O vocabulário de uma língua se expande não apenas pelo acréscimo de itens ao dicionário, via empréstimo ou criação de novas palavras, mas também pela ampliação de sentidos das palavras já existentes. Vou ilustrar isso com um fenômeno bem amplo, que é o uso de substantivos ou adjetivos que designam classes de indivíduos para ofendê-los, tornando um termo que num momento inicial era apenas descritivo num termo pejorativo.
Exemplos banais são termos como caipira e colono. Caipira, além de designar quem vive no campo ou na roça, tem como sentido indivíduos “que tem hábitos ou modos rudes, tímido, acanhado”. No sul do país, especialmente em SC e no RS, colono tem conotação parecida, embora o Houaiss não a registre. Ou seja, podemos usar essa palavra em tom ofensivo para desmerecer alguém.
Nosso vocabulário é recheado dessas expressões. Lendo Memórias Póstumas de Brás Cubas me deparei com capadócio, que obviamente designa quem vem da Capadócia, mas ao mesmo tempo conota “impostor, trapaceiro, charlatão”. Algum tempo atrás rolou uma celeuma em torno da palavra cigano, que um dicionário tinha registrado com a conotação de “trapaceiro, velhaco”. Quem criticou o registro dessas conotações não sabe para que serve um dicionário. Nos que consultei a conotação não está registrada (Michaelis e Houaiss Eletrônico) no substantivo, mas no verbo ciganear, que o Houaiss destaca que tem conotação pejorativa: “agir com astúcia e falsidade; trapacear, intrujar”. Certamente que as palavras para designações étnicas são um campo vasto e ilustram cristalinamente o quanto de preconceito existiu e existe contra certos grupos (turco: sovina; polaca: prostituta; judeu: sovina, avarento; mongol/mongolóide: burro, lerdo, idiota), por isso a discussão sobre a pejoratividade desses termos é importante. O verbo judiar (e derivados: judiaria, judiação) deriva de judeu, e significa “causar tormento a, apoquentar, atormentar, brutalizar”.
China conota prostituta no RS e em alguns lugares de SC (tem até um vaneirão bem popular chamado Não chora china véia, do grupo Garotos de Ouro). À primeira vista poderíamos dizer que china venha de chinesa, o que pela forma parece provável, mas sociologicamente não faz muito sentido, já que não tenho notícia de que houve em alguma momento da história do sul do país uma onda de imigração de povos orientais. No dicionário de Antonio de Morais Silva, 8ª edição (1890), consta que é substantivo masculino e com o sentido seguinte: “Brazil, na província do Rio Grande do Sul, dá-se o nome de china aos indígenas civilizados.” No dicionário de Rubim (Bráz da Costa Rubim, Vocabulário Brasileiro, 1853), na entrada de china, além desse sentido, consta que é uma “árvore do mato virgem”. Faz sentido que o substantivo no uso feminino tenha sido usado para designar as índias que se prostituíam. Mas aqui estou conjecturando, seria preciso pesquisar um pouco mais pra embasar essa hipótese. Na música que eu citei logo acima, china não é usada pejorativamente, me parece até que tem um tom carinhoso (claro, na medida em que um gaúcho do pampa consegue ser carinhoso e a canção brinca justamente com o gaúcho que tem orgulho da sua rudeza, “fui criado meio xucro”, e que machuca com a espora a companheira da dança). Mas a minha percepção que é os dois sentidos convivem (o afetivo e o pejorativo).
Vândalo está rolando faz tanto tempo no léxico das línguas da Europa que a gente nem lembra mais que designava um povo germânico (um povo bárbaro). É o mesmo caso de horda (grupo de tártaros), galego (o nativo da Galícia; o nascido em Portugal, de baixa educação; no Sul designa em geral qualquer estrangeiro de pele e cabelos claros) e com um pouco de pesquisa acho que não vai ser difícil achar mais.
Boçal é uma palavra que mudou tanto de sentido que já esquecemos o seu sentido concreto, “negro recém chegado da África, que ainda não fala o português”, e usamos apenas o sentido pejorativo: “ignorante, tosco, rude, besta, estúpido, tapado”. Crioulo é o “negro que nasceu nas colônias americanas”, mas a palavra se ampliou de tal forma que passou a designar qualquer negro, as línguas que nasceram nas colônias (da mistura das línguas locais com as línguas europeias), qualquer objeto original de certa localidade, ou animal sem raça definida (como os cavalos crioulos). Outro exemplo é pária, que designa o indiano sem classe específica e que para nós designa abstratamente o sujeito mantido à margem da sociedade.
Finalizando, tem também todo um conjunto de palavras que num sentido concreto designam “povo ou grupo de pessoas humildes” e que possuem conotação pejorativa, como chusma, vulgo (e suas derivações: vulgar, vulgaridade), turba, bando.
Note que o vocabulário é um lugar onde conseguimos visualizar claramente a história e uma pequena sociohistória das relações sociais dum povo e de suas influências culturais, como o valor que grupos de indivíduos têm e tiveram ao longo do tempo, e como o seu pertencimento a um certo grupo foi usado como fator de discriminação, ao ponto de se criarem sentidos pejorativos que se estabilizaram e que cabe ao dicionário, como uma espécie de registro civil das palavras registrar e comentar (emprestando uma imagem fantástica usada por Rodolfo Ilari e Renato Basso no livro já clássico O português da gente).