Não sei de onde se tira essa visão que se tem dos cursos de humanas como centros doutrinadores de esquerda, e como consequência, da formação de professores que irão repetir a lenga-lenga de que o capital é a raiz de todos os males do globo. É o discurso pronto que repete o autor dessa matéria publicada da Folha. Segundo ele, a mesmice nas redações do ENEM é fruto dessa práxis que fornece aos alunos modelos prontos de pensamento, ou visão de mundo.
Estudos sobre redação no vestibular do início dos anos 80 já apontavam isso (como o de Alcir Pécora, por exemplo, o clássico “Problemas de redação na escola”). Na maioria dos textos analisados pelo autor (o corpus era constituído por redações do vestibular da Unicamp, e imagino que pobre sequer cogitava prestar essa seleção naqueles anos) os textos abusavam de clichês e buscavam dar uma lição de moral no interlocutor, muito mais do que defenderem um ponto específico do tema de redação.
Haquira Osakabe, em um texto chamado “Considerações sobre o acesso ao mundo da escrita”, fala justamente do papel ideológico que o acesso à escrita coloca para as classes menos favorecidas. Ler e escrever, historicamente, sempre foi um privilégio das classes mais altas. Portanto, alfabetizar os pobres surge como uma necessidade de tornar o proletariado mais produtivo ao invés de fornecer a essa classe condições para ascender socialmente (mas é esse o papo, não?), ou ter acesso a um universo diferente daquele que apenas a oralidade proporciona (é isso que dizemos a eles, os alunos, também). Nesse sentido, o papel da escola, ao monitorar e fornecer as leituras para as crianças e jovens é justamente ‘doutrinar’ o indivíduo para o mercado de trabalho, ou ‘tranquilizá-lo’, como diz Osakabe. Agora, na medida em que a classe que assume o giz e a palavra deixa de ser a classe média, e passa a ser uma classe constituída por um contingente de sujeitos que toma o lugar deixado por sujeitos de classes mais altas, creio que é natural que o discurso contra o sistema seja mais saliente. Afinal, a escola deve fornecer condições para que o aluno saia dela e seja capaz de lutar contra tudo que está lá fora. Tranquilizá-lo, torná-lo simplesmente mais um indivíduo na massa, seria outra forma de doutrinação. Mas será que é isso mesmo que acontece? Eu duvido muito. Outra tese de Osakabe: ao se apropriar da escrita, o indivíduo entra num universo que lhe disponibiliza uma leitura do mundo já formulada. E é nisso que penso quando vejo o comentário do autor do texto na Folha.
Ninguém verá criatividade em redações de vestibular. Simplesmente porque a escola construiu historicamente o gênero ‘redação’ justo para matar qualquer saliência de criatividade ou espírito questionador. É muito mais simples o aluno ficar dentro do esquema previsível, não aparecer no texto, não deixar o ‘eu’ aflorar linguisticamente, colocando-se detrás de uma terceira pessoa falsamente objetiva, do que mostrar-se. É mais seguro. Por que é isso que a escola e a sociedade lhe ensinaram.[1] Ele tem medo de ser avaliado não apenas pelo ‘como’ (a gramática do seu texto) mas também pelo ‘o quê’. Nesse sentido, o indivíduo tenta construir no seu discurso uma imagem positiva (ou politicamente correta, se preferir), afinal, ele vai ser avaliado pelo que diz, não por quem ele de fato é. Portanto, emitir uma opinião que vá de encontro ao consenso (a publicidade é enganosa e manipuladora, por ex., seja ela infantil ou não) é uma estratégia de construção do seu ‘ethos’ discursivo, de mostrar uma imagem de autor que se acredita que será bem recebida e avaliada pelo leitor. Mesmo quando um polemista usa a estratégia de agredir o adversário no debate (como certo grupo de colunistas de direita faz) ele está construindo uma imagem que agrada ao seu leitor, o leitor que espera que ele faça isso, agrida o grupo adversário moralmente. Mas no caso de uma redação de vestibular ou concurso público, o leitor imediato da redação é o avaliador, e é para esse interlocutor que se escreve, não para a sociedade, ou para um grupo dentro dela.
A escola não ensina lucro, livre-iniciativa, bla-bla-blá, lamenta. E precisa? Olha o que acontece com a sociedade em tempos de crise? Provavelmente o autor do texto não teve uma mãe que precisou pintar panos de prato, fazer salgados ou qualquer outro tipo de trabalho manual caseiro para complementar a renda porque o pai estava desempregado, e tinha uma formação profissional tão especializada que ele não tinha outra oportunidade de trabalho senão aquela na qual ele permaneceu durante toda a sua vida. Em tempo de crise o pobre se vira. Faz um bico, vai vender Avon de porta em porta para os vizinhos, vai vender pastel na porta de fábricas etc. Se isso não é livre iniciativa, eu não sei o que é. Ou livre iniciativa é só a start-up que o mauricinho inicia com o dinheiro que o pai deu ou com o empréstimo que fez no banco dando como garantia algum bem da família? Não precisa ensinar o que é lucro. Luxo, conforto, um carro melhor, uma casa melhor, todo mundo quer. E isso não há doutrinação marxista que mate.
A publicidade não funciona, diz ele – só a marxista, logo, publicitários deveriam tomar aulas de persuasão com professores de história, digo eu. Vejam as vendas do McDonald’s, que só caem, diz ele (talvez as pessoas tenham se dado conta que por detrás da publicidade toda existe uma merda de um produto). Como não funciona? Vá a uma escola pública, veja o que os alunos rabiscam nas carteiras, nos cadernos: logotipos de marcas de roupa! Um guri da sétima série, muito antes de ter uma banda favorita, ou um time do coração, já desenha o símbolo da Nike, da Adidas, da Volcom e de qualquer outra marca. Mas o guri que chega ao final do processo, que foi doutrinado ao longo do ensino médio, não é burro. Ele sabe que pra conseguir comprar um tênis da Adidas, pra conseguir entrar na boate da moda, ele precisa de grana, ele precisa ter um bom emprego (ou entrar pro crime). E pra chegar lá, ele precisa passar por um vestibular, ou por um ENEM, e passar por essa seleção envolve dizer o que o patrão quer ouvir.
[1] Vejam essa coleção de dicas que o UOL dá. Entre elas: “copie textos”, como uma forma de exercício; outra: dê preferência para a terceira pessoa do singular ou a primeira do plural.