Objeto língua: algumas impressões

“Objeto Língua” é último livro publicado por Marcos Bagno. É uma coletânea de textos inéditos e alguns publicados em outros lugares, mas como ele esclarece na introdução, voltou a esses textos e fez algumas modificações neles.

Eu acho sempre ruim quando não se numeram os capítulos de livros, mas vá, lá, cada um com seus gostos. Isso é pra dizer que o livro tem 14 capítulos (sem contar a introdução e a conclusão) e o tamanho dos textos varia um pouco e o assunto deles também é diverso.

Os dois primeiros tratam da visão pessoal do Bagno sobre o tema da norma culta e seu ensino e discussão nas escolas. Minha impressão é que é mais bravata do que outra coisa o título do primeiro capítulo “A norma culta que se lasque!”, pois ele cita Carlos Alberto Faraco, cuja posição tem sido consistente e clara a esse respeito desde sempre: é preciso uma visão mais arejada sobre a norma padrão e seu ensino na escola, para que ela de fato se aproxime do uso culto das classes urbanas escolarizadas do país (estou citando de cabeça,  posso omitir ou suavizar algo). Creio que seja mais uma provocação, como faz Magda Soares no seu clássico “Linguagem e escola”: precisa aprender a norma culta? Aprender para quê? Só se for para lutar contra o sistema que oprime o pobre. (também cito de cabeça). Porque no final das contas é isso. Dizemos que o acesso aos bens culturais das classes mais altas é um requisito para se ascender socialmente. Bagno questiona essa premissa. Ele em parte tem razão, embora o domínio de outra variedade de língua certamente seja um ganho intelectual, mas só isso não garante nada.

É um tema espinhoso e eu gosto desse tipo de provocação, pois além de lutar pelos méritos da norma culta real, Bagno faz questão de escrever usando ELA (como eu também gosto de fazer, pelo menos aqui, onde escrevo como quero).

Os capítulos que eu mais gostei no livro são os que tratam de tradução. Num o autor resenha um estudo que comparou a tradução das tiras completas da Mafalda publicadas em Portugal e no Brasil, cotejando as traduções com os sistemas pronominais das duas variedades de português, especialmente nesse aspecto. Ele discute o conceito de “oralidade fingida”, mostrando que as traduções colocam na boca dos personagens palavras e estruturas que não são nem de perto representações da fala brasileira contemporânea.

Os capítulos em que ele discute o que é uma língua também são bons. Assim como ele faz na sua “Gramática de bolso do português brasileiro”, a discussão sobre o que é uma língua passa pela discussão de aspectos políticos e ideológicos que recobrem o tema. Certamente não é uma questão que possa ser resolvida objetivamente. Mas talvez como resguardo, tanto na gramática quanto no capítulo “Quando surge uma língua nova?” ele lista uma série de aspectos gramaticais (fonéticos e morfossintáticos, especialmente) para mostrar que há “evidências concretas” de que as línguas são diferentes no plano objetivo. Esse movimento me parece algo como: tá, mesmo que você não compre minha argumentação de que a questão é política, veja que temos argumentos objetivos também para afirmar que o português brasileiro É uma língua diferente do português falado em Portugal.

Claro, essa argumentação passa também por agredir e desmontar o ideário de que A língua portuguesa seja a variedade codificada nas gramáticas, a norma-padrão (que não é a língua materna de ninguém, e, portanto, não poderia ser considerada um dialeto ou uma variedade no sentido sociolinguístico).

Na introdução Bagno cita Saussure (“o ponto de vista cria o objeto”) para deixar claro que o que une os textos é que eles expressam sua visão da língua. Tenho a impressão às vezes que esse subjetivismo e, por que não, relativismo, são nocivos ou uma espécie de armadilha que a gente faz pra si mesmo sem perceber. Embora ele fale em “evidências concretas”, até que ponto existem “fatos” se de saída o pesquisador afirma que é o ponto de vista que cria o objeto? Eu não poderia, do meu ponto de vista, dizer que essas variações de pronúncia entre o português brasileiro e o europeu sejam coisas menores? Afinal, do meu ponto de vista, a língua é o codificado na escrita, onde vemos diferenças desprezíveis. Lemos Saramago, Gonçalo Tavares ou Valter Hugo Mãe tranquilamente, não? Embora eu tenha cá pra mim que se os portugueses forem ler um Daniel Galera (especialmente as primeiras edições dos primeiros livros), um Geovani Martins ou um Ferréz a dificuldade será maior para eles.

Se do seu ponto de vista a língua é a fala, mas do meu é a escrita, por que a sua posição é mais “objetiva” do que a minha?

Tem muito de ideológico nesse debate, claro. Tentar reduzir ele a uma questão meramente epistemológica seria reducionismo da minha parte e aqui nesse espaço não vou ter tempo nem paciência para aprofundar a discussão. Só pra tentar fazer uma espécie de conclusão, eu sinto que essa discussão do “ponto de vista cria o objeto” deixa de mostrar que as línguas possuem sim uma face objetiva que é descrita e apreendida pelo estudo linguístico. Se a diferença entre o fone e o fonema é o ponto de vista, não podemos negar que exista uma realidade objetiva nos fones (a gente capta a realidade física deles nos espectrogramas e oscilogramas, não?) e que, embora seja uma abstração, os fonemas são uma tentativa teórica de entender e explicar o que acontece com os sons dentro do sistema gramatical das línguas.

 

Quem tem medo do português popular na literatura?

 (Ou: qual é o problema de começar uma frase com pronome oblíquo numa narrativa em primeira pessoa que usa um registro coloquial?)
Especialmente pra vocês que gostam de objetos, variação, revisão etc. Duas edições de “Até o dia em que o cão morreu”, do Daniel Galera.
“Não entendi no início. Me levantei e fui à sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Não entendi no início. Levantei e fui até a sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Dei um tapa na orelha dele, o levantei pelo couro, arrastei até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Livros do Mal, 2003, p. 17)
“Dei um tapa na orelha dele, levantei-o pelo couro, arrastei-o até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Companhia das Letras, 2007, p. 13)

A gente e as palavras

Em vários trabalhos William Labov mostrou que os falantes mudam sua expressão linguística se possuem consciência de que estão sendo monitorados. A maioria de nós tem consciência de que existe uma variedade de língua que é a correta, ou valorizada pela sociedade. Se nossa fala dista daquela em algum grau (por falta de escolarização, por morarmos longe dos centros urbanos etc.), normalmente, o falante tem uma atitude de menosprezo com sua própria fala. Quem se orgulharia de ‘falar errado’, não é mesmo?

Pois bem, não sei de onde surgiu a lista. Tomei conhecimento pelo Buzzfeed (que faz as listas mais massa da internet) e a vi chupinhada em vários lugares, inclusive no rádio, pelo Pretinho Básico (programa das 18h da Atlântida). A lista original do Buzzfeed traz uma série de palavras que exemplificam fenômenos diversos: imbigo/umbigo, tauba/tábua, zap-zap/Whatsapp, mindingo/mendigo, adevogado/advogado, pobrema/problema, guspe/cuspe, iorgute/iorgute.

O caso de imbigo é um mistério pra mim, embora, à primeira vista, temos a troca de um segmento por outro. O que difere u e i é a posição da língua em relação à boca. Na articulação do primeiro segmento a língua está avançada, e na do segundo, recuada. Mindingo é fácil. Há duas coisas acontecendo aqui. Primeiro, normalmente, nas sílabas átonas (pré ou pós-tônicas) as vogais médias são alçadas. Em outros termos. No português coloquial, em muitos lugares do país, onde temos um e ou um o, a tendência é que em posições átonas essas vogais virem u ou i. Do ponto de vista articulatório, a única diferença entre esses pares e/i, de um lado, e o/u de outro é a altura da língua. Dizemos que i e u são vogais altas, enquanto e e o são vogais médias (a figura ilustra isso). É por isso que falamos zueira e não zoeira, mininu e não menino, leitchi e não leite. Claro. Há regiões do país em que essa pronúncia não ocorre (alguns lugares do sul). Nesses lugares ouviremos menino, leite, zoeira, mendigo. E aquele n, de onde saiu? Ele surge por assimilação (fonólogos, me corrijam se eu estiver errado), a nasalidade da primeira sílaba passa pra segunda. Há dois segmentos nasais na primeira sílaba, m e en – por mais que tenhamos duas letras aqui, o som é apenas um.

Tauba e iorgute podem ser envolvidos no mesmo conjunto (acredito), pois envolvem a mudança de sílaba de um segmento. u estava na segunda sílaba e pulou para a primeira. O mesmo com o r de iogurte. Esse fenômeno, tecnicamente chamado de metátese, é bastante comum na história do português e produziu palavras que hoje nos soam naturais, mas que tinham pronúncia diversa no latim. Alguns exemplos: inter (latim)/entre (português); semper (latim)/sempre(português).

Pobrema envolve duas coisas. Talvez seja a mistura de rotacismo (a troca de l por r) e o fenômeno anterior.

Adevogado também envolve dois fenômenos. O primeiro é a epêntese, que é a inserção de uma vogal onde antes ela não existia. Como a estrutura silábica do português não admite (aqui no sentido natural da coisa, não no sentido normativo) sílaba que termine por consoante oclusiva, a tendência natural é inserirmos uma vogal, o fechamento comum de sílaba na nossa língua. Isso ocorre com peneu/pneu, pisicólogo/psicólogo, páquito/pacto etc. Como a sílaba é pretônica, o natural é que a vogal seja um i, como de fato é o caso. Mas por que, então, e? Ora, o falante erra tentando acertar (a hipercorreção, corrige onde não deve), justamente por que normalmente nas posições átonas onde pronunciamos i, essa vogal é uma variante de e.

Guspe é um caso mais complicado. Mas também envolve uma mudança comum na articulação desse tipo de consoante. A diferença articulatória entre g [g] e c [k] é somente um traço, a vibração das cordas vocais. A vibração que inexiste em [k] é acrescentada na produção do segmento, gerando [g]. Como não muda o significado da palavra, não há problema comunicativo. Esse é um processo bastante comum, e deu origem a lobo (do latim, lupum), vida (do lat., vita), água (do lat. acqua).

Bom, mas por que eu falei de atitude do falante? Vejam que a lista do Buzzfeed trata com bom humor essas pronúncias (embora também as classifique como ‘erros’). Afinal, elas fazem parte do nosso cotidiano, e são características do português coloquial falado por classes populares com baixa escolaridade em grande parte do país (logo, menos influenciáveis pela escrita). É mais gostoso falar assim porque esse é o vernáculo (é a língua que aprendemos com a família, com a mãe, com os vizinhos na rua), a língua que aprendemos sem instrução formal. O Blog do Jair Kobe (o Guri de Uruguaiana) pegou a lista e a desvirtuou: a transformou em “18 coisas faladas errado que ‘te dá nos nervo'”. Como é que um humorista que se utiliza justamente de traços típicos da fala gaúcha para construir seu personagem tem essa atitude perante tais fenômenos? Talvez por um pré-conceito, uma visão equivocada e ingênua do que seja a variação. O que é o certo é o que eu falo, ou uma variedade de língua inalcançável, a língua padrão. O que vale é a versão escrita da palavra (um dos mitos mais difíceis de desconstruir). Como assim, meu? Por que daria nos nervo de alguém a pronúncia natural de um grupo de palavras? Suponho que ela só irritaria quem fala de forma diferente.

Pra saber mais: Mário Eduardo Viaro. Etimologia. Contexto. No livro o autor apresenta uma série de fenômenos responsáveis pela mudança na forma das palavras. Muitos dos processos que produziram as mudanças no latim que originaram as línguas românicas ainda estão ativos no português.

Legislando sobre a língua

Na semana passada dei umas pinceladas sobre o ‘erro de português’. Claro que em função do espaço e dos objetivos do blogue não daria pra se aprofundar muito. Talvez cada uma das modalidades de erro mereça um post à parte, ou uma série de posts. Além do livro citado na semana passada (Norma Culta Brasileira, Carlos A. Faraco, Editora Contexto), existe também no mercado uma coletânea de artigos organizada por Marcos Bagno (Linguística da Norma, Editora Loyola), com vários textos de especialistas na área que discutem facetas do problema da norma culta brasileira em várias dimensões (política, pedagógica, ideológica, histórica, etc.). Se você ainda, por um acaso, acreditar que esse é um problema só do português falado no Brasil, dá uma olhada no capítulo “language mavens” do Instinto da Linguagem de Steven Pinker. Lá verá que os americanos também possuem vários consultórios gramaticais em seus jornalões. No post de hoje quero argumentar que os legisladores são mais realistas que o rei. Com isso quero dizer que os consultores gramaticais e os metidos que ficam por aí dando dicas de como escrever correto tomam “recomendação” por “obrigação” e não conseguem admitir a existência de duas formas de uso de uma mesma expressão linguística. Vamos a alguns exemplos. Vou seguir mais ou menos o que o Faraco faz no seu livro pra ilustrar alguns casos simples.

“Presidenta”. Suponha que um biólogo misture os genes de um limão com alguma outra coisa e dali saia um limão doce. Ele planta a dita árvore e a partir daí a árvore passa a dar limõezinhos doces. Alguém cético dirá que não existem limões doces e que isso só pode ser uma aberração. A palavra ‘presidenta’ sofre do mesmo mal. Para fazer o feminino da maioria das palavras que variam em gênero temos o sufixo –a, que é adicionado no final das palavras. Se algum falante criou a palavra, claro que ela existe. Mesmo que ainda não esteja presente em algum dicionário. As línguas são sistemas naturais, e é inevitável que elas se adaptem às necessidades comunicativas dos seus falantes. Daí que novas palavras surgem ou palavras velhas adquirem novos significados. O ABC da língua culta de Celso Luft admite ‘presidenta’. Qual é o problema então? (Até o Pasquale Cipro Neto aceita!) O problema é sociológico: mulheres não ocupam, costumeiramente, cargos de presidente, logo, é normal que se estranhe uma palavra nova; Se os bons dicionários, como o Aurélio já registram a forma (mesmo antes da eleição presidencial passada), a explicação pra ojeriza em torno da palavra só pode estar no plano ideológico. Tinha até mesmo um texto condenando a forma. Só que o texto era atribuído a uma professora universitária da engenharia civil, que assumiu publicamente nunca ter escrito o artigo. Claro que esse tipo de coisa só aparece no anonimato, vai ver a pessoa tinha consciência da besteira que disse (Menos o Mainardi, Reinaldo Azevedo e alguns repórteres da Veja que não tem vergonha de assinar o que escrevem). Sempre surgem aquelas explicações de que “presidente” é particípio ativo do verbo presidir, e que portanto não deveria ser flexionado no feminino. Agora eu pergunto, é assim mesmo? Será que ainda existe na gramática do português (aquela que está na mente do falante e que qualquer criança de 5 anos domina perfeitamente) essa flexão verbal? Duvido muito. Pra ser ter uma ideia da mentalidade das pessoas que criticam a forma “presidenta”, chequem esse linque. Obviamente é um blogue escrito por algum babaca que não consegue mulher nenhuma, se fosse um homem responsável e assumisse as coisas que diz colocaria sua foto e identidades reais ali.

Imagem ilustrativa

A regência de alguns verbos. “Você já assistiu o novo episódio de House?” Essa é uma frase certamente corriqueira. Garanto que 90% da população brasileira hoje usa o verbo “assistir” como transitivo direto (TD), não como transitivo indireto (TI) “assistir a”. O Aurélio dá um sentido diferente para cada uso. O uso TI significa ‘ver, acompanhar visualmente’, e o uso TD significa ‘auxiliar, socorrer’, como em “Maria assistiu o doente.”. Só que no português contemporâneo não se usa mais o verbo ‘assistir’ com o segundo sentido, mesmo nas altas literaturas e nos salões da corte. O uso comum é como TD significando ‘ver, acompanhar visualmente’. Acontece que alguns dicionários ainda não se atualizaram nesse sentido e é normal que a imprensa seja conservadora e utilize a forma arcaica. Daqui algum tempo vai estar institucionalizado, porque perder tempo com isso? Veja que ele é de fato um verbo TD, já que permite passivização, como em “O filme foi assistido pela família toda.”, enquanto verbos TI clássicos não permitem, “Eu simpatizo com o João.” Vs. “*O João é simpatizado por mim.” (o asterisco * marca impossibilidade de uma oração desse tipo ocorrer na língua). Veja que no fundo é uma questão de modalidade de uso. Na fala a forma TD já tomou conta, mas como a escrita é mais conservadora, ainda levará um tempo para ela ser institucionalizada nas gramáticas e pararem de azucrinar com isso. Veja o caso do verbo “obedecer”, que é parecido. Que mãe nesse país diz “Obedeça ao professor, meu filho.”? Não muitas, quiçá nenhuma. Só que olha o que diz o Aurélio sobre esse verbo: “ocorre, em bons autores, a forma transitiva direta; é melhor, entretanto, na linguagem culta formal usar a regência indireta.” O mesmo nos diz Luft no ABC. E agora leia o que diz o Manual de Redação e estilo d’O Estado de São Paulo: “exige sempre a preposição ‘a’.” Tanto para “assistir” quanto para “obedecer”. E mais, o mesmo manual diz que é errado usar a forma passiva do verbo “assistir” (eu inventei um limão doce, então?). Só que com “obedecer”, pasmem, a voz passiva tá liberada! Legal, né? Vai entender. O detalhe é que a recomendação dos dicionários vale para linguagem culta formal, novamente, o português dos salões, da academia, dos magistrados… não há razão para o usuário comum se preocupar com isso. Pergunta: Por que não tem acento grave (a popular crase) nas placas “Obedeça a sinalização”?

Resumindo essa ária da ópera. Não sei se convenci vocês do ponto: certo ou errado é relativo. Obedecer as regras ou às regras requer antes de tudo conhecimento de como a língua funciona. E ela funciona à serviço dos usuários. Portanto, seguir ou não uma regência tem a ver, primeiramente com a gramática que está na sua mente e que ninguém te ensinou. Essa gramática influi na forma como escrevemos e para escrever com a correção que a gramática escolar tradicional (que é só uma tentativa de descrição dessa gramática que existe na sua mente de falante do português) exige, é necessário muito treino e estudo. E um estudo que mostre justamente essa diferença entre o que se recomenda e o que se espera de um bom usuário da língua escrita. Quanto à “presidenta” isso depende de muita coisa, mas principalmente de a comunidade de fala adotar a palavra. Se isso acontecer em uma geração ou duas ela já não será mais estranha. De outra forma ela vai cair no esquecimento, e não há decreto que mude isso.

Norma Culta Brasileira

A recente polêmica envolvendo os livros didáticos que supostamente ensinavam errado mostrou o profundo fosso que há entre a academia e a sociedade. O livro de Carlos Alberto Faraco, Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós (Parábola, 2008), tenta analisar algumas questões extremamente interessantes. A principal delas é esclarecer a diferença que há entre o que ele chama de Norma Culta/comum/standard e o que chamou de Norma Curta. Bem como, tenta entender porque tem um razoável espaço de diferença entre elas. Faraco lecionou na UFPR, onde também foi reitor, e atualmente está aposentado. É autor de inúmeros livros, entre eles Oficina de Texto, com Cristóvão Tezza, e Estrangeirismos: guerras em torno da língua, coletânea de artigos de vários linguistas brasileiros sobre o projeto de lei de autoria do deputado Aldo Rebelo, que queria regular o uso de estrangeirismos no país.

O livro é dividido em quatro capítulos. O primeiro busca caracterizar as noções de ‘norma’, e como deveríamos entender esses conceitos para que algumas coisas fiquem mais claras, quando da discussão do problema. Em seguida, Faraco busca as origens da nossa norma curta, revisitando uma polêmica que envolveu José de Alencar e outros intelectuais brasileiros no século XIX. O terceiro capítulo reconta a história da gramática no ocidente e mostra como esse tipo de pensamento é vivo ainda em nosso ensino. Por fim, o quarto capítulo propõe uma pedagogia da variação linguística, não muita distanciada do trabalho que autores como Marcos Bagno e Stela Maris Bortoni-Ricardo já vêm propondo.

A primeira questão não é tão simples, embora a maestria argumentativa de Faraco torne o tema muito mais claro para o leitor. O sentido de ‘norma’ é entendido de duas formas: o que é normal e o que é normativo. Dessa forma, ele procura distinguir a norma culta/comum/standard do que vai chamar de norma curta. A primeira é o registro do uso linguístico de fato atestado pela análise da fala e da escrita dos nossos falantes/escritores cultos, isto é, indivíduos com terceiro grau e residentes em centros urbanos. A segunda é a norma como imposta pelas nossas gramáticas. O autor dá inúmeros exemplos que mostram que em grandes áreas da nossa gramática temos duas possibilidades de se realizar uma construção linguística. Tem uma mais valorizada pela tradição e outra que é utilizada livremente. O que acontece é que os defensores da norma curta frequentemente tomam para si o dever de regular a língua e condenar formas plenamente aceitáveis e correntes no uso dos falantes cultos. O que torna a língua idealizada pela norma curta algo inalcançável, dado que mesmo os usuários cultos da língua não a utilizam.

As raízes dessa posição conservadora são resgatadas do séc. XIX, quando da redação do código civil e da polêmica envolvendo José de Alencar, frequentemente criticado por gramáticos, por usar construções do português coloquial da época. Na construção do nosso ideal de nação, da nossa identidade linguística, a nossa elite voltou os olhos para os escritores portugueses, não para a língua de fato usada pelos nossos intelectuais. A partir do momento em que nosso molde de língua passa a ser a intelectualidade portuguesa, é natural que se passe a criticar Alencar, e todos aqueles que estavam incorporando na sua escrita marcas da oralidade do português usado pelos brasileiros. Tanto é assim, que ainda hoje muitas gramáticas se recusam a listar o ‘você’ como pronome pessoal, apesar dele ser usado tanto aqui quanto em Portugal.

No terceiro capítulo, o autor conta a história do pensamento gramatical ocidental, desde o nascimento das gramáticas gregas até o surgimento das gramáticas das línguas europeias. Na raiz dessas gramáticas, estava o ideal de escrita que os usuários comuns deveriam aspirar, isto é, escrever como os bons escritores de algum período áureo da nossa história literária. As línguas, dizem os gramáticos, estão marchando para a decadência, e deveríamos nos espelhar nos bons escritores do nosso período clássico para escrevermos e falarmos melhor. Homero era o ideal dos gregos, Virgílio dos romanos, Camões, Padre Antônio Vieira e os portugueses do romantismo são os nossos. Daí a busca de exemplos nos escritores. Essa busca não é ingênua, os gramáticos tendem a buscar exemplos que ilustrem a regra que procuram defender, não o uso efetivo. Assim, eles veem o que querem ver, não o que está lá. Nisso também reside uma redução grosseira: anula-se as diferenças entre o português brasileiro e o português europeu. Se na escrita essa diferença é pequena (tanto é que lemos Saramago sem problema algum), o mesmo não acontece com a fala. E outro equívoco nasce aí, não falamos como escrevemos, e nem a escrita deve ser o guia para a pronúncia. A escrita é uma convenção. Veja o caso do acento na sílaba tônica. Apenas algumas palavras recebem acento nessa sílaba (as proparoxítonas, algumas oxítonas e algumas paroxítonas, por ex.: saúde). As palavras ‘assim’ e ‘aço’ possuem o mesmo som /s/, mas são escritas de forma diferente. A crise do ensino de língua portuguesa é diagnosticada como consequência do novo contingente de alunos que a escola pública brasileira começou a receber com a democratização do acesso à educação e do processo histórico de desvalorização do trabalho docente. Se a política pública do ensino de língua portuguesa mudou ao longo do tempo, não podemos afirmar que os conteúdos tenham mudado, tampouco a forma como eles são ensinados. O currículo é praticamente o mesmo desde o início do século XX, baseado no currículo montado para o Colégio Pedro II, que abrigou como seus professores grandes nomes da nossa tradição gramatical.

O capítulo que encerra o livro propõe que a escola discuta a variação, de modo que o aluno que chega na escola falando uma variedade do português diferente da norma culta/comum/standard seja capaz de dominá-la e usá-la com proficiência nas diferentes situações de comunicação que a sociedade demanda. Se comunicar com propriedade, modernamente, não tem sido encarado apenas como estar de acordo com a norma culta, mas também estar de acordo com a situação de comunicação. O domínio da gramática e de sua metalinguagem são condições necessárias, mas não suficientes. O problema passa também pelo fato dos nossos manuais de ensino ainda não terem incorporado os avanços da descrição do português que a linguística tem proporcionado. A incorporação desses estudos ainda é bastante limitada, quando não escolhida a dedo. Basta ver as referências das gramáticas atuais, como a de Faraco, Moura e Maruxo (Gramática, Ática) ou a do Bechara (Moderna Gramática Portuguesa, Lucerna/Nova Fronteira). Se se usam referências de trabalhos de linguistas, por que uns e não outros? E por que essas referências se encontram em notas de rodapé?

O livro possui uma série de méritos, e destaco aqui os dois primeiros capítulos como contribuição fundamental. Poucos autores discutiram o problema da norma com tanta clareza e objetividade. A coletânea de artigos organizada por Bagno, Linguística da Norma (Loyola, 2003) já foi um grande passo nesse sentido. E o livro de Faraco vem engrossar esse conjunto de estudos que procura entender porque ainda é tão forte na nossa sociedade essa crença mitológica de que os falares que não estão de acordo com a norma curta são estropiados ou errados, quando mesmo os usuários cultos da língua não a seguem. A polêmica toda em torno do livro didático fortalece ainda mais os argumentos de autores como Kanavillil Rajagopalan (Por uma linguística crítica, Parábola, 2003), que defendem que a linguística se aproxime mais da sociedade. Cada vez mais percebo que escrever livros e artigos em jornais de grande circulação não parece ser mais o suficiente. A gramática, como muitos já afirmaram, está ao lado das religiões. Tem uma verdade que ela nos traz e que é incontestável, mesmo por cientistas. A sociedade não consegue perceber que grande parte das regras ali impostas são arbitrárias, e que basta consultar duas ou três fontes para perceber que podemos encontrar facilmente divergências, principalmente em relação à regência verbal.

Nesse contexto, entendo como fundamental o papel do linguista na universidade. É ele quem forma professores. Assim, a educação linguística da sociedade passará necessariamente pela chancela dos professores que as universidades formam. Se queremos que a sociedade nos compreenda e respeite, precisamos formar professores que eduquem melhor a sociedade, que proporcionem uma educação do respeito linguístico e do uso efetivo das diferentes instâncias de uso da linguagem na sociedade. Ensinar a metalinguagem pode (e muitos diriam que deve) também ser tarefa básica. Se temos professores saindo dos nossos cursos de letras que não sabem a diferença entre ensinar a língua e ensinar sobre a língua, aí temos um problema que dificilmente será solucionado com livros de divulgação e artigos em defesa da diversidade.

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Na revista Piauí desse mês, n. 75, Clara Becker entrevistou Evanildo Bechara. Na página 50 ela escreve o seguinte: “Mas a disciplina que mais gostava era a matemática.”

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Sírio Possenti disse o seguinte na sua coluna do dia 09 de junho:

“Tem-se lido, nas últimas semanas, que a escola não deve ensinar lingüística, mas português (ou gramática). Ora, tanto as diversas teorias lingüísticas quanto as diversas gramáticas têm duas faces: adotam uma teoria sobre a linguagem e desenvolvem ou seguem métodos de descrição e explicação dos dados. As gramáticas não só ensinam como se deve falar e escrever, mas também ensinam (empurram goela abaixo) que há passivas sintéticas, sujeitos ocultos, objetos diretos pleonásticos, que os substantivos designam seres e os adjetivos, qualidades etc. (sem análise de dados, sem nenhum argumento convincente). A lingüística faz a mesma coisa: cada teoria tem sua “filosofia” da linguagem e sua abordagem descritiva e explicativa (acho que argumenta melhor). Se se pode ensinar gramática (descritiva), por que não ensinar linguística? Para sonegar conhecimento?”

Dá até pra imaginar um contra-argumento de um gramático…

Pronomes: notas sobre a relação entre língua e sociedade

Estou trabalhando com os meus alunos do primeiro ano de letras um capítulo do livro do John Lyons (‘lingua(gem) e linguística), o capítulo sobre ‘linguagem e cultura’. Nele o autor fala da hipótese Sapir-Whorf, batizada em nome dos seus principais argumentadores, Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, dois grandes linguistas americanos da primeira metada do século XX. O texto do Lyon possui um trecho em que fala dos pronomes em algumas línguas e de como eles revelam alguns fatos sobre as relações sociais nas diferentes sociedades. O português brasileiro não é diferente nesse aspecto e possui algumas características interessantes.

Temos três pessoas do discurso, a primeira, a segunda e a terceira, que podem variar em número e algumas em gênero. A relação entre ‘eu’ e ‘nós’ é de heteronímia. O mesmo acontece com o ‘tu’ em relação a ‘vós’. Já no caso de ‘você’, há a sua variação flexional plural o ‘vocês’ que atualmente funciona como segunda pessoa do plural para todos os falantes da língua portuguesa, pelo menos no Brasil. Mesmo cariocas, gaúchos ou florianopolitanos que possuem o ‘tu’ como pronome de segunda pessoa do singular não usam o ‘vós’ como segunda do plural. O pronome de terceira pessoa é o ‘ele’ e possui variações flexionais em gênero ‘ela’, e plural ‘eles/elas’. Há ainda quem diga que o ‘nós’ convive com a expressão ‘a gente’. É só reparar na fala de jornalistas e na publicidade “produtos e serviços que a gente confia”, dizia uma propaganda do UOL, na televisão, ou Roda Viva do Chico Burque, ‘tem dias que a gente se sente…’  Por mais que algumas gramáticas ainda se recusem a colocar o ‘você’ ao lado do ‘tu’, de fato é esse o pronome de segunda pessoa em grande parte do território nacional. Basicamente, é esse o quadro que temos para os pronomes pessoais.

Essa pequena passagem pelos pronomes pessoais foi para chegar no ‘você’. Como sabemos, ele surgiu do pronome de tratamento Vossa Mercê (já falecido), e foi se reduzindo para ‘vosmecê’ até chegar na sua forma atual. Em função dessa história, é possível que ainda pessoas idosas não aceitem ser chamadas por esse pronome, porque ele é de trato familiar. Embora, na sua história, o Vossa Mercê/Vosmecê fosse usado como forma de tratamento respeitoso do subordinado para com o seu superior. O mesmo vale para o ‘tu’, que também era usado somente entre iguais, ou por um superior para se dirigir ao seu subordinado. É mais ou menos isso o que nos diz Celso Luft no seu ABC da língua culta. Para ele o ‘você’ tende a substituit o ‘tu’. Além disso, “em algumas regiões, ‘você’ é trat. de superior para inferior, ou trat. repreensivo, ou ainda, deprec., injurioso (contrastanto com ‘o senhor, tu’). Reparar na gradação: ‘tu’ (íntimo) – você – o senhor (o amigo, o doutor, etc.) – vossa senhoria – vossa excelência.” Eu não vejo essa distinção. Embora eu tenha nascido na região oeste de SC, que usa o ‘tu’ por influência do RS (a cidade de São Miguel do Oeste foi fundada por gaúchos), vim para o PR que usa o ‘você’, em grande parte do seu território e acabei perdendo o ‘tu’. Apesar disso, me pego dizendo ‘eu te amo’ para minha mulher. Essa é outra marca dos falantes que usam o ‘você’: nas posições átonas, em geral posição de objeto direto, usamos o ‘te’ ao invés do ‘você’ ou do ‘seu’ possessivo usamos o ‘teu’, formas que correspondem ao ‘tu’.

No tratamento cerimonioso nossa língua dispõe de alguns recursos interessantes, muitas vezes pouco falados nas nossas gramáticas. Aprendemos com a família a tratar os mais velhos como ‘senhor’. Meu pai, por exemplo, nunca deixou que nos dirigissemos a ele como ‘você’. Hoje, tenho a impressão de que mesmo pessoas mais velhas não gostam de serem chamadas por ‘senhor’ ou ‘senhora’ já que esse pronome de tratamento marca distância, pouca familiaridade e é provável que a pessoa se sinta velha. O ‘senhorita’, forma respeitosa para se dirigir às moças solteiras, praticamente não se usa mais, a não ser pejorativamente como em ‘Onde a senhorita pensa que vai?’ (Imagine uma mãe repreendendo a filha). Mesmo com ‘o senhor/a senhora’ entrando em desuso, temos formas mais populares para marcar o respeito, como o ‘Seu’ e a ‘Dona’, ‘Seu João’, ‘Dona Maria’, etc. Soa íntimo, ao mesmo tempo em que denota respeito.

O desaparecimento da relação hierárquica entre o uso do ‘tu’ e do ‘você’ pode ser creditado à diminuição das diferenças entre as classes sociais no país. Hoje, mesmo aqueles que executam tarefas pouco valorizadas socialmente e financeiramente já ganham razoavelmente melhor do que ganhavam há algum tempo atrás, além do acesso ao crédito, que possibilita o acesso aos bens de consumo antes restritos a uma minoria, como motos, carros, casas, eletrodomésticos, etc. Acho que ninguém mais fica escandalizado por ver o porteiro do seu prédio jantando no mesmo lugar em que você costuma jantar.

Nas relações familiares, o comum é chamarmos a mãe e o pai pelos seus títulos: mãe! pai!, ou manhê!, paiê! E isso deve ser mais ou menos geral para todas as sociedades. Acho engraçado, na novela ‘Amor e Revolução’ os filhos do general se dirigirem ao pai como ‘general’ e não como pai. O mesmo vale para os avós, tem o ‘vô’ e a ‘vó’ ou a ‘nona’ e o ‘nono’ para os descendentes de italianos. A criança pode chegar até uma boa idade sem saber os nomes dos avós. Apesar de que em alguns casos o nome vem acompanhando do laço, como Vó Celina, ou Vô Sadi, para separar dos avós paternos como Vó Iracema ou Vô Cândido. O mesmo vale para os tios, Tio Juca, Tio Chico. Já os primos, como são iguais são tratados pelo nome mesmo, e os irmãos idem. Em alguns casos irmãos tratam-se entre si por ‘mano’. Daí pode-se ter o ‘mano’ e ‘mana’, tenho primos que se tratam dessa forma entre si (não confundir o ‘mano’ vocativo – similar a ‘cara’, ‘brother’, etc, cujo feminino é ‘mina’). Há casos interessantes, como o que ocorre quando o casal possui filhos e passam a se chamar de ‘pai’ e ‘mãe’. A esposa chama o marido de ‘pai’ e o marido a esposa de ‘mãe’. Tenho a impressão de que isso anula, de alguma forma, a sexualidade da relação entre marido e mulher, e para as crianças eles são o pai e a mãe, não mais um homem e uma mulher (afinal, não dormimos com o pai e com a mãe, e isso parece proibido em todas as sociedades, a natureza sabe o que faz). Mas daí já estou partindo para uma sociologia de araque e para falar mais sobre isso eu teria que ler mais coisas.

Seria interessante dar uma olhada no funcionamento do ‘vosmecê’ no século XIX e ver, se possível, a partir de que data o ‘você’ começa a aparecer na escrita, taí uma história legal pra se contar. Também em que situações sociais ele era utilizado, marcando que tipo de relação hierárquica. Se alguém aí fora sabe essa história, me conte, eu gostaria muito de saber.