Uma língua é uma lente para o mundo

Há várias estórias boas no livro de Ted Chiang (História da sua vida e outros contos, 2016, Intrínseca), mas a “História da sua vida” é novela muito original e bem narrada. O filme segue o mesmo enredo, intercalando presente e um suposto passado. Sou faísca atrasada mesmo e só agora estou lendo o livro – terminei ontem. Há uma hipótese sobre a linguagem muito interessante ali, embora não seja nova.

Não seria fantástico se cada língua nova que a gente aprendesse nos fornecesse um tipo de ferramenta cognitiva que nos permitisse ver coisas que a nossa língua não deixa porque não tem conceitos para expressá-los?

Não precisamos de alienígenas que nos tragam uma tecnologia de escrita para avançarmos cognitivamente. Imaginem o choque dos europeus quando viram que fazer matemática com os algarismos dos árabes era muito mais fácil. Pensem também na quantidade de vocábulos gregos e latinos que boa parte do globo usa para nomear conceitos filosóficos e científicos, doenças, remédios e assim vai. De certa forma, a cada momento em que aprendemos/assimilamos um vocábulo novo para nomear algum aspecto da realidade (material ou abstrato) aprendemos algo novo, há um ganho cognitivo.

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– Esses dias revi ‘Tomates verdes fritos’. O povo fala muito mais de Thelma e Louise (também de 1991) – tem mais ação, é um road movie etc. – mas esse filme tem um elenco excepcional e também trata da luta de mulheres para lidar com homens escrotos, racismo, sem falar nas outras tristezas normais da vida (doença, morte etc.).

– O povo sempre reclama de algumas premiações do Oscar. Normal. Nem sempre o melhor é premiado. Não consegui ver muita coisa esse ano. Como sempre, os melhores filmes nos chegam sempre muito perto ou depois da cerimônia. A safra não foi lá aquelas coisas. Mesmo assim, um Almodóvar médio/bom sempre vale o nosso tempo. O Will Smith mereceu o prêmio. Ele está ótimo no filme, que é mais sobre a obstinação do pai de Serena e Vênus do que sobre elas. ‘Ataque dos cães’ também é ótimo e as indicações dos atores em várias categorias é sinal disso.

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Maria Helena de Moura Neves fala sobre linguagem neutra

Fala muito rapidamente, já que a matéria é mais sobre um prêmio concedido a ela em homenagem à sua trajetória de linguista e professora.

Lendo sobre o relativismo linguístico

Não sei por que demorei tanto pra ler a tese do Rodrigo Gonçalves. É aquela história do “amanhã certeza” e o trabalho foi indo pro fim da fila. Como acabei entrando numas de ler sobre relativismo, principalmente por ter lido o Through the language glass (G. Deutscher) e do The language hoax (J. McWhorter), resolvi ler a tese, da qual eu retiro essa citação excelente, de Cole e Scribner (1974, p. 41), que criticam a versão forte do relativismo (enxergo o mundo pelas lentes da minha língua):

Formas extremas do relativismo e determinismo lingüístico teriam implicações
sérias, não somente para o estudo da humanidade de si mesmo, mas também para
seu estudo da natureza, porque elas fechariam a porta para o conhecimento
objetivo de uma vez por todas. Se as propriedades do ambiente são conhecidas
somente através dos mecanismos infinitamente variáveis e seletivos da
linguagem, o que percebemos e experienciamos é, de certo modo, arbitrário, e
não é necessariamente relacionado com o que está “lá fora”, mas somente com
como a nossa comunidade lingüística particular concordou em falar sobre o que
está “lá fora”. Nossa exploração do universo seria restrita às características
codificadas pela nossa língua, e o trânsito do conhecimento entre as culturas seria
limitado, se não impossível. 

COLE, M. & SCRIBNER, S. Culture & Thought.: A psychological introduction. New
York: John Wiley & Sons, 1974.

GONÇALVES, Rodrigo T. Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o relativismo linguístico e o aspecto criativo da linguagem. Tese (Doutorado em Letras). Curitiba/PR. UFPR, 2008. (p. 24)

No link abaixo um podcast com a Lera Boroditsky, uma das principais figuras do que tem sido chamado de neo-whorfianismo. Ela, e outros, estão tentando encontrar evidências experimentais de conexão entre língua e pensamento. No mesmo programa John McWhorter fala sobre seu novo livro, sobre mudança de significado. Podiam tê-lo convidado para contestar a Lera, já que ele escreveu um livro justamente para isso, o The language hoax.

https://www.npr.org/2018/07/12/628490776/watch-your-mouth

A farsa sobre o vocabulário dos Esquimós

É bem provável que o leitor já tenha lido em algum lugar ou ouvido alguém dizer que os esquimós possuem uma dezena de palavras para designar o que em português seria rotulado simplesmente como neve. Essa é uma das falcatruas mais bem sucedidas no século XX. Como suspeita Geoffrey Pullum, no ensaio The great Eskimo vocabulary hoax, pegou muito provavelmente porque se adequava com outras características exóticas do povo inuíte: emprestar a mulher para aquecer o visitante na noite gelada, jogar os idosos para que os ursos polares os comam, comer carne de foca crua etc. Aliás, a palavra esquimó significa “comedor de carne crua” e o povo prefere ser chamado de inuíte.

No artigo, G. Pullum resenha um relatório elaborado pela antropóloga Laura Martin, que atribui a fonte do mito a uma comparação que Franz Boas faz na introdução do livro The Handbook of North American Languages (1911) e o uso desse exemplo por Benjamin Lee Whorf em um ensaio nos anos 1940, Science and linguistics. A partir daí, ela traça como vários livros de popularização da linguística passaram a exagerar a contagem. Boas compara o vocabulário inglês para as diferentes formas de água. Esta língua usa várias palavras formadas a partir de raízes diferentes, com o esquimó, que usa diferentes raízes também: aput é “neve no chão”; qana, “neve caindo”; piqsirpoq, “neve soprada pelo vento”; qimuqsuq, “um monte de neve”, embora pudesse ter se dado o oposto, como é o caso de snow em inglês, que precisa ser complementada com outras palavras se o falante quiser se referir a diferentes apresentações de neve. O que Whorf fez, num enunciado vago, foi aumentar para 7. O engodo chegou ao ponto em que o New York Times afirmou num editorial que o vocabulário inuíte para neve era de uma centena.

A questão toda envolveria um debate mais profundo sobre o conceito de palavra e sobre a comparação entre línguas sintéticas e analíticas (o vídeo linkado abaixo faz um pouco essa discussão). O negócio é que em inuíte a expressão neve derretida seria expressa com uma forma linguística que seria uma unidade linguística que chamaríamos de palavra e não duas como em português.

Pullum brinca que o relatório de Martin apresentado num congresso de antropologia em 1982 e as tentativas pessoais dele de esclarecer o público não foram suficientes. Ele faz uma comparação com o Alien (do filme de Ridley Scott): um monstro difícil de matar. Ele conta que num curso sobre administração universitária que fez ouviu dois palestrantes recontarem esse mito. Embora tenha ficado calado, ele pede que não façamos a mesma coisa e mostremos que os dicionários de inuíte trazem apenas duas palavras para neve: qanik “floco de neve” ou “neve caindo”; aput “neve no chão”.

Só que ainda repetem essa história. Não precisamos ir longe, uma matéria do G1 conta que pesquisadores encontraram mais de 400 palavras para neve em escocês. A pesquisadora entrevistada afirma que: “Acredita-se que os esquimós têm mais de 50 palavras para descrever a neve”. A matéria não cita muitas palavras escocesas, só 5: snaw “neve”; sneesl “quando começa a never”; skelf “floco de neve grande”; snaw-ghast “imagens que a neve forma”; snaw-pouther “neve fina”. Outra matéria da CNN, repercutindo o lançamento do dicionário do escocês, também traz a lenda das várias palavras para neve em inuíte. Mas fica a pergunta: será que o escocês tem mesmo 400 palavras para neve?  Será que esse pessoal não está exagerando um pouco? Por que algum povo precisaria de tantas palavras para designar diferentes tipos de neve? Claro, a resposta é: falar sobre o tempo é algo importante para os escoceses. – Para que povo não seria?

Um parêntese: Rodrigo T. Gonçalves lembra o jornalista Sérgio Augusto, para quem o português teria mais de 200 sinônimos para bunda. Brincadeira, claro, que mostraria como nós brasileiros nos preocupamos com outras coisas. – No artigo, Gonçalves traz o caso das palavras para neve dentro de uma discussão sobre relativismo linguístico. Podemos nos lembrar também da quantidade de termos que Guimarães Rosa usa em Grande Sertão para se referir ao Coisa Ruim. Por termos dezenas de palavras para bunda e para o diabo, isso mostraria algo fundamental sobre a nossa sociedade? Sou bem cético sobre essas especulações.

Contudo, assim como uma pesquisa online ainda nos mostra muita gente repetindo essa história, também há várias páginas por aí a desmentindo. Achei textos na Superinteressante e na Reader’s Digest de Portugal e em vários blogues. (Aqui tem um exemplo bom)

Googlando sobre o tema, achei também um canal no Youtube: Enchendo Linguística. O vídeo sobre o tema explica a história detalhes bem importantes, incluindo alguns aspectos morfológicos do inuíte e outras referências.

Referências

PULLUM, Geoffrey. The great Eskimo vocabulary hoax. Natural language and linguistic theory, n. 7, p. 275-281, 1989.

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Relativismo linguístico e o ensino de língua estrangeira. Revista X, vol 1., p. 19-40, 2009.

“A kind of blue”: um trecho de ‘A fraude linguística’

Como na semana passada postei um pequeno comentário sobre a palestra da Lera Boroditsky, uma das pesquisadoras neo-whorfianas com mais destaque, e no comentário mencionei o livro de John McWhorter, hoje posto um trecho do livro em que ele lança algumas dúvidas sobre o experimento que o grupo dela conduziu sobre as cores no russo, língua famosa por ter duas palavras para dois tons de azul. O título, imagino, deve remeter ao disco homônimo de Miles Davis.

O trecho abaixo é do capítulo 1, Estudos mostram. [se der tudo certo eu e o Renato Basso traduziremos o livro]. A explicação que ele dá do experimento me parece um pouco confusa. De qualquer forma, inseri a figura 1, de Winawer et alii (2007) [Russian blues reveals effects of language on color discrimination. PNAS 104(19), p. 7780-7785. https://doi.org/10.1073/pnas.0701644104]

John McWhorter. The language Hoax. Oxford University Press, 2014.

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[…] esqueci por que eu sei que a palavra russa para “gay” é goluboj, mas acontece que o significado básico da palavra é “azul claro”. Não apenas azul, porque há outra palavra russa para a versão mais escura, marinha, prussiana de azul, siniy. Não há nenhuma palavra que signifique apenas azul: em russo, o céu e um mirtilo são de cores diferentes.

Um elegante experimento neo-whorfiano apresentou a falantes de russo vários tableaus com três quadrados em uma tela de computador: um no topo, os outros dois logo abaixo. Os quadrados eram de vários tons do que chamaríamos de azul, aparecendo em vinte gradações, indo do azul escuro ao azul claro. Em cada tableau, um dos quadrados embaixo era do mesmo matiz que aquele do topo, enquanto o outro debaixo era de um matiz diferente. Foi dada uma tarefa aos russos: apertar um botão quando identificassem qual quadrado debaixo tinha o mesmo tom que o de cima.

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Fonte: Winawer et alli (2007, p. 7781)

Deve ter sido bem chato fazer esse pequeno teste, mas os pesquisadores estavam tentando descobrir algo: se ter diferentes termos para azul escuro e azul claro teria qualquer efeito na percepção – isto é, a língua poderia moldar o pensamento? E eles descobriram que sim. Por exemplo, se o quadrado de cima era azul escuro e o quadrado debaixo de cor diferente era um tom ou três mais à frente na sequência de azul claro, então os russos apertavam o botão rapidamente, enquanto que se o quadrado alvo era apenas um tom diferente de azul escuro, o tempo médio para se apertar o botão era maior. O mesmo se dava ao contrário: se os quadrados compatíveis fossem azul claro, então os russos apertavam o botão sem hesitar se o alvo fosse um dos tons escuros, mas demoravam se esse não era o caso.

Os falantes de inglês, por sua vez, tiveram o mesmo tempo de resposta onde quer que o quadrado alvo caísse no espectro de azul: um quadrado alvo claro não os acelerava quando os quadrados compatíveis eram escuros, e um quadrado alvo escuro não os acelerava quando os quadrados compatíveis eram claros. Isso mostra, de um modo realmente engenhoso, que ter termos diferentes para azul claro e azul escuro faz com que as pessoas diferenciem essas cores mais rapidamente do que as pessoas cujas línguas possuem um único termo para azul – e mesmo quando ninguém pergunta a elas sobre as palavras em questão ou mesmo as usa.

No caso de alguém tentar encontrar, digamos, alguma razão cultural para os russos serem mais sensíveis à diferença entre azul escuro e azul claro do que nós, os pesquisadores fizeram outra versão do experimento, mostrando que a língua não é realmente o que direciona a diferença para os russos. No segundo experimento, os sujeitos tinham de não apenas distinguir o quadrado alvo, mas ao mesmo tempo deviam recitar uma sequência aleatória de números que eles há pouco tinham sido solicitados a memorizar. A energia mental necessária para fazer isso coloca um bloqueio temporário no processamento da linguagem, e nessa versão do experimento se o quadrado alvo era de outro tipo de azul não fazia mais diferença nos tempos de resposta. Assim, sem a linguagem, os russos não estavam mais sintonizados para a diferença entre o azul escuro e o azul claro do que alguém de Campinas.

Contudo, uma tendência atual defende que esse tipo de teste mostra que como sua língua é o faz ver o mundo de um modo particular. O lusófono, intrigado, imaginará como o mundo deve parecer aos olhos de alguém a quem azul claro e azul escuro são “mais diferentes” do que são para ele. A tentativa pode ser uma reminiscência de tentar imaginar uma quarta dimensão.

Mas há um problema. Não é que esse experimento de Jonathan Winawer, Nathan Witthoft, Michael Frank, Lisa Wu, Alex Wade, e Lera Boroditsky não seja extremamente inteligente, nem que ele não mostre que a língua afeta o pensamento; mas o fato é que batemos num obstáculo quando tentamos ir para além do experimento, abraçando a noção de que ele está nos dizendo algo sobre visões de mundo, ser humano e coisas do gênero. Especificamente, quando descrevi a diferença nos tempos de reação, usei termos vagos como rapidamente e demorar. Contudo, na realidade, para avaliar seriamente o que esse experimento significa além do mundo da pesquisa em psicologia, deve ficar claro qual era a diferença média de tempo de reação, dependendo para qual lado do espectro o quadrado alvo pendia. Era – Que rufem os tambores! – 124 milissegundos.

124 milissegundos! Quando os quadrados compatíveis eram mais escuros, se o quadrado alvo também estava no matiz escuro, então os russos apertavam o botão um décimo de segundo mais rapidamente do que se o quadrado alvo fosse do matiz claro. Eles não demoravam por meio minuto, ou mesmo um segundo inteiro, ou mesmo meio segundo. Na verdade, não podemos sequer chamar um décimo de segundo de demorar.

Agora, que há um efeito é ainda, por si só, um fato. Pense: entre os falantes de inglês, apenas por conta de uma diferença linguística, não houve nenhuma alteração nos tempos. Mas, baseados em que podemos tomar uma diferença de 124 milissegundos em tempo de reação como dizendo algo sobre a forma como os russos experienciam a vida? A língua afeta o pensamento? Aparentemente sim, mas, como tudo na vida, a questão é o grau. No estado corrente de nosso conhecimento, parece que goluboj é relevante para a alma russa mais vividamente em termos de preferências sexuais do que cores!

A intuição corresponde ao resultado de 124 milissegundos ao sugerir que não estamos lidando com nada parecido com lentes diferentes. Após aprender que o russo tem termos diferentes para azul escuro e azul claro, pareceria que estaríamos dispostos a se perguntar se isso significa que os russos veem o ovo de pintarroxo e um blazer azul marinho como mais distintos em cor do que os falantes de inglês. Contudo, para muitos falantes de inglês, ou, eu fortemente suspeito, mais gente ainda, a reação é uma certa perplexidade ver que uma língua faz uma distinção como essa. “Por que uma língua precisaria fazer isso?”, podemos nos perguntar. “Certamente sabemos que a cor por detrás das estrelas na bandeira americana é nitidamente diferente do azul bebê – mas nós não precisamos de palavras diferentes para essas cores!” Certamente foi como eu me senti quando aprendi russo pela primeira vez.

Nesse aspecto, há várias línguas que não fazem distinções de cores que um falante do inglês consideraria fundamental; nesse caso, para elas, o inglês parece tão desnecessariamente obcecado quanto o russo. O povo herero da Namíbia, na África, fala uma língua em que um termo se refere tanto a verde quanto a azul. Ao descobrir que outras línguas possuem palavras separadas para verde e azul, os hereros não se perguntam se os ocidentais veem um mundo diferente do deles. Ao contrário, eles estão bem conscientes da diferença entre a cor de uma folha e a cor do céu – vivendo na terra em que vivem pareceria muito difícil evitar notá-lo uma vez ou outra. Eles acharam a ideia de uma língua ter diferentes palavras para aquelas cores, quando aprenderam que essas línguas existiam, ligeiramente boba.

Alguns ainda poderiam estar abertos a uma ideia de que, em algum nível, há uma escala de sensibilidade a cores na qual os russos estariam mais altos, os falantes de inglês no meio, e os hereros lá embaixo. Essa escala soa desagradável a muitos de nós – e veremos quão frequentemente as implicações whorfianas nos levam a nos depararmos com proposições similarmente incômodas, quando não somos nós que os estudos retratam como fascinantemente sem graça. Parece dificilmente irrelevante que os hereros, em termos de vestuário e decoração, deem todos os indicativos de revelar as cores – incluindo os verdes e os azuis – tanto quanto os ocidentais. Apesar disso tudo, pode ser que um experimento mostrasse que a língua herero liga o cérebro de alguma forma que deixa seus falantes alguns milissegundos mais lentos na distinção entre um giz de cera azul esverdeado e um verde azulado do que uma pessoa comum nas ruas de Chicago ou Stuttgart (o alemão possui grün e blau). Mas nesse caso, nós nos distanciamos de qualquer discussão significativa das diferenças nas almas.

Porém, é a alma o que nos vem à mente como resposta para declarações do tipo: “Mesmo que soe estranho, nossa experiência de um quadro de Chagall na verdade depende em alguma medida de nossa língua ter uma palavra para azul”. Essa é uma das frases mais ressoantes no editorial baseado no livro de Deutscher, que atinge quase 5 mil ocorrências no Google no momento em que escrevo isto. Como tenho atestado, a mídia (incluindo os editores) tendem a encorajar os acadêmicos a colocarem as coisas daquela forma, numa busca interminável por “olhos” (contagem de cliques). Há tantos livros por aí; um tem que fazer um pouco de auê. Editorais – e contracapas – divulgando o livro sempre terão uma retórica entusiasmada que praticamente nenhum texto conseguiria de fato incorporar.

Contudo, frases como aquela sobre o Chagall possuem mais influência do que o próprio livro, especialmente considerando o inerente frisson da hipótese de Whorf, além de elas implicarem algo que os estudos simplesmente não fazem. A falta de uma palavra para azul realmente possui impacto na forma como alguém experiencia um Chagall, mais do que a educação, a experiência, ou mesmo a mera variação entre os indivíduos na receptividade da arte? O editorial diz apenas “em alguma medida”, mas, vamos ser sinceros: uma expressão como essa se perde no meio do apelo picante da afirmação básica. A questão real é “em que medida”? 124 milissegundos?

 

Sobre relativismo linguístico

Acabei de ver o vídeo da palestra da Lera Boroditsky (encaixado acima) e fiquei com sentimentos contraditórios: ela fala com clareza e é relativamente convincente; mas ao mesmo tempo não consegui acreditar nela, ela me pareceu listar uma série de curiosidades, e não conseguiu de fato mostrar nenhuma conexão real entre a linguagem e o pensamento.

Até que ponto a capacidade de reconhecer tons de azul com mais rapidez é de fato uma habilidade cognitiva “diferente” que os russos possuem? Até que ponto isso é uma visão de mundo diferente? Como se pergunta John McWhorter: o que 200milissegundos (é essa a medida em que os russos são mais rápidos do que falantes nativos de inglês no reconhecimento dos diferentes tons de azul) de fato mede?

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O livro de McWhorter, The language Hoax: why the world looks the same in any language (Oxford University Press, 2014) é um manifesto contra o que ele chama de linguajar publicitário. Livros como o de Guy Deutscher, Through the language glass, por exemplo, criam no público a impressão de que temos evidências de que existe uma conexão efetiva entre linguagem em pensamento. Claro, há também todo um apelo poético nessa visão de que cada língua representaria uma visão de mundo (o que é outra coisa).

Mas não se engane. É óbvio que existe uma conexão entre a linguagem e o pensamento. A questão mais profunda é: línguas que possuem vocabulário mais extenso para as cores permitem aos seus falantes uma percepção diferente da realidade? Ninguém até hoje conseguiu mostrar que sim.

O que há, principalmente no léxico, são diferentes recortes da realidade, por assim dizer. A lenda de que o inuíte (a língua dos esquimós ou inuítes) teria uma centena de palavras para o que chamamos simplesmente de neve faz parte desse imaginário. Não é difícil perceber a necessidade que um esquimó possui de nomear diferentes tipos de neve.

Um belo resumo desse imbróglio pode ser lido nesse breve texto disponível na página da Linguistic Society of America: https://www.linguisticsociety.org/sites/default/files/Does_Language_Influence.pdf

Recentemente esse debate voltou à pauta por conta do filme A Chegada. A personagem principal é uma linguista que ajuda a estabelecer diálogo com os alienígenas. E parece que no processo de aprender a língua deles ela ganha uma habilidade especial. É o relativismo levado ao seu extremo: aprender uma língua diferente me permite ter uma nova visão sobre a realidade.

https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2016/12/o-filme-chegada-mostra-como-linguagem-influencia-nossos-pensamentos.html