Por que (ainda) estão falando sobre o acordo ortográfico?

Me fiz essa pergunta ao ler um texto do Rodrigo Gonçalves na Gazeta do Povo sobre o tema. Ele esclarece os equívocos comuns. Para quem entende um pouquinho sobre como uma língua funciona ele não apresenta novidades, mas é sempre válido quando alguém da academia escreve um texto para ajudar o público leigo a entender melhor as coisas. Por que a escola não faz isso eu não entendo. A ortografia de uma língua não é a língua; um idioma não se reduz às convenções para representá-lo por escrito. A premissa me parece simples.
Na página onde estava o texto do Rodrigo, aparecia o link para outro texto sobre o assunto. Diogo Fontana, escritor e editor, segundo a minibiografia ao pé do texto, exibe os clichês de quem acha que sabe do que está falando, mas que provavelmente não deu um Google antes para conferir a veracidade de suas afirmações.
Pra começo de conversa ele fala de oito acordos ortográficos. Oito! Mário Perini e Lúcia Fulgêncio (Gramática descritiva do português brasileiro, Vozes, 2016), por um lado, ou Rodolfo Ilari e Renato Basso (O português da gente, Contexto, 2009), por outro, só mencionam três: vamos dizer que a reforma proposta por Gonçalves Viana em 1911 conte como um primeiro acordo no séc. XX; daí vem o de 1945; e agora o de 1990. Talvez tenham ocorrido outros que a literatura não mencione…  vai que… Mas esse aí de 2009, que o Lula assinou em 2004, já estava homologado em 1990. Só faltava os países aceitarem (ou “acordarem” mesmo, até onde sei).
Um segundo ponto que me soa completamente equivocado é o seguinte, que ele desenvolve a partir dos “oito” acordos.
“Essa flutuação do idioma rompe o elo entre as gerações. Pais aprendem a escrever de um modo diferente dos seus filhos. Nunca, em lugar nenhum, ergueu-se uma grande cultura em alicerces assim movediços. A língua portuguesa muda tanto no Brasil, e tão rapidamente, que não tarda o dia em que o acesso aos clássicos estará obstruído para sempre, e os livros de um Cruz e Sousa, ou de um Machado de Assis, serão leitura para especialistas em Linguística e Filologia.”
“Flutuação do idioma”? Não sei como escrever veem ou vêem é capaz de fazer um idioma flutuar, mas tudo bem (acho que ele deveria ler o texto do Rodrigo, para não misturar a língua com a sua ortografia). Camões escrevia hum, naõ, ingrês, e se a gente for ler ele hoje, vai suar um pouco, mas lê de boa. Só que não precisa. As novas edições atualizam a ortografia. Nesse ponto o problema não é a atualização, é o fato de que iremos conviver ainda por um tempo com livros nas duas grafias. Assim como acontece quando pegamos livros dos anos 50, 40 ou 30… Pra um profissional da escrita ele me parece ter pouca convicção na reedição de livros.
Ele fala de anos de discussão nas universidades… não sei de onde tirou isso também. Muitos linguistas escreveram sobre o acordo. Até saiu uma edição especial de uma revista acadêmica, a Linguasagem (UFSCar) sobre o tema: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/especial_ao/. Só que segundo Perini e Fulgêncio, não teve participação alguma da academia no acordo. Aliás, o tom de estudiosos como Mario Perini, Lúcia Fulgêncio, Carlos Alberto Faraco e Luiz Carlos Cagliari, em geral, é de crítica à reforma. Uma por que a simplificação alegada não ocorreu. Perini afirma que trocamos um sistema ruim por outro ruim, e dá seus motivos no seu texto. E outra porque a afirmação que a unificação da ortografia poderia beneficiar a indústria editorial brasileira e a promoção da língua portuguesa no exterior também não se seguem.
Por fim, tem a afirmação de que a ortografia é do Lula, “empurrada goela abaixo, na canetada de um presidente analfabeto”, uma declaração que só pode ser sacanagem, daquelas que um Augusto Nunes assinaria com gosto. Como tá na moda falar mal do Lula, qualquer bobagem que se atribua a ele a Gazeta do Povo publica sem receio.

Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.

O deputado mineiro que queria proibir Guimarães Rosa nas escolas

A semana passada foi bem bagunçada e acabou que não consegui atualizar o blogue na sexta, por isso o texto saiu hoje. A ideia de publicar um post por semana (pelo menos), é para justamente me obrigar a ter uma rotina de escrita. E eis que duas coisas interessantes aconteceram na semana passada, consegui ver a palestra do Carlos Alberto Faraco no youtube e descobri o projeto de lei do deputado estadual Bruno Siqueira (PMDB). Bruno é de Juiz de Fora, e é formado em engenharia civil. O projeto do deputado quer defender a língua portuguesa (clique aqui para ver o projeto). Mas defendê-la de quem? Dos seus próprios falantes? Daqueles escritores que contrariam a norma culta com objetivos estilísticos? Se o lugar da produção cultural brasileira escrita em vernáculo não é a escola também, onde ela deve ser consumida e apreciada? Nos guetos?
O texto do projeto de lei é o seguinte, foram suprimidos os trechos que listavam os autores que estariam proibidos de serem lidos nas escolas mineiras. Pelo menos é o que está na página:
“A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – O art. 2º da Lei nº 8.503, de 19 de dezembro de 1983, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 2º – (…)
Parágrafo único – Será priorizada a adoção de livros que não contrariem a norma culta da língua portuguesa.”
Art. 2º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Primeira coisa: qual a justificativa para isso? Com base em que tipo de estudo o autor da lei está excluindo livros que contrariem a norma culta? Por que desenterrar um projeto de 1983, que por alguma razão não foi aprovado na época em que foi elaborado. Pelo que eu entendo, as leis são propostas para melhorar a vida da população ou regular atividades sociais que precisem de regras, como o trânsito, a venda de armas e remédios, essas coisas. Por exemplo, o governo quer proibir o consumo de cigarros com sabor porque eles incentivam os jovens a fumar. Como as doenças decorrentes do fumo geram custos para a saúde pública, essa decisão tem um certo apelo, embora esteja lidando com o direito do cidadão se envenenar da maneira que julgar conveniente. Alguns fumam cigarros sabor menta, outros comem hambúrgueres e sorvetes do McDonald’s, outros preferem costela e cupim, outros ainda preferem bebidas alcóolicas. No final das contas não vejo nenhuma justificativa científica para esse projeto (o do ensino). Mas há uma, e ela é essencialmente ideológica.
Por que alguém iria proibir o português coloquial escrito de entrar nas escolas? Por que alguém acredita que ler os gibis do Chico Bento, as poesias de Patativa do Assaré, Manoel Bandeira e Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade entre muitos outros, é prejudicial ao ensino de língua portuguesa quando não há nenhuma evidência científica de que seja esse o caso? Ora, porque esses escritores justamente buscavam se expressar utilizando o português coloquial e mesmo o português culto brasileiro (não o português culto dos portugueses). Vejamos o que diz um trecho do poema “Evocação do Recife” de Manuel Bandeira: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua CERTA do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/Ao passo que nós/O que fazemos/É macaquear/A sintaxe lusíada.” A crença de que existe uma língua correta apenas e que é preciso defendê-la de seus falantes incultos é tão ingênua que chega a ser triste uma iniciativa como essa. Se o deputado tivesse conhecimento sobre a matéria que pretende legislar teria se dado ao trabalho de ler os parâmetros curriculares nacionais, documento oficial do estado que dá embasamento ao tratamento da língua no ensino básico. Vejamos o que nos diz o documento:
“Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa
livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma correta de falar, o de que a fala de
uma região é melhor da que a de outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da
língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua
difícil, o de que é preciso consertar”a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.” (BRASIL, 1998, p. 31)

Um pouco antes dessa discussão sobre o lugar da variação e da gramática no ensino, os parâmetros estabelecem o seguinte em relação ao texto literário:

“O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento
de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É
possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação
aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras
(valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de
leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a
profundidade das construções literárias.” (BRASIL, 1998, p. 27).

Bom, supondo que o deputado é um sujeito responsável, que quer fazer o bem para as pessoas e melhorar a qualidade do ensino nas escolas públicas, acho que ele não faria uma lei que proíbe as pessoas de dirigirem embriagadas, porque ele sabe que já existe uma lei que faz isso. Então porque ele está querendo fazer uma lei para dizer aos professores de língua portuguesa o que eles devem levar para seus alunos ler quando já há um documento oficial que faz esse trabalho? Por puro achismo. Justamente pelo preconceito com as variedades populares da língua portuguesa falada no Brasil. Elas não possuem nada de errado intrinsecamente. Suponha que você esteja aprendendo o português agora, como uma língua estrangeira, e na aula você aprenda que deve-se dizer coisas do tipo “Quero dez pães.”, só que quando você vai na padaria escuta as pessoas dizendo “Quero cinco pão.”, “Dois pastel de carne.” “Custa cinco real.”. Você não sabe muito bem porque essa diferença existe, e pergunta ao seu professor que responde: quem fala assim é ignorante, é errado falar assim. Essa resposta seria dada por um professor preguiçoso, ou por alguém que nunca se deu conta de que não existe nada mais feio ou mais bonito em “dois reais” e em “dois real”, o valor que atribuímos à primeira alternativa é social. É a forma correta porque é a forma usada pelas pessoas escolarizadas (as ditas cultas), por quem detêm o poder econômico, pelos advogados, pelos juízes, nossas leis são escritas utilizando-se dessa variedade da língua, nossos melhores escritores (os modernos são uns fanfarrões, querem fazer literatura com o português coloquial, veja se pode uma coisa dessas, que atrevimento!). Ou alguém acha que escolheriam a língua dos sertanejos, dos motoristas de ônibus, das empregadas domésticas e dos feirantes para redigir leis? Claro que não, porque esses falantes da língua não possuem prestígio social. O que a proposta do deputado faz é, além de menosprezar a língua das classes populares, menosprezar a produção cultural realizada com essa variedade do português. Por mais que o Chico Bento use uma versão caricata do ‘caipirês’ (isso é, ninguém fala exatamente daquele modo), por mais que Patativa e outros cordelistas, ou mesmo canções tradicionais como o cuitelinho ou alguns sambas de Adoniram Barbosa sejam parte do nosso arsenal artístico, projetos desse tipo as rebaixam ao estatuto de mero folclore (quem devem ficar confinadas aos botecos, às favelas, às feiras-livres), quando a variação (entendida como a possibilidade estrutural de se expressar a mesma informação se utilizando de estruturas linguísticas diferentes) é um fenômeno muito mais complexo que isso. A isso se acresce o fato de que o deputado sequer deve ter ouvido algum especialista no assunto. Nesse caso, deixo aqui a palestra que o prof. Carlos Alberto Faraco, da UFPR, ministrou em um seminário da Olímpiada de Língua Portuguesa. Mas nem precisava vir até aqui. Ele poderia ter dado um pulo na UFMG e batido um papo com o Mário Perini.

Fechem as escolas! Uma resposta a Ferreira Gullar

Reproduzo abaixo o artigo de Ferreira Gullar, publicado na Folha, no último domingo 25/03. O artigo recebeu uma réplica de Hélio Schwartsman, hoje. O texto do poeta segue em itálico, os negritos são meus. Eu volto depois, pra comentar.

DA FALA AO GRUNHIDO – Ferreira Gullar

DESCONFIO QUE, depois de desfrutar durante quase toda a vida da fama de rebelde, estou sendo tido, por certa gente, como conservador e reacionário. Não ligo para isso e até me divirto, lembrando a célebre frase de Millôr Fernandes, segundo o qual “todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano”.

Divirto-me porque sei que a coisa é mais complicada do que parece e, fiel ao que sempre fui, não aceito nada sem antes pesar e examinar. Hoje é comum ser a favor de tudo o que, ontem, era contestado. Por exemplo, quando ser de esquerda dava cadeia, só alguns poucos assumiam essa posição; já agora, quando dá até emprego, todo mundo se diz de esquerda.

De minha parte, pouco se me dá se o que afirmo merece essa ou aquela qualificação, pois o que me importa é se é correto e verdadeiro. Posso estar errado ou certo, claro, mas não por conveniência. Está, portanto, implícito que não me considero dono da verdade, que nem sempre tenho razão porque há questões complexas demais para meu entendimento. Por isso, às vezes, se não concordo, fico em dúvida, a me perguntar se estou certo ou não.

Cito um exemplo. Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz dizer “nós vamos” como “nós vai”.

Ouço isso e penso: que sujeito bacana, tão modesto que é capaz de sugerir que seu saber de nada vale. Mas logo me indago: será que ele pensa isso mesmo ou está posando de bacana, de avançadinho?

E se faço essa pergunta é porque me parece incongruente alguém cuja profissão é ensinar o idioma afirmar que não há erros. Se está certo dizer “dois mais dois é cinco”, então a regra gramatical, que determina a concordância do verbo com o sujeito, não vale. E, se não vale essa nem nenhuma outra -uma vez que tudo está certo-, não há por que ensinar a língua.

A conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.

Mas esse vale-tudo é só no campo do idioma, não se adota nos demais campos do conhecimento. Não vejo um professor de medicina afirmando que a tuberculose não é doença, mas um modo diferente de saúde, e que o melhor para o pulmão é fumar charutos.

É verdade que ninguém morre por falar errado, mas, certamente, dizendo “nós vai” e desconhecendo as normas da língua, nunca entrará para a universidade, como entrou o nosso professor.

Devo concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opinião crítica com preconceito?

As minorias, que eram injustamente discriminadas no passado, agora estão acima do bem e do mal. Discordar disso é preconceituoso e reacionário.

E, assim como para essa gente avançada não existe certo nem errado, não posso estranhar que a locutora da televisão diga “as milhares de pessoas” ou “estudou sobre as questões” ou “debateu sobre as alternativas” em vez de “os milhares de pessoas”, ” estudou as questões” e “debateu as alternativas”.

A palavra “sobre” virou uma mania dos locutores de televisão, que a usam como regência de todos os verbos e em todas as ocasiões imagináveis.

Sei muito bem que a língua muda com o passar do tempo e que, por isso mesmo, o português de hoje não é igual ao de Camões e nem mesmo ao de Machado de Assis, bem mais próximo de nós.

Uma coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais primários.

Mas a impressão que tenho é de que estou malhando em ferro frio. De que adianta escrever essas coisas que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a fala errada cem vezes por hora para milhões de telespectadores?

Pode o leitor alegar que a época é outra, mais dinâmica, e que a globalização tende a misturar as línguas como nunca ocorreu antes. Isso de falar correto é coisa velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas grunhindo.

VOLTEI. Vou comentar alguns trechos específicos, que contêm alguns equívocos.
a) Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz dizer “nós vamos” como “nós vai”.
Cientificamente ninguém conseguiu provarque a pessoa que diz “nós vamos” é mais inteligente ou mais competente para o que quer que seja do que a pessoa que diz “nós vai” e esteta algum consegue provar que uma é mais bonita que a outra. Critérios do tipo ‘a primeira opção soa melhor’ tampouco são justificáveis. Isso é uma coisa. Agora, as duas opções expressam exatamente a mesma informação, e é disso que se fala quando se diz que não há certo ou errado. É um equívoco imaginar que a escola não deva ensinar ao garoto que lá chega falando “nós vai” que existe a forma “nós vamos”. Para o oposto, no caso do aluno que chega falando “nós vamos”, ele precisa entender que o coleguinha que fala “nós vai”, ou “a gente vai/vamos” não é melhor ou pior que ele. Acontece que a escrita formal exige que se use uma forma apenas “nós vamos”, e essa é a considerada correta por motivos políticos. E não venham me acusar de que isso é papo de esquerda, porque não é. É um fato histórico. Escolheu-se a variedade culta em detrimento do coloquial para ser o padrão brasileiro, e se isso não é um fato político é o que então? (Sugestão de leitura: Carlos A. Faraco “Norma culta brasileira”, vai ser esclarecedor)
b) A conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.
Outro equívoco do poeta. Suponha que abolíssemos o certo e o errado no ensino de português. Há quem defenda que se substituam esses termos por ‘adequado’ e ‘inadequado’, suponho que era disso que o tal professor (quem mesmo, Gullar?) estava falando, mas provavelmente Gullar enfureceu-se só de ouvir que não existe certo e errado e nem se deu ao trabalho de ouvir o restante. Pois bem, pode-se demonstrar facilmente que há tanta concordância verbal em “nós vamos” quanto há em “nós vai”. Só que a concordância que o indivíduo (ou a comunidade de indivíduos) usa não é a considerada ‘correta’. O que faria dela a ‘errada’ por default, não por critérios científicos. Os falantes não inventam regras gramaticais, eles apenas seguem as regras que a sua comunidade segue (é disso que o Hélio S. fala). Querer que um sertanejo ou um gari fale “nós vamos” é o mesmo que pedir que eles usem terno e gravata no serviço.
c) Devo concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opinião crítica com preconceito?
Repito aqui as palavras de Sírio Possenti em “Por que (não) ensinar gramática na escola”: “O objetivo do ensino de português na escola é ensinar o português padrão [ou a norma padrão ou o português culto], ou, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.” (p. 17). Repare que ensinar o português padrão/culto não exclui a possibilidade de se reconhecer que o português falado no Brasil possui regras variáveis do tipo discutido pelo poeta, e falar disso faz parte do trabalho do professor. Ensinar quando se pode usar uma e quando se deve usar a outra é tarefa básica.
d) Uma coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais primários.
Acho que estamos diante de uma contradição aqui. Em parágrafo anterior o autor afirma estar consciente de que as línguas mudam. No trecho que eu destaquei ele se posiciona contra a mudança. Quem são os falantes para mudarem a língua, quem eles pensam que são! Me desculpe aí, Gullar, mas eu assisto filmes, jogos de futebol e outras coisas (espero que se ele me ler, entenda a ironia). A lógica natural do idioma é a mudança, e o que você, ou eu deveria dizer, Vossa Mercê, está chamando de ‘erros gramaticais primários’ são um simples reflexo dessa mudança.
e) Isso de falar correto é coisa velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas grunhindo.
Acho que ficou clara a minha posição sobre esse história de certo/errado. Eu só não entendi de onde ele tirou essa história de que quem fala “nós vai” ou “estudou sobre as questões” está grunhindo. Vai ver ele mudou deliberadamente o significado do verbo ‘grunhir’ e não nos contou. Epa! Quem ele pensa que é pra mudar assim o significado de uma forma da língua!
Resumindo a ópera: na verdade falar em certo/errado ou adequado/inadequado é a mesma coisa, sendo cru e rasteiro. À linguística o que é da linguística, à escola o que é da escola, dirão alguns, como o prof. Carlos Moreno (que possui um compromisso abstrato com a cultura, como se quem defendesse a valorização dos falares coloquiais fosse contra a cultura dita erudita, ou vai me dizer que Patativa do Assaré não é cultura?). O papel da linguística é justamente mostrar que há tanta gramática e concordância em “nós vamos” quanto em “nós vai” ou “a gente vai/vamos”. Por que é tão difícil compreender que é justamente esse o papel da escola, mostrar que dentre as quatro opções disponíveis no sistema da língua só uma é aceita como a correta em termos de escrita. Isso é democracia, não achar que quem fala “nós vai” é primitivo e ignorante, ou devo interpretar o verbo ‘grunhir’ aqui como um elogio?. Na fala temos outra situação. Ou vai me dizer que o Ferreira Gullar se arrepia todo quando ouve o Emílio Zurita dizer “A gente vai agora ver uma matéria que…”. “A gente vai” é sim a norma no português coloquial televisivo. É errado? Errado pra quem? Por que seria errado? Só porque é novo?

Legislando sobre a língua

Na semana passada dei umas pinceladas sobre o ‘erro de português’. Claro que em função do espaço e dos objetivos do blogue não daria pra se aprofundar muito. Talvez cada uma das modalidades de erro mereça um post à parte, ou uma série de posts. Além do livro citado na semana passada (Norma Culta Brasileira, Carlos A. Faraco, Editora Contexto), existe também no mercado uma coletânea de artigos organizada por Marcos Bagno (Linguística da Norma, Editora Loyola), com vários textos de especialistas na área que discutem facetas do problema da norma culta brasileira em várias dimensões (política, pedagógica, ideológica, histórica, etc.). Se você ainda, por um acaso, acreditar que esse é um problema só do português falado no Brasil, dá uma olhada no capítulo “language mavens” do Instinto da Linguagem de Steven Pinker. Lá verá que os americanos também possuem vários consultórios gramaticais em seus jornalões. No post de hoje quero argumentar que os legisladores são mais realistas que o rei. Com isso quero dizer que os consultores gramaticais e os metidos que ficam por aí dando dicas de como escrever correto tomam “recomendação” por “obrigação” e não conseguem admitir a existência de duas formas de uso de uma mesma expressão linguística. Vamos a alguns exemplos. Vou seguir mais ou menos o que o Faraco faz no seu livro pra ilustrar alguns casos simples.

“Presidenta”. Suponha que um biólogo misture os genes de um limão com alguma outra coisa e dali saia um limão doce. Ele planta a dita árvore e a partir daí a árvore passa a dar limõezinhos doces. Alguém cético dirá que não existem limões doces e que isso só pode ser uma aberração. A palavra ‘presidenta’ sofre do mesmo mal. Para fazer o feminino da maioria das palavras que variam em gênero temos o sufixo –a, que é adicionado no final das palavras. Se algum falante criou a palavra, claro que ela existe. Mesmo que ainda não esteja presente em algum dicionário. As línguas são sistemas naturais, e é inevitável que elas se adaptem às necessidades comunicativas dos seus falantes. Daí que novas palavras surgem ou palavras velhas adquirem novos significados. O ABC da língua culta de Celso Luft admite ‘presidenta’. Qual é o problema então? (Até o Pasquale Cipro Neto aceita!) O problema é sociológico: mulheres não ocupam, costumeiramente, cargos de presidente, logo, é normal que se estranhe uma palavra nova; Se os bons dicionários, como o Aurélio já registram a forma (mesmo antes da eleição presidencial passada), a explicação pra ojeriza em torno da palavra só pode estar no plano ideológico. Tinha até mesmo um texto condenando a forma. Só que o texto era atribuído a uma professora universitária da engenharia civil, que assumiu publicamente nunca ter escrito o artigo. Claro que esse tipo de coisa só aparece no anonimato, vai ver a pessoa tinha consciência da besteira que disse (Menos o Mainardi, Reinaldo Azevedo e alguns repórteres da Veja que não tem vergonha de assinar o que escrevem). Sempre surgem aquelas explicações de que “presidente” é particípio ativo do verbo presidir, e que portanto não deveria ser flexionado no feminino. Agora eu pergunto, é assim mesmo? Será que ainda existe na gramática do português (aquela que está na mente do falante e que qualquer criança de 5 anos domina perfeitamente) essa flexão verbal? Duvido muito. Pra ser ter uma ideia da mentalidade das pessoas que criticam a forma “presidenta”, chequem esse linque. Obviamente é um blogue escrito por algum babaca que não consegue mulher nenhuma, se fosse um homem responsável e assumisse as coisas que diz colocaria sua foto e identidades reais ali.

Imagem ilustrativa

A regência de alguns verbos. “Você já assistiu o novo episódio de House?” Essa é uma frase certamente corriqueira. Garanto que 90% da população brasileira hoje usa o verbo “assistir” como transitivo direto (TD), não como transitivo indireto (TI) “assistir a”. O Aurélio dá um sentido diferente para cada uso. O uso TI significa ‘ver, acompanhar visualmente’, e o uso TD significa ‘auxiliar, socorrer’, como em “Maria assistiu o doente.”. Só que no português contemporâneo não se usa mais o verbo ‘assistir’ com o segundo sentido, mesmo nas altas literaturas e nos salões da corte. O uso comum é como TD significando ‘ver, acompanhar visualmente’. Acontece que alguns dicionários ainda não se atualizaram nesse sentido e é normal que a imprensa seja conservadora e utilize a forma arcaica. Daqui algum tempo vai estar institucionalizado, porque perder tempo com isso? Veja que ele é de fato um verbo TD, já que permite passivização, como em “O filme foi assistido pela família toda.”, enquanto verbos TI clássicos não permitem, “Eu simpatizo com o João.” Vs. “*O João é simpatizado por mim.” (o asterisco * marca impossibilidade de uma oração desse tipo ocorrer na língua). Veja que no fundo é uma questão de modalidade de uso. Na fala a forma TD já tomou conta, mas como a escrita é mais conservadora, ainda levará um tempo para ela ser institucionalizada nas gramáticas e pararem de azucrinar com isso. Veja o caso do verbo “obedecer”, que é parecido. Que mãe nesse país diz “Obedeça ao professor, meu filho.”? Não muitas, quiçá nenhuma. Só que olha o que diz o Aurélio sobre esse verbo: “ocorre, em bons autores, a forma transitiva direta; é melhor, entretanto, na linguagem culta formal usar a regência indireta.” O mesmo nos diz Luft no ABC. E agora leia o que diz o Manual de Redação e estilo d’O Estado de São Paulo: “exige sempre a preposição ‘a’.” Tanto para “assistir” quanto para “obedecer”. E mais, o mesmo manual diz que é errado usar a forma passiva do verbo “assistir” (eu inventei um limão doce, então?). Só que com “obedecer”, pasmem, a voz passiva tá liberada! Legal, né? Vai entender. O detalhe é que a recomendação dos dicionários vale para linguagem culta formal, novamente, o português dos salões, da academia, dos magistrados… não há razão para o usuário comum se preocupar com isso. Pergunta: Por que não tem acento grave (a popular crase) nas placas “Obedeça a sinalização”?

Resumindo essa ária da ópera. Não sei se convenci vocês do ponto: certo ou errado é relativo. Obedecer as regras ou às regras requer antes de tudo conhecimento de como a língua funciona. E ela funciona à serviço dos usuários. Portanto, seguir ou não uma regência tem a ver, primeiramente com a gramática que está na sua mente e que ninguém te ensinou. Essa gramática influi na forma como escrevemos e para escrever com a correção que a gramática escolar tradicional (que é só uma tentativa de descrição dessa gramática que existe na sua mente de falante do português) exige, é necessário muito treino e estudo. E um estudo que mostre justamente essa diferença entre o que se recomenda e o que se espera de um bom usuário da língua escrita. Quanto à “presidenta” isso depende de muita coisa, mas principalmente de a comunidade de fala adotar a palavra. Se isso acontecer em uma geração ou duas ela já não será mais estranha. De outra forma ela vai cair no esquecimento, e não há decreto que mude isso.

Norma Culta Brasileira

A recente polêmica envolvendo os livros didáticos que supostamente ensinavam errado mostrou o profundo fosso que há entre a academia e a sociedade. O livro de Carlos Alberto Faraco, Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós (Parábola, 2008), tenta analisar algumas questões extremamente interessantes. A principal delas é esclarecer a diferença que há entre o que ele chama de Norma Culta/comum/standard e o que chamou de Norma Curta. Bem como, tenta entender porque tem um razoável espaço de diferença entre elas. Faraco lecionou na UFPR, onde também foi reitor, e atualmente está aposentado. É autor de inúmeros livros, entre eles Oficina de Texto, com Cristóvão Tezza, e Estrangeirismos: guerras em torno da língua, coletânea de artigos de vários linguistas brasileiros sobre o projeto de lei de autoria do deputado Aldo Rebelo, que queria regular o uso de estrangeirismos no país.

O livro é dividido em quatro capítulos. O primeiro busca caracterizar as noções de ‘norma’, e como deveríamos entender esses conceitos para que algumas coisas fiquem mais claras, quando da discussão do problema. Em seguida, Faraco busca as origens da nossa norma curta, revisitando uma polêmica que envolveu José de Alencar e outros intelectuais brasileiros no século XIX. O terceiro capítulo reconta a história da gramática no ocidente e mostra como esse tipo de pensamento é vivo ainda em nosso ensino. Por fim, o quarto capítulo propõe uma pedagogia da variação linguística, não muita distanciada do trabalho que autores como Marcos Bagno e Stela Maris Bortoni-Ricardo já vêm propondo.

A primeira questão não é tão simples, embora a maestria argumentativa de Faraco torne o tema muito mais claro para o leitor. O sentido de ‘norma’ é entendido de duas formas: o que é normal e o que é normativo. Dessa forma, ele procura distinguir a norma culta/comum/standard do que vai chamar de norma curta. A primeira é o registro do uso linguístico de fato atestado pela análise da fala e da escrita dos nossos falantes/escritores cultos, isto é, indivíduos com terceiro grau e residentes em centros urbanos. A segunda é a norma como imposta pelas nossas gramáticas. O autor dá inúmeros exemplos que mostram que em grandes áreas da nossa gramática temos duas possibilidades de se realizar uma construção linguística. Tem uma mais valorizada pela tradição e outra que é utilizada livremente. O que acontece é que os defensores da norma curta frequentemente tomam para si o dever de regular a língua e condenar formas plenamente aceitáveis e correntes no uso dos falantes cultos. O que torna a língua idealizada pela norma curta algo inalcançável, dado que mesmo os usuários cultos da língua não a utilizam.

As raízes dessa posição conservadora são resgatadas do séc. XIX, quando da redação do código civil e da polêmica envolvendo José de Alencar, frequentemente criticado por gramáticos, por usar construções do português coloquial da época. Na construção do nosso ideal de nação, da nossa identidade linguística, a nossa elite voltou os olhos para os escritores portugueses, não para a língua de fato usada pelos nossos intelectuais. A partir do momento em que nosso molde de língua passa a ser a intelectualidade portuguesa, é natural que se passe a criticar Alencar, e todos aqueles que estavam incorporando na sua escrita marcas da oralidade do português usado pelos brasileiros. Tanto é assim, que ainda hoje muitas gramáticas se recusam a listar o ‘você’ como pronome pessoal, apesar dele ser usado tanto aqui quanto em Portugal.

No terceiro capítulo, o autor conta a história do pensamento gramatical ocidental, desde o nascimento das gramáticas gregas até o surgimento das gramáticas das línguas europeias. Na raiz dessas gramáticas, estava o ideal de escrita que os usuários comuns deveriam aspirar, isto é, escrever como os bons escritores de algum período áureo da nossa história literária. As línguas, dizem os gramáticos, estão marchando para a decadência, e deveríamos nos espelhar nos bons escritores do nosso período clássico para escrevermos e falarmos melhor. Homero era o ideal dos gregos, Virgílio dos romanos, Camões, Padre Antônio Vieira e os portugueses do romantismo são os nossos. Daí a busca de exemplos nos escritores. Essa busca não é ingênua, os gramáticos tendem a buscar exemplos que ilustrem a regra que procuram defender, não o uso efetivo. Assim, eles veem o que querem ver, não o que está lá. Nisso também reside uma redução grosseira: anula-se as diferenças entre o português brasileiro e o português europeu. Se na escrita essa diferença é pequena (tanto é que lemos Saramago sem problema algum), o mesmo não acontece com a fala. E outro equívoco nasce aí, não falamos como escrevemos, e nem a escrita deve ser o guia para a pronúncia. A escrita é uma convenção. Veja o caso do acento na sílaba tônica. Apenas algumas palavras recebem acento nessa sílaba (as proparoxítonas, algumas oxítonas e algumas paroxítonas, por ex.: saúde). As palavras ‘assim’ e ‘aço’ possuem o mesmo som /s/, mas são escritas de forma diferente. A crise do ensino de língua portuguesa é diagnosticada como consequência do novo contingente de alunos que a escola pública brasileira começou a receber com a democratização do acesso à educação e do processo histórico de desvalorização do trabalho docente. Se a política pública do ensino de língua portuguesa mudou ao longo do tempo, não podemos afirmar que os conteúdos tenham mudado, tampouco a forma como eles são ensinados. O currículo é praticamente o mesmo desde o início do século XX, baseado no currículo montado para o Colégio Pedro II, que abrigou como seus professores grandes nomes da nossa tradição gramatical.

O capítulo que encerra o livro propõe que a escola discuta a variação, de modo que o aluno que chega na escola falando uma variedade do português diferente da norma culta/comum/standard seja capaz de dominá-la e usá-la com proficiência nas diferentes situações de comunicação que a sociedade demanda. Se comunicar com propriedade, modernamente, não tem sido encarado apenas como estar de acordo com a norma culta, mas também estar de acordo com a situação de comunicação. O domínio da gramática e de sua metalinguagem são condições necessárias, mas não suficientes. O problema passa também pelo fato dos nossos manuais de ensino ainda não terem incorporado os avanços da descrição do português que a linguística tem proporcionado. A incorporação desses estudos ainda é bastante limitada, quando não escolhida a dedo. Basta ver as referências das gramáticas atuais, como a de Faraco, Moura e Maruxo (Gramática, Ática) ou a do Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Lucerna/Nova Fronteira). Se se usam referências de trabalhos de linguistas, por que uns e não outros? E por que essas referências se encontram em notas de rodapé?

O livro possui uma série de méritos, e destaco aqui os dois primeiros capítulos como contribuição fundamental. Poucos autores discutiram o problema da norma com tanta clareza e objetividade. A coletânea de artigos organizada por Bagno, Linguística da Norma (Loyola, 2003) já foi um grande passo nesse sentido. E o livro de Faraco vem engrossar esse conjunto de estudos que procura entender porque ainda é tão forte na nossa sociedade essa crença mitológica de que os falares que não estão de acordo com a norma curta são estropiados ou errados, quando mesmo os usuários cultos da língua não a seguem. A polêmica toda em torno do livro didático fortalece ainda mais os argumentos de autores como Kanavillil Rajagopalan (Por uma linguística crítica, Parábola, 2003), que defendem que a linguística se aproxime mais da sociedade. Cada vez mais percebo que escrever livros e artigos em jornais de grande circulação não parece ser mais o suficiente. A gramática, como muitos já afirmaram, está ao lado das religiões. Tem uma verdade que ela nos traz e que é incontestável, mesmo por cientistas. A sociedade não consegue perceber que grande parte das regras ali impostas são arbitrárias, e que basta consultar duas ou três fontes para perceber que podemos encontrar facilmente divergências, principalmente em relação à regência verbal.

Nesse contexto, entendo como fundamental o papel do linguista na universidade. É ele quem forma professores. Assim, a educação linguística da sociedade passará necessariamente pela chancela dos professores que as universidades formam. Se queremos que a sociedade nos compreenda e respeite, precisamos formar professores que eduquem melhor a sociedade, que proporcionem uma educação do respeito linguístico e do uso efetivo das diferentes instâncias de uso da linguagem na sociedade. Ensinar a metalinguagem pode (e muitos diriam que deve) também ser tarefa básica. Se temos professores saindo dos nossos cursos de letras que não sabem a diferença entre ensinar a língua e ensinar sobre a língua, aí temos um problema que dificilmente será solucionado com livros de divulgação e artigos em defesa da diversidade.

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Na revista Piauí desse mês, n. 75, Clara Becker entrevistou Evanildo Bechara. Na página 50 ela escreve o seguinte: “Mas a disciplina que mais gostava era a matemática.”

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Sírio Possenti disse o seguinte na sua coluna do dia 09 de junho:

“Tem-se lido, nas últimas semanas, que a escola não deve ensinar lingüística, mas português (ou gramática). Ora, tanto as diversas teorias lingüísticas quanto as diversas gramáticas têm duas faces: adotam uma teoria sobre a linguagem e desenvolvem ou seguem métodos de descrição e explicação dos dados. As gramáticas não só ensinam como se deve falar e escrever, mas também ensinam (empurram goela abaixo) que há passivas sintéticas, sujeitos ocultos, objetos diretos pleonásticos, que os substantivos designam seres e os adjetivos, qualidades etc. (sem análise de dados, sem nenhum argumento convincente). A lingüística faz a mesma coisa: cada teoria tem sua “filosofia” da linguagem e sua abordagem descritiva e explicativa (acho que argumenta melhor). Se se pode ensinar gramática (descritiva), por que não ensinar linguística? Para sonegar conhecimento?”

Dá até pra imaginar um contra-argumento de um gramático…

Nóis mudemo

Muito bom esse texto de Fidêncio Bogo. Quem acha que não existe preconceito linguístico deveria ler.

Dois livros são básicos para que se entenda essa problemática toda em torno da norma culta. Carlos Alberto Faraco e o seu Norma Culta Brasileira (Parábola) e Marcos Bagno com Linguística da Norma (Loyola), esse último uma coletânea de artigos de vários linguistas brasileiros.

A Gramática é que é a dona da verdade

Isso é o que diz o sábio Carlos Eduardo Novaes. O texto é no mínimo engraçado e repete uma série de preconceitos que não ultrapassam um tratamento raso da questão. Dá até para usar como exercício para que calouros de Letras possam contra-argumentar.

Vou citar dois trechos do livro de Carlos Alberto Faraco (2008, Parábola) sobre o problema da norma culta:

O reconhecimento “…da diversidade contribuiu também para refinar … a percepção de que do ponto de vista exclusivamente linguístico, os diferentes modos sociais de falar e escrever a língua se equivalem: cada grupo de falantes realiza a língua por normas diferentes, mas nenhum deixa de ter suas normas.” (p. 54)

Eu não sei de onde se criou esse imaginário que afirma que os falares que não seguem a gramática normativa destroem a gramática da língua e são o caos (talvez daquela mentalidade dos séculos XVIII e XIX que afirmava que a mudança era fruto de desleixo e ignorância dos falantes). Todo falante segue algum tipo de norma ou regra, isso é um fato. Não dá para falar uma língua sem seguir alguma regra.

Ainda Faraco: “Alguém disse que, no nosso país, toda polêmica termina na gramática. Isso quer dizer que, à falta de argumentos para sustentar o debate, nosso costume é apelar para o trambique retórico, ou seja, tentar desqualificar o oponente apontando-lhe “erros” de português. Em outros termos, quando nos faltam argumentos, nosso último recurso é xingar o adversário de ignorante, ‘pois nem a língua sabe falar bem’.” (p. 65)

Interessante, não? Às vezes tenho a impressão que o Bagno está certo, o debate está sendo conduzido por não especialistas, o que só contribui para a desinformação.  A revista Isto É publicou matéria no dia 25/05/2011 entitulada “O assassinato da língua portuguesa“. O artigo tenta desqualificar Bagno, dizendo: “Bagno afirma que a linguagem reproduz desigualdades sociais – como se isso fosse uma descoberta assombrosa.” Claro que a descoberta não é dele, isso sempre foi um fato, não uma descoberta. Cristóvão Tezza é colocado como a voz dissonante entre os “especialistas” que criticam o livro, são eles: Cristóvão Buarque, Nélida Piñon, Fernando Morais, Ana Maria Machado e Marcos Villaça. Talvez o MEC devesse convidá-los para fazer parte da comissão que avalia os livros didáticos, já que eles parecem entender mais de ensino de língua do que o Tezza e tantos outros defensores do livro, que são tidos como minoria. Só pra constar tem um quadrinho ao lado na reportagem “As trapalhadas de Haddad”: novamente estão politizando uma questão que não é política. É política em um sentido, mas não é político-partidária. Para a reportagem, o método do livro causa estragos à aprendizagem, já que manteria os alunos na mesmice e não ensinaria o português culto. Será que eles estão certos? Eu queria saber como jornalista aprende a escrever nos cursos de jornalismo pelo país afora, será que é em aulas de gramática tradicional, aprendendo regência e concordância, colocação pronominal, ortografia, uso do acento grave, etc. ou em oficinas de produção escrita? Fica a pergunta…

O senador Cristóvam Buarque, estranhamente tem defendido posições conservadoras em relação à questão. O argumento para a valorização da língua que a criança traz de casa não é o argumento do preconceito. É a simples constatação: falamos de uma forma e escrevemos de outra; há um português popular e outro dito culto (embora a passagem de um a outro seja gradual e não dicotômica). Há preconceito também, mas não é esse apenas o ponto. A escola sempre ignorou a fala e sempre tratou a fala e a escrita como coisas iguais. Não são, repito. Há muito tempo linguistas defendem que se discuta a oralidade em sala de aula. Luiz Antonio Marcuschi (Da Fala para a escrita) e Ataliba Teixeira de Castilho (A língua falada no ensino de português) são apenas dois exemplos.

Eu fico por aqui. Recomendo dois sites:

Stella Maris Bortoni-Ricardo , professora na UnB, tem reunido alguns textos interessantes no seu site.

– O colega e amigo Rodrigo Gonçalves, professor na UFPR, também reuniu alguns textos no seu site.

Em tempo: Marcos Bagno e Evanildo Bechara foram entrevistados pela Folha Dirigida. Achei engraçado que o Bagno criticou a ABL e chamou o Bechara de conservador. A folha perguntou ao Bechara como ele se defende disso, e ele disse simplesmente que o que o Bagno defende em seus livros são ideias antigas no estudo da linguagem. Quer dizer, o seu argumento é desqualificar o atacante, não o ataque. Modestamente há opiniões bem contestáveis em tudo que o Bechara fala. Me estranha também que a entrevista que o Bechara concedeu seja bem maior que a do Bagno. O que também é estranho é ninguém falar de outros linguistas que defendem propostas similares às do prof. Bagno, e não são poucos. Daí fica parecendo que ele é um exército de um homem só.

Um trecho da entrevista do Bechara:

“O senhor conhece a proposta de reconhecimento de um “português brasileiro”, defendida pelo professor Marcos Bagno? A argumentação do professor da UnB procede? Por quê?

Monteiro Lobato dizia: “Assim como o português nasceu dos erros do Latim, o ‘brasileiro’ nascerá dos erros do português”. Ora, é degradante para um país nascer da miséria de outro. Certa vez, no Colégio Pedro II, o professor Hermes Parente Fortes escreveu uma tese para ingresso na instituição defendendo a existência de um “português brasileiro”. E o professor Oiticica (José Oiticica), catedrático de língua portuguesa, o examinou. O professor Oiticica disse a Hermes Parente Fortes: “eu vou passar a acreditar nessa tal de ‘língua brasileira’ quando o senhor traduzir para ‘brasileiro’ a oração do Pai Nosso. A característica de uma língua é a sua traduzibilidade. Se mudamos uma palavra por outra, isso não é tradução. O Espanhol é muito parecido com o Português.”

Ele sabe que a definição de ‘língua’ é mais política que linguística, não? Espero que sim, mas não é o que ele diz. Se a referência dele em mudança linguística é o Monteiro Lobato…Fica aí uma traduçãozinha do Pai nosso para o português brasileiro:

“Pai da gente que tá no céu, santificado seje o teu nome, venha até a gente o teu reino, seje feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia dá pra gente hoje, perdoa a gente pelas nossas ofensas, assim como a gente perdoa quem ofende a gente, não deixa a gente cair em tentação e livra a gente do mal. Amém.”

Abre aspas

Carlos Alberto Faraco, na Gazeta do Povo:

“O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito, está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre a história e a realidade social e linguística do Brasil.”

Sírio Possenti, na sua coluna no site (ou saite?) Terra:

“o linguista diz que a escola deve ensinar a dizer Os livro? Não. Nenhum linguista propõe isso em lugar nenhum (desafio os que têm opinião contrária a fornecer uma referência). Aliás, isso não foi dito no tal livro, embora todos os comentaristas digam que leram isso.”

Outro texto do Sírio, lamentando a dificuldade dos linguistas de se comunicar com a sociedade:

“O que me consola (ou desconsola de vez) é que, sempre que tive ocasião de dizer a algum físico que invejava sua sorte, porque as notícias sobre o que eles fazem são fiéis, ouvi invariavelmente a mesma resposta sardônica: “você acha isso porque não sabe física”.”

Maria Marta Pereira Scherre (2005), no livro “Doa-se lindos filhotes de poodle: variação linguística, mídia e preconceito”:

“…não devemos perder de vista a possibilidade de podermos contribuir para a codificação de uma norma mais realista, mais interessante, que contemple valores diversos, que reflita um pouco mais a nossa linguística e que restitua aos nossos alunos (ou que pelo menos não retire) o prazer de estudar português, dando vez à pluralidade de normas…

não sou contra a gramática normativa (nenhum lingüista tem essa postura): sou contra, sim, sua veneração cega, que gera necessariamente seu uso equivocado, humilhando o ser humano por meio do que ele tem de mais característico: do dom de dominar a sua língua.” (SCHERRE, 2005, p. 71).

Os grifos são meus, só para esclarecer algumas coisas.

* * *

Mônica Valdvogel entrevista Cristóvão Tezza e Marcelino Freire. Ela tenta gerar polêmica e sua fala só revela o seu profundo desconhecimento do assunto. Ou seja, uma jornalista profissional não é capaz de dar uma opinião melhor fundamentada do que aquela que seu tio dá no jogo de dominó com os amigos. Esse é o padrão Globo de jornalismo, que fala que nosso aluno não entende o que lê… pois olha, 90% dos jornalistas também não entenderam nada do que leram.

Ela fala em “escolha”. Só existe escolha quando há consciência das possibilidades. Se eu falo “assisti o filme” estou seguindo uma regra, diferente daquela forçada e fictícia (ou seja, inventada, decorada) daqueles que falam (e duvido aqui que alguem fale, embora alguns escrevam) “assisti ao filme”. Espero que ela tenha aprendido alguma coisa.