. Sabe quando a gente sente que alguma coisa não se ajustou como deveria no bucho da gente, e parece que a comida fica se mexendo, como se ficassem conversando lá dentro, discutindo se vai voltar por baixo ou por cima? Pois os peido começaram e eu fiquei ligado que ia era sair por baixo mesmo. E acho que foi sorte, pensando melhor, que eu não sei se eles tavam me olhando por causa da minha cara de passando mal ou se tavam com outras ideia. Porque chegou uma altura da noite que o Zeca e o Sílvio me olharam meio de enviesado. Já tavam tudo mamado no gole, então que eles já tavam pensando bobagem. Foi quando a barriga ratiou e eu corri pro mato e foi só aquela água véia. Puta merda. Ter caganeira já é ruim, no meio do mato então é a pior coisa. Ainda mais de noite, que a gente tem que cuidar com o mato que pega pra limpar a bunda, que se pegar uma urtiga aí é que a cagada tá feita.

No outro dia eu acordei meio brancote. Deu tudo certo que acabei melhorando depois que o Vilson arranjou um chá de marcela que ele achou ali pelo mato. Ele disse que o chá era bom praquilo, e que tinha que tomar amargo mesmo. Dei umas bicada na água quente e aos poucos fui melhorando. Por volta do meio-dia eu já tava bom.

O pessoal passou o dia pescando. De manhã eu fiquei deitado na barraca, e de tarde tentei pescar um pouco, mas como eu não tinha almoçado, o Vilson assou um peixe na brasa, temperado só com sal. Eu tava de estômago vazio e não me concentrei, quando pegava na varinha os peixe já tinha comido as isca tudo. Daí que eu só dei de comer pros peixe. O domingo foi melhor, e o pessoal conseguiu pegar uns peixe dos bão e um punhado de lambari.

Quando eu cheguei em casa e contei pra mãe o que tinha acontecido ela só disse: eu te avisei. Tivesse ficado em casa não tinha acontecido nada disso.

Uma novela

Esse texto nasceu como um conto. Era a história de um jovem que ia pra capital em busca de uma vida melhor, mas acabava se envolvendo com pessoas erradas e passava uma noite na rua. Aí resolvi fazer o texto crescer, fiz o personagem passar duas noites na rua, apanhar de valentão, apanhar de guardador de carro, passar fome, ser assaltado etc. Além disso, a linguagem é extremamente coloquial, tanto do narrador, quanto do personagem, e essas duas vozes se misturam em vários momentos.

O bafo do asfalto e do cimento o envolveram quando saltou do ônibus e pôs os pés na capital. Chegava naquele dia quente de fevereiro, trazendo, além dos seus dezenove anos, uma pequena bolsa preta de mão com poucas roupas. Juliano segurava o riso dentro da boca desde que tinha visto já longe a linha de prédios crescendo no horizonte e ficando cada vez mais maior, até que se viu no meio deles e dentro de uma estrada que não dava pra sair. Veio querendo ver de tudo, querendo gravar o nome das coisas, o que estava escrito nas placas, nos anúncios, a cabeça virando tipo cata-vento prum lado e pro outro no meio de um redemoinho de estimulação.

Quando é que ele tinha imaginado que ia sair daquele fim de mundo? A mãe que sempre brincava com ele dizendo que nunca é que ele ia de virar alguém na vida, que só dava desgosto, que ainda ia era achar ele caído numa valeta um dia com formiga na boca, feito cusco sem dono morto com balinha de naftalina. Não, ele é que não ia dar esse desgosto pra mãe. Ela que tinha falecido duma hora pra outra por conta de um troço que deu que não teve médico que soube explicar lá na cidade. Nem em …, pra onde um vereador arranjou de levar ela de ambulância pro Hospital das Clínicas, furando a fila de espera e tudo. Foi e voltou e não teve jeito. Ia ter que voltar pra fazer mais uns exames, mas acabou nem dando tempo do remédio fazer algum efeito, porque a mãe acabou falecendo dali dois dias depois que tinha voltado de viagem. O pai ficou o velório inteiro dizendo que tinha avisado que não era pra ela ter ido, que só cansou a coitada. Que se ia morrer mesmo que pelo menos morria descansada. A mana Eulália até quis dizer pro pai que a gente tinha que tentar alguma coisa, que não adiantava de deixar a mãe na cama daquele jeito, que os médicos lá da cidade não prestava, que nem olhavam pra cara da gente, e que era uma coisa boa que o Dr. Clóvis quis fazer, ele só queria ajudar, mas não sabia que tava atrapalhando. Ele ia sair pra prefeito logo, logo e que ajudar a mãe foi só uma ajuda que ele fez pra gente pra depois pedir voto, o pai emendava. Pois eu dava até dois votos pra ele se fosse o caso, porque ele ajudou a mãe naquela vez, deu um óculos novo pro pai numa outra e também me ajudou  a escapar do quartel. Imagina se ele fosse pro quartel em …? Não ia de dar certo, que a mãe já estava até com medo que os milico iam de judiar muito do filho dela. Que mesmo que fosse bom pra ele virar homem, virar gente, aprender alguma profissão, quem sabe virasse motorista ou mecânico, como o pai dela tinha virado quando foi pro quartel, era uma coisa, mas todo mundo dizia que o quartel era outro agora e que nem quarentena tinha mais, e que o soldado podia ir pra casa todo final de semana se quisesse. Era o que a mãe dizia. E ele ouvia e até se olhava no espelho pensando nele vestido de farda bem passada, aquele verde-oliva bonito, que a mãe não ia deixar o filho dela andando por aí de farda amassada. Mas imagina se ele é chamado? Mas deu que quando ele foi se apresentar no quartel, passou o dia respondendo umas perguntas, falando com cabo, com sargento, com tenente, até com major ele falou aquele dia. No final do dia o cabo chegou pra ele e disse que podia ir embora, que ele tava dispensado e deu os papéis na mão dele. Tava dispensado, Juliano perguntou, meio ressabiado, meio com medo de que fosse mentira, tava dispensado mesmo, perguntou de novo só pra ter certeza, e era verdade, podia ir embora, e ele foi, sabendo que a mãe ia ficar feliz com aquilo, e que, tá, talvez ele até queria ir pro quartel. Se imaginava chegando em casa na sexta de noite todo bonitão de farda lisinha, as botina brilhando, o boné cobrindo a testa e a mãe recebendo ele toda faceira e contando que tinha feito um cuque pra esperar ele e umas bolacha pra ele levar de lanche pra comer durante a semana.

Mas agora a mãe já tava morta. E ele ali na rodoviária. Com a bolsa na mão, procurando o primo que disse que ia ir pegar ele. Era uma gentarada indo pra lá e pra cá, carregando malas, caixas, embrulhos, se abraçando, se reconhecendo e os ônibus chegando, despejando aquele povo todo ali na boca da rodoviária e logo se indo embora de volta. Juliano olhou no entorno, sem ver cara conhecida: cadê o Cristiano?

Cristiano disse que a cidade era boa de morar, bastante serviço, que quem gostava de trabalhar não ficava sem nada pra fazer. Juliano que aparecesse, nem que fosse só pra conhecer a capital, fazer uma visita. Já com a dispensa do serviço militar, nem pro quartel ele serviu mesmo, pegou mala e cuia e embarcou num ônibus da Unesul que catingava uma mistura de produto químico com mijo velho de gente. Cadê o parente que tinha ficado de buscar ele, se perguntou já ficando meio zonzo com aquele fuzuê de buzina soando, pneu cantando, carro acelerando, gente falando, ônibus roncando, taxista gritando, gentarada falando, alto-falante avisando, e tudo o mais que acontecia em volta dele e ele não conseguia dar conta porque era muita coisa pra ouvir ao mesmo tempo.

Cadê o Cristiano?

Como dizer adeus quando se está fugindo II

Esse conto é uma variação sobre o mesmo tema, o sujeito que está fugindo de casa. Foi uma imagem que me ocorreu. O camarada dentro do ônibus, está indo embora, e quando o ônibus está na estrada ele tem um ataque de riso. E aí resolvi fazer um exercício metalinguístico com o outro conto anterior, em que ele foge de casa por ter abusado da sobrinha. Agora ele rapa as economias da família.

Sérgio olhou a lista de destinos, como se pensasse melhor na escolha que tinha feito semanas atrás. Quanto é o preço da passagem pra São Paulo? Tá, era uma cidade grande e tudo, mas lá seria fácil se entocar também. Sim, ainda tinha lugar no ônibus que saía às nove horas, o rapaz atrás do vidro respondeu. Tinha vendido o carro, tirado o dinheiro da poupança e feito um acerto na firma para pegar o Fundo de Garantia também. Toda a grana que pode arrecadar estava ali dentro daquela malinha preta que ele levava, junto com algumas mudas de roupa.

Ia ter que ficar fazendo hora ali na rodoviária, mas tudo bem, já tinha escurecido. Rejane, a esposa, não ia se ligar logo não. Era uma mulher esperta, ô se era, mesmo que ainda não tivesse descoberto o que ele tinha me aprontado. Quando descobrisse, ele já ia de-estar longe. Resolveu ficar por ali, na lanchonete. Tomava um café, comia alguma coisa pra encher o panduio antes da viagem e matava o tempo até dar a hora.

Olhou pra fora, nenhuma face conhecida. Cada um que entrava, se perguntava se vinha de-atrás dele. Não. Não conhecia aquele povo que ia entregando passagem e bagagem pro motorista lá embaixo e vinha subindo, marca de saudade já no rosto, procurando o lugar e se abancando pra enfrentar a noite de viagem até São Paulo. Sérgio fechou a cortina e reclinou a poltrona. Não conhecia ninguém, felizmente, senão já iam vir pra cima dele cheios de pergunta.

Ele tentava, meu. Ele tentava ser gente. Ele tentou fazer o que era o certo. Não que não soubesse. Não que sua mãe não tivesse ensinado pra ele, dito milhões e milhões de vezes, meu filho, não faça tal e tal coisa, é assim e é assado que a vida funciona, escute a tua mãe que já sofreu muito na vida. Talvez tentando fazer dele um homem melhor do que o pai dele era ou do que o pai dela tinha sido, melhor do que todos os lazarentos que ela conheceu e que fizeram ela sofrer. E ali estava ele, fazendo uma mulher sofrer. A Rejane ia se tocar logo que ele tava indo pra São Paulo. Ele já tinha trabalhado lá de jardineiro por uns anos, sabia como conseguir serviço. Gente do sul conseguia emprego fácil. E agora ele já conhecia as agências.

E fora o piá dele, que era pequeno demais ainda pra entender tudo que ia acontecer, e um dia ia dizer de boca cheia pra todo mundo que o pai dele era um filho de uma puta. Numa dessa era até bom ele tá indo embora. Se bem que não era coisa boa uma raiva assim, uma coisa doída dessas por causa de um pai. Mas é que… puta merda… por que ele era assim?

Tá, talvez um dia, sei lá. Quantos anos Rejane ia precisar pra perdoar ele? Bem, porque não era uma coisa assim fácil, ele chegar e dizer pra ela, olha, desculpa e tal, te amo e tudo, sei que caguei no pau, sei lá o que me deu. O motorista acionou a ignição e o ônibus inteiro chacoalhou, passando a roncar baixinho. Era um negócio que eu precisava fazer sabe, eu precisava me dar aquela aventura. A gente tinha já conversado várias vezes sobre ir embora e você nunca tinha topado. Aí eu fui sozinho. A tua mãe, você dizia, o emprego bom.

Descia agora. Voltava correndo pra casa antes da Rejane perceber que ele teve longe: olha, amor, precisamos conversar. Porra! Ele já tinha pensando mil vezes nessa solução e cada vez que pensava nela o final era sempre a cara branca de polaca da Rejane ficando vermelha e vermelha conforme ia se explicando até que ela pegava a primeira coisa que tava ao alcance da mão e jogava na cabeça dele. E ele que não era bicho de sangue frio… ia ser uma confusão danada. Daí o filho ia abria a goela com a confusão, os vizinhos iam chamar a polícia… Essa sucessão de pensamentos foi pontuada por um soco no braço da poltrona. O soco foi forte o suficiente para que a senhora que estava sentada ao seu lado o olhasse, de soslaio. Ele abriu um sorriso que dizia, desculpa, não sei o que me aconteceu, está tudo bem, não vai se repetir. A porta se fechou e o ônibus começou a ser manobrado para fora da rodoviária, tomando as ruas de Porto União, União da Vitória e o caminho da BR476. Podia ter falado a verdade… Não podia.

Agora não dava mais. Agora estava decidido. Ela ia descobrir quando? Quando ele não chegasse em casa no dia seguinte? Ele já tinha dormido fora sem avisar várias vezes, e várias vezes tinham brigado e ela tinha aceitado ele de volta na cama depois de ficar uma semana braba. Ele era um imundícia mas ela gostava desse imundícia. Que ele podia ia fazer as festa dele, mas que se ele tivesse outra ela matava ele e ele nem ia saber como é que foi. O ônibus passou a ponte.

Podia ter se despedido do filho. Do pai. O pai era um merda de um cachaceiro, nem ia sentir falta dele. E talvez ele tivesse sendo mais corajoso que o pai dele. Talvez ele era mais homem, justo porque ele, Sérgio, estava fazendo o que o pai não teve a batata roxa pra fazer. E ele começou a sorrir com isso, um sorriso que se abriu assim que as luzes do ônibus foram apagadas, ao passarem pelo Hospital Regional. Rejane devia estar lá em cima agora, cuidando daqueles doentes todos. E ele com aquele dinheiro no bolso. E o sorriso virou uma risada, como se fosse uma golfada de ar que escapasse pela boca e nariz ao mesmo tempo, assustando de novo a senhora. Sérgio olhou pra cara dela. E ela sorriu, mostrando um brilhante dente de ouro, o que desencadeou a gargalhada. Ele não entendia por que, era uma vontade que vinha lá da barriga e crescia e quando ele viu estavam já no trevo e ele estava gargalhando alto e olhando praquela senhora com um dente de ouro. E ele agora estava gargalhando tão gostoso que era melhor se controlar antes que achassem que ele tinha ficado louco e deixassem ele na porta da clínica psiquiátrica que já iam passar. E o filho?

Mas e o piá? Não tinha pensado muito nisso… e o piá? Devia ter pensado nele antes de fazer a cagada. O piá… dali a pouco a Rejane arrumava outro caboclo, que o piá logo ia aprender a chamar de pai. Todo mundo dizia que o piá era a cara dele. Sérgio já não gargalhava mais. Exibia ainda um sorriso engessado, mais pelo esforço todo da gargalhada, enrijecendo os músculos da face, mas que ninguém via direito porque estava bem escuro dentro do ônibus. A cidade já tinha ficado para trás.

O piá ia pedir por ele por quanto tempo? Um mês, dois, dali a pouco Rejane ia dizer que o pai dele tinha morrido e que o caboclo novo era o pai dele agora e o menino ia aceitar aquele pai e ia esquecer dele. Porque era assim que as crianças eram, elas esqueciam logo dos adultos que sumiam.

Eu devia ter comido ela primeiro

Esse é um conto de 2012 (acho), que resgatei semana passada. Reli e gostei do potencial dele e do que eu queria com ele, testar uma linguagem mais adolescente e bem coloquial, já que o tema é um drama adolescente. Trabalhei nele na última semana. Claro que ele ainda precisa de retoques. Mas a proposta aqui é publicar work in progress mesmo, pra ver se alguém me dá um tipo de retorno . Às vezes alguém dá (Valeu, Cláudio!). Aí vai.

Era uma manhã de setembro em que a gente estava de bobeira pelo colégio, logo depois do intervalo, ali no pátio trocando ideia e tal, eu, o Alex, a Verônica e a Francine. Como o professor faltou, ficamos por ali, já que ir pra casa era a última coisa que eu queria naquela época.

O Alex e a Verônica saíram pra outro canto e nos deixaram sozinhos. Eu meio que entendi a intenção deles ao fazer isso, pensei lá comigo que se dane, que ela não era tão esquisita e que depois do meu primeiro beijo eu não tinha ficado com mais ninguém, já tinha mais de seis meses aquilo, e que, bom, a Fran era o tipo de menina pro meu bico, afinal de contas.

Ficamos ali um tempinho conversando, eu me acostumando com a ideia e tudo, até que percebi que ela foi se aproximando e dali a pouco pegou na minha mão. Olhei pra ela e nos beijamos. Foi esquisito pra burro. Ali no meio do colégio e tudo. Por mais que só a gente estivesse sentado no pátio naquela hora, ninguém estava vendo, o Alex a e Verônica estavam noutro canto e não viam a gente de lá. Ela era magrela e desengonçada como eu, só que baixinha, tampinha mesmo, quase um gravetinho que dava de pegar no colo de tão leve. Não que eu fosse lá muito diferente disso. Eu era mais alto e ela batia com a cabeça no meu peito. Mas a gente sentado isso não fazia muita diferença. E olhando assim bem de perto, ela tinha os seus encantos, se o cara olhasse bem, como aquelas mulheres que você vai se afeiçoando aos poucos, de repente uma beleza inédita aparece e a atração nasce. Naquele momento eu não pensei muito e beijei ela porque eu queria fazer isso, mesmo nunca tendo pensado seriamente naquilo. Ela não me dava tesão, pra te falar bem a verdade.

Engraçado isso. Naquele ano não me apaixonei por ninguém, eu andava numa totalmente diferente, sei lá. Meio que me conformei com minha situação de bocó. Não tinha a mínima condição de me achar capaz de despertar sentimentos em alguma menina. Daí que parei de pensar nisso. Eu era um cabaço e ia ficar assim por um bom tempo, pelo jeito. O beijo foi estranho, sem saliva, sabe? Meu primeiro beijo tinha sido molhadinho, com muita língua, gostoso pra burro e tudo, e o que tinha acontecido ali era outra coisa. Eu não entendia aquilo. Como podia não ser bom? Por que o beijo da Fran era diferente? Eu não sentia desejo naqueles lábios, como eu tinha sentido com a primeira menina que eu beijei – e como eu viria a sentir em outras mulheres depois – aquela coisa de o beijo ser tão bom que você não quer parar nunca mais de beijar, tá ligado? É massa quando isso acontece. Mesmo assim, dei mais algumas chances praquela boca, pra ver se a gente se entendia na sequência. Dali a pouco o Alex e a Verônica voltaram. E o beijo não melhorava, como se ela não quisesse pisar no acelerador.

– Hummmm! – Verônica murmurou isso daquele jeitinho engraçadinho e fofo dela, com aquele risinho pequeno e tudo, que quase não sai de dentro da boca, vendo que estávamos de mãos dadas.

– Vamos lá pra casa. Querem vir junto? Comprei o CD novo do Legião – O Alex propôs.

O Alex morava no quarto andar de um prédio ali no centro da cidade, uns quinze minutos do colégio, numa rua tranquila. Não tinha perigo de cruzar com ninguém conhecido que fosse perguntar o que eu estava fazendo fora da escola. Não fomos de mãos dadas pela rua. Não me sentia com vontade de fazer aquilo, já que a gente não era nem namorado nem nada. E não tinha chance disso acontecer. Alex e Verônica também não estavam de mãos dadas. Estávamos contentes. Era uma manhã que tinha começada coberta de serração e que depois das dez horas tinha se aberto com um grande sol amarelo que espantou as últimas nuvens de névoa.

Sentamos na sala. Eu e a Fran num sofá de dois lugares, o Alex e a Verônica no outro de três.

– Vamos tomar alguma coisa? Cuba?

– Pode ser – eu disse.

– Tem cigarro aí, Luís?

– Tenho! – gritei. Ele já tinha ido pra cozinha. – Quer um?

– Não! Imagina, perguntei só pra saber mesmo. Estou fazendo uma pesquisa pro IBGE.

Nós rimos. Ele voltava com o copo. Entreguei o cigarro pra ele.

Dei uma bicadinha só, não podia chegar em casa com bafo de cachaça em pleno meio dia de uma quarta-feira. Ia ser uma merda enorme se meu pai sequer cogitasse que eu tinha bebido.

– O CD! Deixa eu pôr o CD do Legião pra gente ouvir. É meio depressivo e tal, porque ele já andava bem doente. Mas é muito massa.

Ele me passa o encarte do disco pra eu ver com a Fran e senta ao lado da Verônica que cochicha alguma coisa no ouvido dele.

– Moçada, fiquem à vontade aí. Cara, se quiser fazer mais um preparado você sabe onde tem vodka e Coca. Você é de casa.

A primeira música acaba. Ele deu um gole longo no copo e o passou pra mim. Alex pegou Verônica pela mão, foram pro quarto e trancaram a porta. Ofereci pra Fran, que balançou a cabeça negando. Dei outra bicada e o depositei na mesa de centro. Perguntei se ela não bebia. Ela respondeu que não. A religião dela não permitia. Não era brincadeira, né? Não, foi a resposta. Era a primeira vez que eu conhecia alguém da minha idade que levava a sério o que a sua religião dizia. Talvez fosse só uma desculpa dela também.

Ficamos ali de mão dada e tudo ouvindo a música. Eu estudando aquela mão pequena, tão menor que a minha, que dava pra abracar. Era maciazinha, os dedos finos e curtos. Ela não tinha as unhas pintadas, nem compridas, como daquelas meninas metidas a adultas. Fiquei nessa, porque eu não sabia o que conversar com ela. A gente conversava todo dia sobre essas coisas do colégio, os livros que a gente lia, sobre Legião, sobre os filmes e programas na tevê… e agora a gente estava ali um segurando a mão do outro e sem nada pra dizer. Vai ver a gente só conseguia conversar quando tivesse gente por perto pra puxar assunto.

– Bonita essa música – comentei.

– Qual é o nome mesmo?

Eu olhei no encarte.

– “Via Láctea”.

– Bonita mesmo.

Concordei. A gente se beijou pelo tempo de outra música. Não melhorava. Era como se nossas bocas não fossem do mesmo tipo, como se fossemos peças erradas de um quebra-cabeça, que forçosamente uma criança tenta unir por teimosia, por não saber pensar em outra solução.

– Gostei dessa também. Mais rock, mais rápida, mais agitada, dançante.

– Sei lá, gostei mais das românticas – ela disse.

– “Dezesseis”.

– O quê que tem?

– “Dezesseis”, é o nome da música. Irônico, não?

– Por quê?

– Eu tenho dezesseis anos e você?

– Eu já tenho dezessete…

– Ah tá… eu não sabia, pensei que você tinha dezesseis também.

– Eu reprovei na sexta-série.

– Onde você estudou no primeiro grau?

– No Pedro Stelmachuk.

– Hummm.

– É perto de casa.

– Por que veio fazer o segundo grau no Túlio de França?

– Todo mundo diz que o ensino é melhor.

Eu ri.

– Por que tá rindo? – Ela parecia mesmo intrigada.

– Tá na cara que não é, né?

– Como assim?

– A gente mal teve aula esse ano, só matação. Hoje, por exemplo, o professor de matemática não veio. Quantas vezes ele já faltou esse ano?

– Verdade.

Ela parecia estar se dando conta daquilo só agora.

– Olha que linda essa música – ela mudou de assunto.

– Bonita também. – Olhei no encarte. – “Mil pedaços”.

– Vou comprar no um e noventa e nove a fita.

Fiquei quieto ouvindo a música.

– Não é tão triste como ele disse, tem umas músicas bem boas. Olha essa batidinha que massa.

Agora tocava “1 de julho”.

– É boa mesmo. Que música linda.

Não penso em me vingar/eu não sou assim/a tua insegurança era por mim

– Cara, é MUITO boa essa música. – eu tinha gostado demais dela.

Ela concordou. Aquele era um baita dum disco.

Tocava “O livro dos dias” quando eles saíram do quarto. O Alex com os cabelos bagunçados, as maçãs do rosto vermelhas. A Verônica foi direto para o banheiro. Senti alguma coisa esquisita no ar. Ele estava desconfortável. O sujeito mais cheio de si que eu conhecia estava sem jeito. Isso era novo. Ela saiu do banheiro. Também com as bochechas rosadas e meio sem jeito, sorrindo de nervosa.

– Moçada, preciso ir nessa – falei, já era quase meio-dia.

– Beleza. Daqui a pouco meu pai e minha mãe chegam.

O Alex nos levou até lá embaixo. Deu um beijinho no rosto da Verônica e um abraço.

– Falou, maluco. A gente se fala – me estendeu a mão e nos abraçamos. Ele agora estava apenas sério.

Na esquina dei um beijinho no rosto da Fran a Verônica fez a mesma coisa, ela ia pra outro lado. Eu e a Verônica íamos pra mesma direção até um pedaço. Fomos caminhando em silêncio. Eu pensava no ano passado. No quanto aquela menina tinha povoado meus pensamentos, meus sonhos, meus desejos, minhas punhetas, no quanto a gente tinha se aproximado e no quanto aquilo tudo tinha se esvaziado no último ano. A figura dela já não aparecia mais na minha mente antes de eu dormir. Não pensava mais nela quando ouvia November Rain. Nem era mais alguém com quem eu queria falar por horas e horas. Era esquisito aquilo tudo, porque agora ela recém tinha transado com o Alex e eu não me sentia incomodado com aquilo, não sentia ciúmes, nem nada. Eu deveria sentir alguma coisa, na verdade?

Não sei o que eu deveria sentir. Raiva? Ciúme? Inveja? Não sei. Não conseguia sentir nada. Porque esse desconhecimento das sensações, me fez seguir ali do lado pela, quieto. Quieto porque sentia que tinha acontecido alguma coisa. Mas não tinha coragem de perguntar e intuía que ela não ia me dizer mesmo. Eu olhava de lado de vez em quando, me rindo por dentro porque o cabelo dela estava esquisito, repassando o gosto do beijo da Fran na minha boca, e era uma coisa que eu ainda não sabia também como lidar, pois eu ia chegar no outro dia no colégio e olhar pra ela, sabendo que a gente tinha se beijado e isso ficaria pra sempre entre a gente. E no fundo, acho que ela sabia também que não tinha sido bom. Mas a Verônica estava ali do meu lado caminhando apressada e com os olhos prestes a explodir em lágrima e eu não tinha nada pra dizer pra ela.

Eu ia pensando nessas coisas todas quando chegamos na esquina em que cada um ia pro seu lado. A gente se beijou no rosto. “Tchau!”, “Tchau! Até amanhã”. E cada um foi pra sua rua. Dei mais uma olhada pra bundinha dela que rebolava rua abaixo.

Porra! Por que é que eu não tinha falado pra ela o que eu sentia um ano atrás? Eu podia ter perdido o meu cabaço com ela.

Como dizer adeus quando se está fugindo I

 

Sérgio olhou a lista de destinos. Perguntou o preço da passagem pra São Paulo. Sim. Era grande, mas lá seria fácil se esconder também. Sim, ainda tinha lugar no ônibus que saía às nove, o rapaz atrás do vidro respondeu.

Ia ter que ficar fazendo hora ali na rodoviária até a partida, mas tudo bem. Rejane, a esposa, não ia se dar conta logo não. Era uma mulher esperta, isso ela era, mesmo que ainda não tivesse descoberto o que ele tinha me aprontado. Quando descobrisse era melhor ele estar longe, que um dos dois ia sair bem feio da briga. Isso se não se matassem. Inda bem que a cunhada não era boca de gamela, senão ele já estava era lascado.

Entrou no ônibus, colocou a bolsa no bagageiro sobre o assento e se abancou. Olhou pra fora, nenhuma face conhecida. Cada um que entrava, se perguntava se vinha de atrás dele. Não. Não conhecia aquele povo que ia entregando passagem e bagagem pro motorista lá embaixo e subia, procurando o lugar e se abancando pra enfrentar a noite de viagem até São Paulo. Aquela tarde que a cunhada apareceu lá, ele devia ter saído, ido tomar uma no boteco. Mas é que chovia, a aula dela tinha acabado mais cedo. Ela chegou molhada, precisava de banho e roupa seca. Fechou a cortina e reclinou a poltrona.

A Rejane era um demônio de mulher. O que ele podia fazer? Ele também não valia lá grandes coisa. Ele tentava, meu. Ele tentava ser gente. Ele tentou fazer o que era o certo. Não que não soubesse. Não que sua mãe não tivesse ensinado pra ele, dito milhões e milhões de vezes, meu filho, não faça tal e tal coisa, é assim e é assado que a vida funciona, escute a tua mãe que já sofreu muito na vida. Talvez ela estivesse tentando fazer dele um homem melhor do que o pai dele era, do que o pai dela tinha sido, do que todos os lazarentos que ela conheceu e que fizeram ela sofrer. E ali estava ele, fazendo uma mulher sofrer. Quer dizer, duas, pelo menos, né. E fora o piá dele, que era pequeno demais ainda pra entender tudo que ia acontecer, e um dia ia dizer de boca cheia pra todo mundo que o pai dele era um filho duma puta e que numa dessa é até bom que ele esteja indo embora mesmo.

Tá, talvez um dia, sei lá. Quantos anos Rejane ia precisar pra perdoar ele? Bem, porque não era uma coisa assim fácil, ele chegar e dizer pra ela, olha, desculpa e tal, te amo e tudo, sei que caguei no pau, sei lá o que me deu naquela tarde. A tua irmã também, precisava ter ido lá em casa? O motorista acionou a ignição e o ônibus inteiro chacoalhou, passando a roncar baixinho. Não dava pra colocar a culpa na menina. Ela tem só onze anos. Ele fez o que fez porque deu vontade e pronto. Vai que ele fosse um tipo-bicho?

Podia descer agora. Sair, voltar correndo pra casa antes que Rejane percebesse que ele estava longe: olha, amor, precisamos conversar. Melhor que você saiba pela minha boca que pela da tua irmã, a culpa foi minha e tudo. Porra! Ele já tinha pensando mil vezes nessa solução e cada vez que pensava nela o final era sempre a cara branca de polaca da Rejane ficando vermelha e vermelha conforme ele ia se explicando até que ela pegava a primeira coisa que estava ao alcance da mão e jogava na cabeça dele. E ele que não era bicho de sangue frio nem nada ia ter que dar uma na cara dela pra ela calar a boca e parar de gritar e o filho ia abrir o berreiro também e ia ser uma confusão danada. Pontuou essa sequência de pensamento com um soco no braço da poltrona, forte o suficiente para que a senhora sentada ao seu lado o olhasse, de soslaio, desconfiada. Ele abriu um sorriso que dizia, desculpa, não sei o que me aconteceu, está tudo bem, não vai se repetir. A porta se fechou e o ônibus começou a ser manobrado para fora da rodoviária, em seguida tomando as ruas de Porto União e o caminho da BR476.

Agora não dava mais. Agora estava decidido. Ela ia descobrir quando? Quando ele não chegava em casa no dia seguinte? Ele já tinha dormido fora sem avisar várias vezes, e várias vezes tinham brigado e ela tinha aceitado ele de volta na cama depois de ficar uma semana braba. Ele era um imundícia mas ela gostava desse imundícia. Que ele podia fazer as festas dele, mas que se ele tinha outra ela matava ele e ele nem ia saber como é que foi. O ônibus passou a ponte. Podia ter se despedido do filho. Do pai. O pai era um merda de um cachaceiro, nem ia sentir falta dele. Mas o piá. Não tinha pensado muito nisso… e o piá? Devia ter pensado nele antes de fazer a cagada. O piá… dali a pouco a Rejane arrumava outro caboclo, que o piá logo ia aprender a chamar de pai. Todo mundo dizia que o piá era a cara dele. Ia pedir por ele por quanto tempo? Um mês, dois, dali a pouco Rejane ia dizer que o pai dele tinha morrido e que o caboclo novo era o pai dele agora e o menino ia aceitar aquele pai e ia esquecer dele. Porque era assim que as crianças eram, elas esqueciam logo dos adultos que sumiam.

Na rua

O sol quente queimava a sua face. Abriu os olhos. Buzinas. Os olhos se acostumavam com a luz. Sentiu o corpo desconjuntado, a cabeça lhe caindo do pescoço. Com muito custo, levantou o corpo do chão. Tonteou. Apertou os olhos fechados com a ponta dos dedos, se curvando, faltasse músculo nas pernas. As pessoas desviavam dele. Endireitou de novo o corpo. Forçou os olhos abertos. E deu um passo, outro e outro. Até que uma quadra depois o vazio no estômago veio lhe dar bom dia.

Uma senhora caminhava lentamente, sacola de pão em uma das mãos, carrinho de feira noutra, arrastava a idade e as compras.

– Senhora…

Ela não ouviu, ou fez que não.

– Senhora…

Ela seguia o seu caminho, naquele passo. Pudesse, teria corrido?

– Senhora… um trocado… fome…

Ela ignorou e continuou caminhando. Se uma vovozinha não ia ajudar ele, quem é que ia, meu deus? E um ‘sai daqui desgraça’ foi gritado no seu ouvido por um homem barbudo. Cristiano não viu direito a cara por trás da barba fechada e negra, só a vassoura de cabo grosso e pesada que empunhava. Suas pernas continuavam dando passos e ele deixou que elas o fossem levando. A vovozinha de cabelos brancos tinha sumido pra dentro de uma daquelas lojas ou portas de prédio.

Cristiano dava passos curtos. Procurando acertar o chão. Errasse a pisada cairia de boca no piso duro de pedra da calçada. O gosto do tombo de ontem ainda vivo nos dentes e lábios.

Até que voltou ao parque. E com aquelas passadas de quem pisa em asfalto já tocado, viu que estava de novo onde tudo tinha começado. Sem querer, como se atraído para lá por alguma força, suas pernas o tinham trazido de novo para lá. Era o parque. Claro que era o parque.

Pessoas dormindo debaixo das árvores, nos cantos e bancos. O dia ainda não tinha começado pra elas. Quem sabe tenha acabado bem tarde ontem. Que horas seria aquilo? Cristiano olhou para o céu e sentiu apenas a claridade nos olhos. Já devia passar das dez. Encontrou a bica e foi até lá jogar uma água na cara. Passou a mão pelos cabelos e sentiu a casca de sangue seco. Tomou água em goles longos. Gorgolejou, se refestelando. Bucho cheio de água. Podia enganar a fome. Melhor não mexer naquela ferida, que ainda latejava, quente e pulsante. Sentou num banco. Quê que ia fazer? Esperaria um brigadiano aparecer e contaria tudo o acontecido. Claro que iam ajudar ele encontrar o parente.

Alguém sentou ao seu lado, vindo ele não enxergou de onde.

– Quer queimar um? – o catinguento disparou. Suas mãos e face tremiam, como se estivesse com muita vontade de fazer aquilo.

Não queria, aquele negócio só tinha trazido desastres. Por que perseguiam ele?

– Não! Já tô todo estoporado, meu. Não tá vendo?

Vai ver o cara não estava vendo mesmo. Porque insistiu.

O estômago roncou. Mendigar não deu certo. Ele também não sabia roubar. Só pela fome. Foram prum canto escondido.

Assistia o cara preparar o cachimbo e calculava a decisão. Tomar no cu, meu! Que negócio era aquele. Era tão simples dar o fora e se arrancar dali. Por que capeta do diabo ele tinha pensando em fumar aquele troço de novo?

– Valeu, mas não – disse de supetão e saiu corrido dali, numa disparada e sem olhar pra trás.

Não! Não e não! Não ia fazer cagada de novo! Não ia se meter fumar aquele negócio do demônio que ele nem sabia direito o nome mas sabia que fazia muito mal e que ele tinha apanhado de noite por causa daquilo e que se não fosse por isso ele tinha se defendido, pelo menos, e chamado socorro.

Correu um pouco até chegar no chafariz. Sentou por ali. Precisava decidir o que fazer. Olhou no entorno. Ninguém se preocupava dele ter corrido até ali e sentado. De que lado tinha vindo mesmo? Um grupo de cachorros brincava no gramado. Pessoas passavam. O pipoqueiro colocava mais uma panela pra estourar. Um casal lá adiante tomava seu chimarrão na sombra. Ninguém se preocupava com ele.

A prima

Minha mãe poderia ter me defendido. Sim. Ela poderia ter feito isso, porque ela tinha o poder pra dizer pro meu pai que não era assim que se educava uma criança, não batendo nela na frente da família como se ele fosse um cachorro que tivesse que ser educado na porrada, pra daí viver com medo e antes mesmo da cagada se formar na cabeça dele como um pensamento que vem vindo lá do fundo e a gente não se dá conta ele tivesse uma espécie de semiconsciência de que talvez é melhor não fazer a levar um tapão no ouvido com a mão pesada do pai. Ela poderia ter me defendido. Dito um “não, pai!”. Dito “escute a versão dele antes de julgar”. Mas o olhar dela – eu não via o olhar dela porque ela não saiu lá pra fora da casa pra ver o que tinha acontecido –, ou a falta do olhar dela: ela tinha certeza que o meu pai ia fazer a coisa certa. Ela ficou lá ajudando a vó a fazer o almoço, como ela sempre fazia. Mas eu sabia que o olhar dela era o mesmo do meu pai. Talvez ela duvidasse em algum momento – mas se duvidava, por que não tinha vindo saber o que aconteceu, por que não tinha me ouvido? Era o que eu desejava, mas eu sabia que o olhar dela era de quem acreditava mesmo que eu tinha dito aquilo pra minha prima.

A gente estava jogando bola. Era o que dava pra fazer na casa da vó naqueles feriados de final de ano quando a casa ficava cheia de parentes que a gente via uma ou duas vezes no ano. Era um povo que eu não conhecia direito, mas chamava de primo, prima, tio, tia e isso tudo. Tinha que chamar. Eu não me lembro exatamente desde quando aquelas festas tinham começado, de onde eles tinham vindo, mas era a família do lado do pai. E, bem, afinal de contas, era a única família que a gente tinha na cidade. A da mãe morava longe e nunca vinha visitar. E naquele final de ano era isso. Todo mundo lá na casa da vó e do vô, um mundo de gente que eu estava conhecendo meio que naqueles dias. Uns piás metidos que falavam de skate, videogame, shopping e praia. A gente, os mais fodidos da família, não víamos nem cheiro disso. O mais próximo que eu chegava de um videogame era quando a vó dava um trocado pra mim ir jogar na locadora.

E tinha a prima Carla. Eu só tinha doze anos naquela época e não estava interessado em menina. Sempre fui meio bocó pra essas coisas. Claro que achava umas lindas, outras feias e desprezava as que jogavam as tangas pra mim, enquanto secretamente arrastava um caminhão de merda por aquelas que me ignoravam, como qualquer pré-adolescente mocorongo da minha idade. Eu ainda não tinha aquele desprendimento que vim a ter depois dos dezesseis anos, de ficar com qualquer guria que desse mole pra mim – não se surpreenda, não pegava mais que uma a cada bimestre – a grande escola que me possibilitou ser um canalha depois dos vinte anos. A Carla era bonita pra caramba, sabe. Daquelas meninas de cabelo liso, de treze, catorze anos, pele caramelo, que puxou da mãe, peitinhos nascendo e tudo já. Daquelas meninas pelas quais eu me derretia e sabia que jamais iam me dar a mínima pelota. Talvez fosse isso o que elas tinham de atrativo, essa superioridade que as meninas de treze-catorze anos possuem, de sentirem seu corpo já mudando e terem consciência de que isso mexe com a piazada.

O negócio é que eu estava ali jogando com aqueles primos. O dia estava quente e bonito, e ninguém queria ficar dentro de casa. A rua da casa do vó era tão sossegada que dava pra gente jogar ali mesmo, mesmo com o vô reclamando que a gente ia sujar o muro dele de barro. Ninguém sabia de onde ele tirava aquilo, já que a rua era calçada com blocos hexagonais de cimento, não tinha chovido nos últimos dias, e não tinha o menor sinal de poça de água por perto. Ele não gostava de futebol, esse que era o caso. Eu era o único piá da minha turma que tinha um pai e um vô que não gostavam de futebol. Nunca entendi como é que meu pai preferia ver o Silvio Santos a ver um Palmeiras x Grêmio na Bandeirantes no domingo de tarde. Esses eram meus modelos de homem, pra você ter uma ideia.

Daí a Carla veio ratear que também queria jogar. Caramba. Menina não joga bola, meu. Nunca jogou. Ia só atrapalhar o jogo. E a gente já tinha feito os trios e tudo pra jogar travinha livre. Não tinha lugar pra ela. Além do mais, quem é que ia dar o lugar pra ela, fosse o caso? Outra, que time ia querer ficar com ela? Um dos primos sugeriu que ela podia entrar pra um dos lados, que não ia fazer diferença porque ela não jogava nada mesmo. Ela topou, meio ferida lá naquele ego de menina foda da capital que ela tinha e que queria mostrar pra gente que manjava do negócio. O primo que aceitou que ela jogasse passou a bola pra Carla, uma, duas, três vezes, mas em todas ela mal dominava e já chegava alguém do nosso time pra roubar a bola dela. Os piás não davam espaço e ela não tinha tempo pra dominar, pensar o que fazer, arriscar um drible ou um chute sequer. Até que mesmo ele parou de passar e não deu cinco minutos ela aloprou: “Vão se foder, seu bando de cuzão!”. Eu xinguei qualquer coisa de volta. Sabe quando a gente abre a boca e fala alguma coisa assim, no embalo do que a moçada está fazendo? Estava todo mundo lá xingando e tirando uma da cara dela. Por que eu não podia também? Claro que eu não podia. Eu é que sempre me lascava nessas horas e ia me lascar de novo.

Quando eu vi, meu pai me chamou pra dentro, com aquele tom de voz dele que eu sabia só de escutar de longe que eu ia tinha me estrepado bonito. E eu fui, ouvindo o coro dos piás atrás de mim, ih, sussurram eles, esperando pra ver no que ia dar e acho que meio felizes porque ia sobrar pra mim e porque os pais deles tinham cagado pro troço. Até imagino o tio César dizendo pro pai: “deixa a piazada se entender entre eles lá, homem, senão vão virar uns bunda-mole”. Eu fui e assim que parei na frente dele nem tive tempo de ver de onde veio, só sei que ele me embolou com um tapão na cara que me desequilibrou sem me derrubar e que eu pensei na hora que a minha cabeça ia rachar no meio e meu cérebro virar uma bola verde catarro. Não era aquela dor que eu sentia quando ele me puxava a orelha e me dava a impressão de que se ele fizesse só mais um pouquinho de força seria capaz de arrancá-la com um puxão. Foi um troço mais foda, mais profundo, que não magoou só minha carne. Nunca gostei lá muito do meu pai, porque dele o que eu tinha pra receber era aquilo ali. Mas aquela guria despertou em mim uma parada que eu ainda não sabia que podia sentir.

– Nunca mais chame ninguém de filho da puta – ele disse, bufou e virou as costas.

Me deixando lá, na frente de todo mundo, sem saber o que fazer com aquela cara vermelha latejando e uma puta vontade de chorar – que engoli a seco, né, logo depois. Foi o primeiro tapa na cara que eu levei do meu pai. Felizmente, naquela altura, eu já não mijava mais nas calças com as surras dele, e ele não me fez pedir desculpas.

Ela estava de galochas vermelhas

Ela estava de galochas vermelhas. Era loira e magrinha. Tinha aparelho nos dentes, seios pequenos e pernas longas e finas. Não lembro se ela já estava ali quando eu cheguei, porque eu entrei, fui no banheiro e de lá pro balcão do bar pegar uma cerveja. Não, não estava. Se estivesse eu teria reparado nela. Eu não entendia as galochas, já que não chovia. Mesmo assim… cara, a guria estava de galochas numa boate. Eu teria reparado naquilo.

Quinta-feira. Acendi um cigarro e estudei o ambiente, como sempre faço. Cumprimentei outros que batiam cartão ali toda semana: o travesti, o gay, o traficante, a estudante de moda, e a professora de francês. O gay me cantava toda semana (eu não sabia mais se ele queria me comer mesmo ou só estava tirando uma da minha cara) e a professora de francês sempre me cortava. Eu tinha um tesão por aquela mulher… mas não demorou muito pra eu perceber que ela nunca ia me dar. Eu não sabia qual era a do travesti e a do traficante, mas acho que tinha alguma coisa rolando entre eles. Eu precisava de uma cerveja e de uma foda bem dada. Foi pra buscar isso que eu tinha saído de casa.

Aquele gay era um coitado. Feio pra caralho. Era dançarino. Pelo menos era assim que se apresentava. Tinha largado a faculdade de artes (ele era bom demais pra ela), e agora trabalhava de vendedor de bugigangas medonhas de feias numa loja ‘descolada’ no shopping, dessas que vendem itens de decoração pra hipsters e roqueiros. Se gavava de suas conquistas, enumerando os héteros que apareciam. Peguei, peguei, ainda vou pegar etc.

Eu dava trela pra ele. Precisava ser entretido e queria ser apresentado pra suas amigas depressivas e desesperadas por um sexo casual. Rá. Antes fosse. Jamais comi nenhuma delas. Ele não tinha amigas. Era um desastre como gay. Só conhecia umas gurias que também faziam alguma coisa ligada às artes – pintavam, dançavam, faziam teatro ou artesanato, essas coisas todas meio artísticas que o pessoal que ia naquela boate fazia.

Naquela ele saiu, conversar com um chegado. Ia dar um oi pra ele e já voltava, me disse. Eu acendi outro cigarro e percebi que uma baixinha de coxas grossas fora deixada de lado por um casal de amigos com quem tinha chegado fazia poucos minutos. Estava entediada, não entendendo o que se passava por ali.

Me apresentei. E começamos aquela entrevista protocolar de pessoas que estão se descobrindo. Eu nunca fui muito bom nessas coisas mesmo, mas por sorte, antes que ela começasse a ficar aborrecida comigo, minha língua relaxou, e ao final da segunda cerveja fiquei interessante e conversador. Aí ela gostou de mim, eu acho. Comprei outra cerveja pra gente. Eu estava confiante e animado.

Quando percebi estávamos nos beijando, o que deve ter acontecido lá pela terceira garrafa. Sua língua era caprichosa, embora sem desejo. Trocamos contatos e ela foi embora. Puxa. Não era ainda nem duas horas da madrugada. Eu não estava bêbado, estava confiante, tinha beijado na boca, adicionado um telefone de mulher ao meu menu de contatos. A noite prometia.

Foi então que a vi. Ela estava de galochas vermelhas e minissaia preta. Sentada ao lado do gay. Nos apresentamos. E por uma dessas que as conversas de bar nos levam, a gente descobriu que tinha nascido na mesma cidade do interior, só que a gente tinha morado em bairros diferentes e as famílias ido embora em momentos diferentes também. Eu estava curtindo a guria. E tudo que me preocupava era se ela tinha me visto beijar a coxudinha. Eu mal a conhecia, o que eu ia responder se ela me perguntasse sobre aquela que eu tinha beijado e que tinha ido embora? Eu ficava antecipando os problemas mesmo. Fazer o quê? Mas pra minha sorte ela não viu, ou fez que não viu porque não me falou nada.

Eu na quarta cerveja. Quando fomos dançar, já estávamos íntimos. Eu dependurado no copo e na garrafa, me balançava e não tirava os olhos dela, que dançava, brincando de me ignorar charmosamente. Até que nossos olhos se cruzaram e ela então percebeu que eu estava na dela. Eu estava mesmo e queria era estar nela. A cerveja já estava fazendo efeito, fora a fumaça do cigarro me irritando os olhos. Mateis aquela cerveja e me soltei. Então, vi alguma coisa naqueles olhos verdes dela – sem esquecer das galochas. Porra, meu, ficava bonito aquele troço nela.

Comecei a dançar com meu corpo próximo do dela. Os corpos então se encaixaram, como se se entendessem de outras danças, e as bocas fizeram o mesmo. O corpo da gente sabia o que fazia. Nunca tinha sido tão fácil dançar com uma mulher. Era só se mexer, era como se eu sempre tivesse feito aquilo. Ela estava bebendo pra burro, mas tinha gosto de Halls de cereja. Aquilo sim era um beijo de quem estava afim de me beijar.

Naquele roça e enrosca eu fiquei excitado. Essa é a coisa boa de ter vinte e cinco anos. Dá pra beber um monte que o pau da gente endurece mesmo assim. Caramba, eu precisava comer aquela mulher pequena e que caberia inteiramente na minha cama de solteiro e de estudante de mestrado que recebia uma bolsa miserável do governo. Eu namoraria com ela se fosse preciso. Eu ia até conhecer a família dela se ela quisesse.

Mas não seria naquela noite, que ela estava de carona com amigos e precisava voltar pra casa cedo, que tinha que trabalhar na manhã seguinte, me disse, quando nos despedimos a muito custo com os amigos insistindo que precisavam ir embora também – estavam cansados e amanhã era sexta-feira. Caramba. Deixei-a ir, obrigado que fui porque o que eu queria mesmo era raptar Rosana – naquela altura eu já tinha memorizado o nome dela.

Na sexta-feira voltei na boate. Mandei uma mensagem pra ela. Resposta: não podia ir. Compromisso. Não perguntei detalhes. No sábado também não. Família. No outro final de semana eu não pude ir. Não liguei. Não mandei mensagem. Mas pensava nela, claro. Mas fazia o jogo. Não queria me mostrar vulnerável, só que também não sabia o que aquilo ia dar, via um potencial nela. Eu tinha gostado da Rosa e já imaginava a gente chegando de mão dada na boate. Precisava saber qual era o cheiro dela, queria me enroscar naquelas coxas magrelas. Porra. Não liguei e também não mandei mais mensagens.

Quinze dias depois. Encontro o amigo em comum, o gay. A Rosana? Tinha voltado pro ex-namorado, me contou. Escondi o desapontamento atrás do copo de cerveja. Acendi um cigarro. Ergui o copo e brindamos ao início dos trabalhos da noite. Caralho. Lá íamos nós outra vez.

Meu primeiro livro de contos

cover150x250Resolvi tirar da gaveta por conta própria alguns contos que escrevi entre 2011 e 2014. Ele está sendo lançando pela e-galáxia somente no formato e-book. Informações sobre como comprar e ler vocês encontram aqui: http://bit.ly/1c4mN4n

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