Duas negações: a intuição e a atitude dos falantes

Todo falante é capaz de usar a língua para falar dela mesmo. É a chamada função metalinguística. É uma capacidade que as crianças desenvolvem ali pelos 6, 7 anos, algumas um pouco mais cedo. Na medida em que ela vai falando mais e interagindo mais com os adultos, ela vai sendo ensinada a prestar atenção ao que diz, a pesar as suas palavras, percebendo que há palavras que não podem ser ditas, há palavras feias e há palavras bonitas.

E nunca mais deixamos de pensar sobre o que falamos, as palavras que usamos e o efeito que elas geram.

Profissionais da palavra, justamente por estarem lidando com ela no dia a dia, certamente estão mais propensos a refletirem sobre o seu instrumento de trabalho.

Felipe Neto se questiona:

“Eu não consigo fazer nada” para ele significa literalmente “eu consigo fazer alguma coisa”. Bom, talvez aí ele tenha usado o sentido de “literal” de modo equivocado. A frase em questão significa, literalmente: “Não existe algo tal que eu seja capaz de fazer esse algo”. Justo o contrário. Por que ela não significa o que Felipe Neto acredita que ela significa? Porque ninguém usou, usa ou jamais vai usar essa oração para descrever uma situação como essa que ele supõe que pudesse ser descrita por esta oração.

Mas ele é um falante nativo, isso indica que sua intuição pode estar equivocada? Não. Eu suponho que ele esteja repetindo algo que leu em algum lugar, porque esse é um fenômeno que volta e meia retorna, como aquelas teorias da conspiração imortais. [Já ouviu falar que as loterias da Caixa são viciadas?] O funcionamento das línguas obedece a uma lógica peculiar, não a uma lógica dedutiva, como a desse raciocínio que supõe que a soma de duas negações forma uma afirmação, como em “é falso que eu não vi a Maria”, que significa, literalmente, que “eu vi a Maria”. Mas veja que eu tive que fazer um volteio pra colocar as duas negações pra gerar uma oração com significado positivo: “é falso que …. não”.

O fenômeno é curioso porque há certas negações que só podem ocorrer sob a influência de outras negações. É o caso de pronomes negativos na posição de objeto em português. “ninguém viu o Felipe” é uma oração bem estruturada, mas “Felipe viu ninguém” não é, enquanto “Felipe não viu ninguém” seria a nossa maneira usual de dizer que “não é o caso que Felipe viu alguém”. Ou seja, a expressão que seria, em tese, negativa, ninguém, passa a significar positivamente “alguém”.

Essa lógica particular da língua me permite dizer que “Ele sentou na mesa” sem querer dizer que o indivíduo sentou “sobre” a mesa ou “em cima dela”. Outro caso é a dupla negação. Mas ela tem uma particularidade, tendemos a usar ela para negar algo enfaticamente. Se alguém supõe, acreditando que é o caso, que eu gosto muito de chuchu; para desfazer o equívoco, eu tenderei a responder: “Eu não gosto não”. E não quero dizer com isso que eu gosto de chuchu, mas quero ter certeza de que o meu interlocutor está equivocado ao me atribuir um predicado desse tipo.

Sírio Possenti já tratou disso tem uns anos. Outro texto esclarecedor sobre o tema é este de Sérgio Rodrigues, escrito neste ano. O primeiro recorre a Machado de Assis, o segundo a Fernando Pessoa, para ilustrar que essa dupla negação está no idioma já faz um bom tempo e se encontra na caneta dos nossos melhores escritores.

Colocação pronominal: ainda o ‘lhe’

Desde a publicação do post sobre o lhe acabei tropeçando em outros usos desse pronome.

O primeiro é interessante por mostrar que esse pronome também é usado como segunda pessoa, e não apenas como terceira, como eu tinha dito.

(1) Era exatamente o que eu procurava! Lhe dou 10 mil cruzeiros por ele! (clica aqui)

Marcos Bagno (Gramática Pedagógica do Português, Brasileiro, Parábola, p. 765) afirma que esse uso de lhe é regionalizado. Talvez fosse esse uso do lhe que o camarada citado no post anterior tinha em mente ao falar do seu uso por um personagem nordestino de novela.

Além disso, encontrei no ‘Gran cabaret demenzial’, de Veronica Stigger (Cosac Naif, 2007) os seguintes usos do pronome. Na medida em que a obra literária exemplifica o uso culto da nossa época, já que, na minha leitura, ela não constrói um narrador que se vale de formas coloquiais.

(2) Quando ela vinha lhe acordar, ele sempre dava-lhe um tremendo susto.” (p. 37)

(3) Rodolfo correu para socorrer Bianca e foi barrado por um dos fios de náilon estendidos no pátio, que lhe rasgou o terno, a camisa e lhe arranhou a pele. (p. 78)

As sentenças em (2) e (3) apresentam quatro usos de lhe. O verbo dar representa o uso canônico. Mas, de acordo com a minha intuição e com o Dicionário Aurélio, acordar, rasgar e arranhar são transitivos diretos. Em arranhar e acordar o objeto é paciente. Em rasgar, apesar de ser TD, o que parece estar sendo pronominalizado é um adjunto adnominal [cf. rasgou o terno dele] e não um objeto beneficiário (o que poderia justificar o uso do pronome pelo viés semântico).

Os dois exemplos que temos abaixo mostram a insegurança dos usuários dessa forma, pois no mesmo texto o verbo penetrar é usado como se tivesse duas regências diferentes. Nos dois casos, o verbo está sendo usado no sentido sexual. E me parece que nesse caso o verbo possui objeto direto.

(3) A vira-lata girava em torno de si revoltada, rosnando enlouquecidamente quando o maldito lhe penetrava por trás. (p. 39)

(4) Emputecido da vida, se lançou contra a baleia-sem-cu e tentou penetrá-la, mas em vão (…). (p. 41)

Pronomes: notas sobre a relação entre língua e sociedade

Estou trabalhando com os meus alunos do primeiro ano de letras um capítulo do livro do John Lyons (‘lingua(gem) e linguística), o capítulo sobre ‘linguagem e cultura’. Nele o autor fala da hipótese Sapir-Whorf, batizada em nome dos seus principais argumentadores, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, dois grandes linguistas americanos da primeira metada do século XX. O texto do Lyon possui um trecho em que fala dos pronomes em algumas línguas e de como eles revelam alguns fatos sobre as relações sociais nas diferentes sociedades. O português brasileiro não é diferente nesse aspecto e possui algumas características interessantes.

Temos três pessoas do discurso, a primeira, a segunda e a terceira, que podem variar em número e algumas em gênero. A relação entre ‘eu’ e ‘nós’ é de heteronímia. O mesmo acontece com o ‘tu’ em relação a ‘vós’. Já no caso de ‘você’, há a sua variação flexional plural o ‘vocês’ que atualmente funciona como segunda pessoa do plural para todos os falantes da língua portuguesa, pelo menos no Brasil. Mesmo cariocas, gaúchos ou florianopolitanos que possuem o ‘tu’ como pronome de segunda pessoa do singular não usam o ‘vós’ como segunda do plural. O pronome de terceira pessoa é o ‘ele’ e possui variações flexionais em gênero ‘ela’, e plural ‘eles/elas’. Há ainda quem diga que o ‘nós’ convive com a expressão ‘a gente’. É só reparar na fala de jornalistas e na publicidade “produtos e serviços que a gente confia”, dizia uma propaganda do UOL, na televisão, ou Roda Viva do Chico Burque, ‘tem dias que a gente se sente…’  Por mais que algumas gramáticas ainda se recusem a colocar o ‘você’ ao lado do ‘tu’, de fato é esse o pronome de segunda pessoa em grande parte do território nacional. Basicamente, é esse o quadro que temos para os pronomes pessoais.

Essa pequena passagem pelos pronomes pessoais foi para chegar no ‘você’. Como sabemos, ele surgiu do pronome de tratamento Vossa Mercê (já falecido), e foi se reduzindo para ‘vosmecê’ até chegar na sua forma atual. Em função dessa história, é possível que ainda pessoas idosas não aceitem ser chamadas por esse pronome, porque ele é de trato familiar. Embora, na sua história, o Vossa Mercê/Vosmecê fosse usado como forma de tratamento respeitoso do subordinado para com o seu superior. O mesmo vale para o ‘tu’, que também era usado somente entre iguais, ou por um superior para se dirigir ao seu subordinado. É mais ou menos isso o que nos diz Celso Luft no seu ABC da língua culta. Para ele o ‘você’ tende a substituit o ‘tu’. Além disso, “em algumas regiões, ‘você’ é trat. de superior para inferior, ou trat. repreensivo, ou ainda, deprec., injurioso (contrastanto com ‘o senhor, tu’). Reparar na gradação: ‘tu’ (íntimo) – você – o senhor (o amigo, o doutor, etc.) – vossa senhoria – vossa excelência.” Eu não vejo essa distinção. Embora eu tenha nascido na região oeste de SC, que usa o ‘tu’ por influência do RS (a cidade de São Miguel do Oeste foi fundada por gaúchos), vim para o PR que usa o ‘você’, em grande parte do seu território e acabei perdendo o ‘tu’. Apesar disso, me pego dizendo ‘eu te amo’ para minha mulher. Essa é outra marca dos falantes que usam o ‘você’: nas posições átonas, em geral posição de objeto direto, usamos o ‘te’ ao invés do ‘você’ ou do ‘seu’ possessivo usamos o ‘teu’, formas que correspondem ao ‘tu’.

No tratamento cerimonioso nossa língua dispõe de alguns recursos interessantes, muitas vezes pouco falados nas nossas gramáticas. Aprendemos com a família a tratar os mais velhos como ‘senhor’. Meu pai, por exemplo, nunca deixou que nos dirigissemos a ele como ‘você’. Hoje, tenho a impressão de que mesmo pessoas mais velhas não gostam de serem chamadas por ‘senhor’ ou ‘senhora’ já que esse pronome de tratamento marca distância, pouca familiaridade e é provável que a pessoa se sinta velha. O ‘senhorita’, forma respeitosa para se dirigir às moças solteiras, praticamente não se usa mais, a não ser pejorativamente como em ‘Onde a senhorita pensa que vai?’ (Imagine uma mãe repreendendo a filha). Mesmo com ‘o senhor/a senhora’ entrando em desuso, temos formas mais populares para marcar o respeito, como o ‘Seu’ e a ‘Dona’, ‘Seu João’, ‘Dona Maria’, etc. Soa íntimo, ao mesmo tempo em que denota respeito.

O desaparecimento da relação hierárquica entre o uso do ‘tu’ e do ‘você’ pode ser creditado à diminuição das diferenças entre as classes sociais no país. Hoje, mesmo aqueles que executam tarefas pouco valorizadas socialmente e financeiramente já ganham razoavelmente melhor do que ganhavam há algum tempo atrás, além do acesso ao crédito, que possibilita o acesso aos bens de consumo antes restritos a uma minoria, como motos, carros, casas, eletrodomésticos, etc. Acho que ninguém mais fica escandalizado por ver o porteiro do seu prédio jantando no mesmo lugar em que você costuma jantar.

Nas relações familiares, o comum é chamarmos a mãe e o pai pelos seus títulos: mãe! pai!, ou manhê!, paiê! E isso deve ser mais ou menos geral para todas as sociedades. Acho engraçado, na novela ‘Amor e Revolução’ os filhos do general se dirigirem ao pai como ‘general’ e não como pai. O mesmo vale para os avós, tem o ‘vô’ e a ‘vó’ ou a ‘nona’ e o ‘nono’ para os descendentes de italianos. A criança pode chegar até uma boa idade sem saber os nomes dos avós. Apesar de que em alguns casos o nome vem acompanhando do laço, como Vó Celina, ou Vô Sadi, para separar dos avós paternos como Vó Iracema ou Vô Cândido. O mesmo vale para os tios, Tio Juca, Tio Chico. Já os primos, como são iguais são tratados pelo nome mesmo, e os irmãos idem. Em alguns casos irmãos tratam-se entre si por ‘mano’. Daí pode-se ter o ‘mano’ e ‘mana’, tenho primos que se tratam dessa forma entre si (não confundir o ‘mano’ vocativo – similar a ‘cara’, ‘brother’, etc, cujo feminino é ‘mina’). Há casos interessantes, como o que ocorre quando o casal possui filhos e passam a se chamar de ‘pai’ e ‘mãe’. A esposa chama o marido de ‘pai’ e o marido a esposa de ‘mãe’. Tenho a impressão de que isso anula, de alguma forma, a sexualidade da relação entre marido e mulher, e para as crianças eles são o pai e a mãe, não mais um homem e uma mulher (afinal, não dormimos com o pai e com a mãe, e isso parece proibido em todas as sociedades, a natureza sabe o que faz). Mas daí já estou partindo para uma sociologia de araque e para falar mais sobre isso eu teria que ler mais coisas.

Seria interessante dar uma olhada no funcionamento do ‘vosmecê’ no século XIX e ver, se possível, a partir de que data o ‘você’ começa a aparecer na escrita, taí uma história legal pra se contar. Também em que situações sociais ele era utilizado, marcando que tipo de relação hierárquica. Se alguém aí fora sabe essa história, me conte, eu gostaria muito de saber.