Cinema multilíngue

De um modo ou de outro, o tema da linguagem acabou perpassando alguns filmes que concorreram ao último Oscar. Deve ser uma das consequências da globalização. E a arte do nosso tempo replica em alguma medida pop a Babel em que vivemos.

Causou um burburinho que Napoleão seja um filme falado em inglês e não em francês. Talvez os franceses esperassem também que o Oliver Stone tivesse escalado um Roman Duris para ser Napoleão, e não um Joaquim Phoenix, e uma Adèle Haenel para viver Josephine. Vai saber. Não acho que os italianos tenham ficado chateados que a série Roma tenha sido falada em inglês, assim como os suecos, noruegueses e dinamarqueses não devem ter ficado chateados que Vikings (série produzida por canadenses, a propósito) também seja falada em inglês e não nórdico antigo. Claro, estou brincando, mas o fato de o francês do Napoleão estar mais próximo da gente do que o latim de Júlio César e Marco Antônio é um bom argumento pra pedir que um filme sobre um dos maiores personagens da história da França e da Europa fale no cinema a sua língua materna.

No filme Anatomia de uma queda, Sandra é alemã, o marido francês e eles conversam em inglês, entre si e com o filho, Daniel. É uma casa multilíngue. Creio que não deva ser incomum na Europa esses relacionamentos internacionais, nem crianças vivendo em lares, escolas e bairros multilíngues. Na verdade, embora a Europa como um todo seja um território bem variado linguisticamente, essa pluralidade não é novidade. Júlio César quando foi invadir a Gália se deparou com os povos celtas falando línguas que os romanos não conheciam. Lembrando que os próprios romanos viviam em situação de diglossia. As diferenças entre o latim vulgar (falado pelos escravos, soldados, camponeses etc.) era diferente do latim clássico, que era a forma escrita e cultivada pelas classes altas e letradas de Roma, já naquela época pouco antes de Cristo. No filme, em certo momento, há uma discussão entre o casal sobre o tema. O marido não gosta que Sandra fale em inglês com o filho, já que eles moram na França.

Já em Vidas Passadas temos uma coreana, Nora, que se muda com a família para o Canadá aos 12 anos. Ela ainda fala coreano com a mãe, mas, além de ter passado a adolescência no Canadá, como ela se torna uma dramaturga de relativo sucesso em Nova Iorque, “sua língua” agora é o inglês. Aos vinte e poucos anos, ela retoma o contato com um amigo de infância que ficou na Coréia do Sul e eles conversam em coreano. Pouco depois, ela sente que eles estão ficando apegados, mas a distância é muito grande. Então, ela decide parar de falar com ele. Eles só voltariam a se falar outros 10 depois. Nesse meio tempo Nora se casa, e eles se encontram quando ele briga com a noiva e vai a Nova Iorque visitar ela. Uma das falas mais significativas do filme é quando o marido dela diz algo bastante poético: “Você sonha em um idioma que eu não entendo. Parece que há um lugar inteiro dentro de você que eu não consigo acessar”.

Por fim, em Ficção Americana a questão é menos explícita. Monk é um negro de classe média alta. Seu pai era médico, seus irmãos são médicos, mas ele é escritor e professor universitário. Sua “mágoa” com o mercado literário é que ele não é lido como um escritor em sentido lato. Sempre o enquadram como um escritor negro, mesmo que os temas de raça não sejam o seu objeto literário. Suponho, então, que ele não escreva no Black English, mas no inglês standard. Mas quando ele resolve escrever um livro para mostrar que o mercado literário está interessado nos negros não pelo mérito literário, mas por certo tipo de história que perpassa a vida deles nos Estados Unidos (violência, abandono parental e desestruturação familiar, abuso de drogas e álcool etc.), ele escreve um romance autobiográfico criando como autor-personagem um condenado fugitivo da prisão. Mas como o livro é comprado por uma grande editora e passa a fazer sucesso, ele precisa mudar sua forma de falar (e até seus trejeitos físicos) para lidar com as consequências do sucesso editorial. O livro ter como título um palavrão me parece significativo dessa necessidade de marcar linguisticamente que o autor é alguém de classe baixa e pouco instruído.

Dado seu valor cultural, como veículo de expressão de valores, costumes, hábitos, entre outras coisas, as línguas fazem parte da nossa identidade. Daí a reclamação dos franceses, creio. E ao mesmo tempo vivemos num mundo em que é possível alguém se candidatar a empregos em qualquer lugar do mundo, a entrar em contato com pessoas de países diferentes pelas redes sociais e a aprender os idiomas mais falados do globo usando um aplicativo para celular como Duolingo ou Babbel. Daí ser inevitável relações amorosas internacionais, e crianças crescendo em lares bilíngues.

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