“Objeto Língua” é último livro publicado por Marcos Bagno. É uma coletânea de textos inéditos e alguns publicados em outros lugares, mas como ele esclarece na introdução, voltou a esses textos e fez algumas modificações neles.
Eu acho sempre ruim quando não se numeram os capítulos de livros, mas vá, lá, cada um com seus gostos. Isso é pra dizer que o livro tem 14 capítulos (sem contar a introdução e a conclusão) e o tamanho dos textos varia um pouco e o assunto deles também é diverso.
Os dois primeiros tratam da visão pessoal do Bagno sobre o tema da norma culta e seu ensino e discussão nas escolas. Minha impressão é que é mais bravata do que outra coisa o título do primeiro capítulo “A norma culta que se lasque!”, pois ele cita Carlos Alberto Faraco, cuja posição tem sido consistente e clara a esse respeito desde sempre: é preciso uma visão mais arejada sobre a norma padrão e seu ensino na escola, para que ela de fato se aproxime do uso culto das classes urbanas escolarizadas do país (estou citando de cabeça, posso omitir ou suavizar algo). Creio que seja mais uma provocação, como faz Magda Soares no seu clássico “Linguagem e escola”: precisa aprender a norma culta? Aprender para quê? Só se for para lutar contra o sistema que oprime o pobre. (também cito de cabeça). Porque no final das contas é isso. Dizemos que o acesso aos bens culturais das classes mais altas é um requisito para se ascender socialmente. Bagno questiona essa premissa. Ele em parte tem razão, embora o domínio de outra variedade de língua certamente seja um ganho intelectual, mas só isso não garante nada.
É um tema espinhoso e eu gosto desse tipo de provocação, pois além de lutar pelos méritos da norma culta real, Bagno faz questão de escrever usando ELA (como eu também gosto de fazer, pelo menos aqui, onde escrevo como quero).
Os capítulos que eu mais gostei no livro são os que tratam de tradução. Num o autor resenha um estudo que comparou a tradução das tiras completas da Mafalda publicadas em Portugal e no Brasil, cotejando as traduções com os sistemas pronominais das duas variedades de português, especialmente nesse aspecto. Ele discute o conceito de “oralidade fingida”, mostrando que as traduções colocam na boca dos personagens palavras e estruturas que não são nem de perto representações da fala brasileira contemporânea.
Os capítulos em que ele discute o que é uma língua também são bons. Assim como ele faz na sua “Gramática de bolso do português brasileiro”, a discussão sobre o que é uma língua passa pela discussão de aspectos políticos e ideológicos que recobrem o tema. Certamente não é uma questão que possa ser resolvida objetivamente. Mas talvez como resguardo, tanto na gramática quanto no capítulo “Quando surge uma língua nova?” ele lista uma série de aspectos gramaticais (fonéticos e morfossintáticos, especialmente) para mostrar que há “evidências concretas” de que as línguas são diferentes no plano objetivo. Esse movimento me parece algo como: tá, mesmo que você não compre minha argumentação de que a questão é política, veja que temos argumentos objetivos também para afirmar que o português brasileiro É uma língua diferente do português falado em Portugal.
Claro, essa argumentação passa também por agredir e desmontar o ideário de que A língua portuguesa seja a variedade codificada nas gramáticas, a norma-padrão (que não é a língua materna de ninguém, e, portanto, não poderia ser considerada um dialeto ou uma variedade no sentido sociolinguístico).
Na introdução Bagno cita Saussure (“o ponto de vista cria o objeto”) para deixar claro que o que une os textos é que eles expressam sua visão da língua. Tenho a impressão às vezes que esse subjetivismo e, por que não, relativismo, são nocivos ou uma espécie de armadilha que a gente faz pra si mesmo sem perceber. Embora ele fale em “evidências concretas”, até que ponto existem “fatos” se de saída o pesquisador afirma que é o ponto de vista que cria o objeto? Eu não poderia, do meu ponto de vista, dizer que essas variações de pronúncia entre o português brasileiro e o europeu sejam coisas menores? Afinal, do meu ponto de vista, a língua é o codificado na escrita, onde vemos diferenças desprezíveis. Lemos Saramago, Gonçalo Tavares ou Valter Hugo Mãe tranquilamente, não? Embora eu tenha cá pra mim que se os portugueses forem ler um Daniel Galera (especialmente as primeiras edições dos primeiros livros), um Geovani Martins ou um Ferréz a dificuldade será maior para eles.
Se do seu ponto de vista a língua é a fala, mas do meu é a escrita, por que a sua posição é mais “objetiva” do que a minha?
Tem muito de ideológico nesse debate, claro. Tentar reduzir ele a uma questão meramente epistemológica seria reducionismo da minha parte e aqui nesse espaço não vou ter tempo nem paciência para aprofundar a discussão. Só pra tentar fazer uma espécie de conclusão, eu sinto que essa discussão do “ponto de vista cria o objeto” deixa de mostrar que as línguas possuem sim uma face objetiva que é descrita e apreendida pelo estudo linguístico. Se a diferença entre o fone e o fonema é o ponto de vista, não podemos negar que exista uma realidade objetiva nos fones (a gente capta a realidade física deles nos espectrogramas e oscilogramas, não?) e que, embora seja uma abstração, os fonemas são uma tentativa teórica de entender e explicar o que acontece com os sons dentro do sistema gramatical das línguas.