Começos

Todo começo de semestre uma sensação já familiar me assalta. Sinto que não sei mais dar aula e que vou ter que aprender de novo a planejar um semestre, organizar leituras, exercícios, datas de avaliações, que atividades são interessantes para ajudar os alunos a compreender e a assimilar os conceitos etc… Síndrome do impostor? Sei lá. Já estou há 12 anos nessa indústria vital e vai ver que a explicação seja mais simples. É só a ansiedade dos recomeços: novos alunos, novos textos para se falar de velhas questões sobre a linguagem…

Sinto essa sensação também quando vou escrever ficção. Preciso retomar anotações, dicas de escritores, manuais… como se cria um personagem, o que é um enredo, como criar pontos de vista… e assim vai. É cansativo.

Mas logo que entro de cabeça, é como andar de bicicleta de novo depois de meses sem andar. Não dá pra esquecer nem que a gente queira.

Dica de leitura: texto muito interessante sobre a voz na nossa cabeça que “lê” os textos quando fazemos leitura em silêncio.

Uma série:

A diretora (2021). Sandra Oh vive uma professora do departamento de literatura de uma universidade fictícia que é alçada ao posto de chefe e precisa lidar com os problemas dos professores, alunos e da administração. Nesse meio tempo tem que lidar com a filha, o pai, e a relação com um colega que é acusado de ser nazista após fazer o famoso gesto durante uma aula.

O que os rankings de universidades significam?

Ao ler essa matéria eu fiquei me perguntando o que significa para uma universidade brasileira estar entre as 800 melhores do globo, se é que isso significa alguma coisa. Se olharmos para o top 10, bate aquela pontinha de inveja. No Facebook fiz uma comparação rasteira, mas que creio ilustrar um pouco a distância: é como se jogássemos na várzea do campeonato mundial das universidades, e o top 20 ou 30 fosse a Champions League. A comparação vale por um prognóstico: provavelmente jamais chegaremos lá. Isso pode ser desanimador por um lado ou um choque de realidade por outro. De qualquer forma, há algo aí sobre o qual deveríamos refletir: o que queremos da nossa universidade?

Toda universidade, pelo menos as brasileiras, está organizada em três eixos: a) ensino: formação de mão-de-obra de nível superior; b) pesquisa: inovação e criação de conhecimento; c) extensão: ações que façam com que a pesquisa chegue à comunidade, ou que façam com que a qualidade de vida, trabalho e produtividade nas comunidades melhore. Tendo em mente isso, é possível exercer essas três atividades no mesmo nível que Harvard ou MIT o fazem? No Brasil é impossível. Espera-se que os professores atuem nas três esferas, e na minha modesta opinião não dá pra fazer as três coisas com excelência. Portanto, as universidades deveriam concentrar atenção na sua vocação. Instituições com potencial para pesquisa deveriam ser centros formadores de pesquisadores; Instituições com estrutura e potencial para o ensino deveriam ser formadores de mão-de-obra. Na prática é isso o que acontece, mas elas são avaliadas pelos mesmos critérios.

Dois exemplos. Nas universidades brasileiras a tendência é termos sempre mais alunos de graduação do que de pós-graduação. Na Unicamp, havia 18.338 alunos matriculados em cursos de graduação, e 11.404 na pós. Na UFRGS é similar, eram 29.212 matriculados na graduação, e 10.885 na pós – contando apenas doutorandos e mestrandos; dados de 2013. No MIT, a situação é inversa. São 4.528 alunos de graduação, contra 6.773 alunos de pós. Na Universidade de Chicago, 11ª nesse ranking, a diferença é o dobro entre os dois níveis: 5.134 graduandos e 9.820 pós-graduandos. O que esses dados nos mostram? Mesmo instituições como a Unicamp, cuja missão é fazer pesquisa de ponta, concentram muita energia na formação de mão-de-obra (apesar de o número de pós-graduandos ser de pouco mais da metade dos graduandos).

De acordo com a matéria “A metodologia de pesquisa considera a reputação da universidade na visão dos estudantes e dos empregados; a estrutura da instituição, incluindo a média de estudantes por professor; as citações em trabalhos de pesquisa e a presença de alunos e colaboradores internacionais.” Se considerarmos o primeiro critério, ainda que se escute muito aluno reclamando do corpo docente e funcional da universidade, a gente se salva. Mas no restante tomamos de goleada (aproveitando a metáfora, risos). As turmas são sempre numerosas. Embora eu acredite que, tirando as universidades do top 20 e mesmo em alguns cursos delas, as outras devem ter turmas grandes em alguns cursos também como nas brasileiras. Nos outros quesitos é que a diferença se agrava. E por uma série de motivos.

Tomando o caso da linguística como exemplar. Primeiro, escrevemos em português. Com sorte, os colegas lusófonos do outro lado do atlântico nos lerão. Segundo, quantas teses de brasileiros viraram referência mundial na área ou no tema estudado? Melhor deixar quieto, né? Isso tem impacto em citações. Como a pesquisa que produzimos aqui não circula para fora (mal circula aqui dentro) ela não produz impacto. Logo, a nossa capacidade de atrair estrangeiros fica limitada. O que atrai alunos estrangeiros é a excelência em determinando campo e a presença de pesquisadores de peso. E só se vira um pesquisador de peso com tempo para pesquisa, orientação de projetos, publicação em periódicos importantes da área, e assim por diante. Quantos brasileiros possuem artigos publicados na Linguistics and Philosophy ou no Journal of Semantics, dois periódicos importantes de Semântica Formal? Quantos brasileiros possuem artigos publicados no Natural Language and Linguistic Theory ou no Linguistic Inquiry, dois periódicos importantes da área de linguística formal? Provavelmente não consigamos encher duas mãos com nomes de linguistas. Claro, a linguística é um caso à parte. Talvez na biologia ou na física as coisas sejam diferentes. Embora eu tema que não muito.

Fala-se em internacionalização das instituições nacionais. O que isso quer dizer exatamente? Intercâmbio com outras instituições? Divulgação no exterior dos nossos estudos? Atração de estudantes e pesquisadores estrangeiros? Acho louvável que se aspire a isso. Só não acredito que viveremos para ver.

Perde-se muito tempo com discussões bobas e burocracia. Temos problemas graves de infraestrutura. As verbas são extremamente limitadas e mal utilizadas. Áreas com práticas diferentes de pesquisa são avaliadas pelos mesmos critérios. E tanto um professor dador de aula quanto um pesquisador serão avaliados como iguais. Um professor de ensino superior deveria poder escolher entre ser um ‘professor’ integralmente ou ser um pesquisador integralmente e um professor de vez em quando. Mas não é isso o que acontece. Desvaloriza-se quem dá muitas aulas e não escreve, e sobrevalorizamos quem dá poucas aulas e escreve muito (excluindo da conta os que não fazem nem uma coisa nem outra). Aí é que volta a cena o problema da vocação das nossas universidades. É incompatível uma universidade gigantesca, com muitos alunos de graduação, com a atividade de pesquisa. A administração do cotidiano tira professores de sala de aula e sobrecarrega outros.

Nesse sentido, deveríamos ser comparados com outras universidades grandes do globo que tenham a mesma estrutura e vocação que as nossas, ou seja, instituições cuja missão principal seja a formação de mão-de-obra e secundariamente a pesquisa. A Universidade de Illinois tem 32.281 alunos de graduação e 12.239 alunos de pós e é a 63ª (A Unicamp é a 206ª, pra comparação). Note-se que agora a diferença já não é tão absurda. Portanto, não deveríamos nos comparar com Cambridge, Harvard ou a Sorbonne, e sim com outras instituições com objetivos e foco similares. Quem sabe assim não tomemos de 7×1.

Como ensinar matemática

Krantz, Steven. How to teach mathematics. 2. ed. Providence, Rhode Island: American Mathematical Society, 1999.

O leitor poderá achar estranho um linguista e professor de português resenhando um livro sobre como ensinar matemática. Logo, logo, vocês verão que não há estranheza alguma nisso, e o que esse livro traz de interessante vale para qualquer campo do conhecimento. Steven Krantz é PhD em matemática pela Princeton University (1974) e atualmente leciona na Washington University, campus de St. Louis. É autor de inúmeros artigos e livros tanto técnicos quanto destinados a um público maior.

“Como ensinar matemática” tem um título, que eu diria, enganoso. O livro é mais sobre didática do ensino superior do que propriamente sobre o ensino de matemática nesse nível (e nos níveis inferiores, como o fundamental e o médio). Apesar de a realidade dele ser bem diferente da nossa, algumas boas lições podem ser tiradas dali. O livro se divide em 4 capítulos principais, um de conclusão e alguns apêndices (esses são escritos de outros professores e pesquisadores da área da matemática sobre assuntos mais específicos, de pouco interesse ao leitor comum).

O primeiro capítulo, ‘Guiding Principles’ estabelece um pano de fundo no qual a discussão do livro ocorrerá. Esse pano de fundo é a reforma do sistema educacional americano e o funcionamento do ensino superior nas universidades americanas. A sensação de que os alunos estão chegando cada vez mais fracos para a universidade não é apenas brasileira, é americana também e isso lá nos anos 90 (imagine agora?). Veremos no capítulo 4 que isso não é desculpa para o professor dar uma aula meia-boca ou subestimar os seus estudantes. Esse capítulo vai tratar de alguns temas que para muitos pouco significam, mas para quem passa pelo crivo de bancas toda vez que enfrenta um concurso saberá do que eu estou falando.  Preparar a aula, ser claro, usar o quadro organizadamente, fazer e responder questões, o uso do tempo etc., são aspectos básicos de uma aula (em qualquer nível) que ninguém nos ensina (mas deveriam, principalmente nos cursos de licenciatura). E aí está o primeiro mérito do livro, como se no ensino superior não fosse importante manter o quadro organizado, ter uma letra compreensível e/ou ter uma aula com começo, meio e fim (aos meus alunos que irão ler isso: acreditem, eu tento ser organizado, mas nem sempre consigo). Claro que isso é importante, e faz parte do sucesso da aprendizagem. Uma frase que ele usa muito é: “qual a mensagem que você está passando aos alunos?” Se você não está preocupado com o aprendizado deles, não espere que eles estejam preocupados com a sua disciplina. Muitos estudantes chegam do ensino médio e demoram um tempo até se inserirem na dinâmica do ensino superior. Para ele há diferença entre o ensino superior e o ensino médio. Faz parte do trabalho do professor universitário mostrar essa diferença e ajudá-los a fazer essa transição. Vejo muitos colegas simplesmente questionando a dificuldade dos alunos em se adequarem ao funcionamento da faculdade, isso porque supõem que o aluno deva ter um conhecimento que ele não tem. A faculdade não é um ensino médio reforçado ou um ensino técnico (por mais que às vezes eu tenha a impressão de que é isso que a gente faz ali todo dia, estamos formando técnicos).

O segundo capítulo trata de Assuntos Práticos “Practical Matters”. O autor discute temas como a organização da aula, fazer contato visual, dar lição para casa, como organizar a disciplina ao longo do semestre, como formular avaliações, escolher um livro-texto, diferenças entre dar aula para uma turma pequena e uma turma grande e outras questões de organização básica de uma disciplina acadêmica.

O capítulo “spiritual matters” discute questões filosóficas mais amplas sobre o ensino. Para o autor, um professor padrão passa a matéria no quadro e vai pra casa. Um professor dinâmico “interage com os estudantes, excita a curiosidade intelectual deles, e os ajuda a descobrir ideias sozinhos.” (p. 87) Essencialmente, grande parte do sucesso está no professor, em suas atitudes, na mensagem que ele está passando aos estudantes. E a principal, a meu ver, é que ele está preocupado com a aprendizagem dos alunos. Por isso é importante saber como a aprendizagem ocorre, quem são aquelas pessoas que passarão um semestre (ou um ano todo, no caso dos regimes anuais) ouvindo você falar. Paralelamente, é preciso ter em mente o objetivo do ensino superior. Como eu disse anteriormente, penso que muitas vezes agimos como se o objetivo do ensino superior fosse apenas treinar os indivíduos em alguma área específica, dar-lhes uma profissão. Claro que esse é um objetivo básico, mas não pode ficar nisso. Para Krantz, é parte fundamental do ensino superior também desenvolver habilidades de pensamento crítico e conhecimento e experiência com o discurso (‘discurso’ é entendido na linguística como toda e qualquer manifestação de linguagem, seja oral ou escrita, um bilhete é um discurso, assim como um artigo acadêmico também, suponho que seja isso que ele tenha em mente). É extremamente feliz esse tipo de afirmação, porque ingenuamente o leigo imagina que matemática pouco ou nada tem a ver com escrever e falar com clareza ou mesmo com raciocínio crítico, quando na verdade um bom matemático depende dessas habilidades tanto quando um linguista ou um historiador. Isso decorre de uma visão política sua. Pessoas que têm oportunidade de cursar o ensino superior possuem a responsabilidade social de assumirem posições de liderança e produzirem ideias, não apenas de consumi-las. E é trabalho do professor universitário passar isso aos seus alunos. Mas de nada adianta passar a mensagem e não lhes dar as ferramentas para tanto.

O quarto capítulo trata das dificuldades do trabalho docente. Professores experientes viveram situações dos mais diversos tipos, desde estudantes colando, entregando trabalhos atrasados até erros próprios. O que ele oferece nessa parte do livro são alguns caminhos para se lidar com essas dificuldades com bom senso, já que um problema pequeno pode se tornar uma grande dor de cabeça. Para ele não se deve aceitar trabalhos atrasados, porque isso tende a virar uma bola de neve, daqui a pouco a regra vira exceção. A cola é um problema grave, porque desmotiva aqueles que estudam e não deixa de ser uma prática desonesta. Para ele a solução é ser firme e ter uma política para lidar com esse tipo de comportamento. Eu sei que alguns alunos possuem dificuldades de aprendizagem e se esse aluno atinge uma nota que ele costumeiramente não atinge, então ele copiou deliberadamente o exercício do colega e depois colou na prova também. Alguns se livram desse problema dando provas com consulta, eu tento evitar isso ao máximo, embora em alguns momentos essa é a única saída quando o conteúdo é extenso e gravar as informações não é o mais importante e sim saber buscá-las. O autor também discute questões como frustração (‘os estudantes parece que esquecem tudo que viram em disciplinas anteriores’) e disciplina (‘sempre tem aqueles que vem pra aula pra bater-papo’). Ele conta o caso do William James, que deitava no chão da sala toda vez que os alunos paravam de cooperar ou estavam conversando demais. A sugestão de Krantz é que você deve encontrar uma forma própria de lidar com essas situações.

O livro se encerra com alguns pensamentos finais. Para o autor é importante que o professor (e isso vale não só para o professor de ensino superior) busque sempre formas de aprimorar suas técnicas de ensino e não jogue a culpa sempre nos estudantes (‘eles não aprendem porque tiveram uma base ruim’). Ensinar é algo prazeroso, gratificante e divertido. Só que é preciso ter consciência dos perigos, como ele diz. Evitar os perigos é um primeiro passo para se dar bem. E a mensagem final é que ele não espera que os matemáticos fiquem debatendo ideias geradas por especialistas em educação, mas que os matemáticos deveriam eles mesmos criar e discutir suas próprias ideias. É mais ou menos isso que o campo da linguística aplicada tem feito no Brasil, emesmo linguistas teóricos de alto gabarito. Afinal, a responsabilidade do linguista não é apenas com a pesquisa linguística, mas também com o ensino superior e a formação de futuros professores de línguas (seja portuguesa ou estrangeira).

O livro foi uma grata surpresa pra mim, porque ao mesmo tempo em que reafirmou algumas das convicções que eu já tinha me ajudou a perceber outras facetas do ensino superior para as quais eu ainda não tinha olhos. E isso é extremamente importante, porque evita que todo o prazer do trabalho se perca lidando com problemas, à primeira vista pequenos, mas que podem se tornar incontornáveis no futuro.