As definições de sujeito

Muita gente critica as definições das noções gramaticais usadas pelas nossas gramáticas tradicionais e repetidas por gramáticas escolares, livros didáticos e apostilas de concursos. Não dá muito trabalho perceber que as definições de sujeito e predicado apresentam problemas conceituais ou são definidas de maneira vaga, usando termos que não são definidos pelo gramático (ver Perini, Para uma nova gramática do Português; ou Azeredo, Gramática Houaiss da língua portuguesa).

Alguns exemplos:

Cunha e Cintra (: 137) “Sujeito é ser sobre o qual se faz uma declaração; o predicado é tudo aquilo que se diz do sujeito”.

Embora, posteriormente, eles identificam a estrutura da oração como a união de um SN e um SV.

Bechara (MGP: 409) “Chama-se sujeito à unidade ou sintagma nominal que estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para constituir uma oração”.

Bechara propõe algumas estratégias de identificação: a) estabelece concordância com o verbo do predicado; b) normalmente aparece à esquerda do verbo; c) responde à pergunta: quem ou o que.

Azeredo (Gramática Houaiss: 150): “Palavras e sintagmas são as únicas espécies de unidades aptas a desempenhar uma função sintática. Para tanto, é necessário que estejam contidas numa construção maior a cuja base se anexam. Se esta construção é uma oração, sua base é o SV, que funciona como predicado (Este relógio pertenceu ao meu avô), e o SN anexo a esta base funciona como sujeito (Este relógio pertenceu ao meu avô).”

Nas escolares:

Savioli (Gramática em 44 lições: 7): “Sujeito é o termo da oração que funciona como suporte de uma afirmação feita através do predicado”.

“Predicado é o termo da oração que, através de um verbo, projeta alguma afirmação sobre o sujeito”.

Também sugere os critérios que Bechara usa para identificar o sujeito.

Bechara (Gramática Escolar da LP: 15): Não faz uma definição clara:

“Sem verbo não temos oração, já vimos isto. Cabe agora insistir em que a sua natureza semântica (de significado) e sintática (de relação gramatical) determinará se a predicação da oração é referida a um sujeito, ou não. Esta referência se chama predicado da oração e o termo referente dessa predicação se chama sujeito:”

Marlit              deu um livro ao neto.

Sujeito                         predicado

 

Faraco, Moura e Maruxo (Gramática: 388)

“Sujeito é o termo sobre o qual se declara algo. O verbo da oração concorda com o sujeito em pessoa e número.”

“Predicado é tudo aquilo que se declara a respeito do sujeito. Não existe oração em predicado.”

Mas afinal, precisamos dessas definições no ensino da língua portuguesa? Qual é a utilidade de se definir o que são sujeito e predicado? Seria possível uma compreensão intuitiva dessas funções? Não seria mais fácil identificá-las com as posições estruturais de SN e SV, como propõe Azeredo, e que, em outros termos, Bechara e Cunha e Cintra trazem também?

Claro, nem todo SN ligado semanticamente a um SV é seu sujeito, nem mesmo a relação de concordância, para Perini (Gramática do Português Brasileiro) é um critério seguro.

Então, o que seria? A combinação das três coisas: a) relação de significado: termo do qual se predica uma propriedade; b) relação de forma: concordância de número e pessoa.

Não sei… me parece que os alunos identificam a função de sujeito muito mais a partir da intuição do que pelo uso racional das noções. Claro, sem mencionar a exemplificação: nos exercícios só se oferecem exemplos que se encaixam nas definições.

Resenha: Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky

GUIMARÃES, Maximiliano. Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 391 p.

capa max

Como de praxe, farei uma resenha informal de um livro que li recentemente e de que gostei muito. Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky foi escrito, julgo eu, pelo linguista brasileiro mais capacitado para tal tarefa. Maximiliano Guimaraes – graduado pela Universidade da Bahia, com doutorado na Universidade de Maryland, e hoje professor na Universidade Federal do Paraná – é um pesquisador que tem se mostrado interessado não apenas na técnica para análise dos dados, mas também em questões, digamos, mais teóricas e epistemológicas da abordagem, como revela sua produção. O livro demonstra que ele transita tranquilamente pelas várias facetas que o modelo gerativista adotou ao longo do tempo. O que nos dá a primeira qualidade do livro: é um passeio histórico pelas preocupações teóricas de Noam Chomsky e de outros pesquisadores engajados no empreendimento gerativo, que como o autor esclarece, não é obra de um homem só. O livro faz parte de uma coleção digna de todos os louvores. Gabriel Othero e Sérgio Menuzzi estão editando uma nova geração de clássicos na linguística brasileira.

O livro está organizado em 6 capítulos. O primeiro, na realidade, é uma introdução estendida e o último é a conclusão. O segundo é uma apresentação de uma série de noções fundamentais para o gerativismo: (a)gramaticalidade, competência e desempenho, Lingua-I e Língua-E etc. O terceiro capítulo, me pareceu, é quase uma história do modelo e serve para nos mostrar como as preocupações de Chomsky sempre foram as mesmas. O quarto capítulo trata de discutir uma crítica comum ao gerativismo: o sintaticocentrismo do modelo e a relação da sintaxe com os componentes sonoro e semântico da gramática. O capítulo que encerra o livro vai discutir alguns temas sobre aquisição da linguagem, como o argumento da pobreza de estímulo (o tema mais profundamente discutido no capítulo, também chamado de o problema de Platão) e o problema que ele chamou de problema de Borges (a partir do conto de Jorge Luis Borges, Funes, el memorioso, que narra o infortúnio de um indivíduo que é capaz de memorizar todos os detalhes do que experencia), tendo como pano de fundo a natureza da Gramática Universal. O problema de Borges serve como metáfora para ilustrar o desafio que uma criança teria se não fosse guiada por algum dispositivo cognitivo para a aquisição da linguagem como a Gramática Universal.

Uma das características do livro, para além do rigor na apresentação das noções e da vasta bibliografia que o autor cita, é o diálogo com os críticos. Principalmente nos capítulos iniciais e no capítulo final. Guimarães tem a preocupação clara de rebater algumas críticas, para ele infundadas, que são feitas por alguns linguistas brasileiros. Por exemplo, na seção 2.3 responde às críticas que Marcos Bagno de que o falante-ideal chomskyano é uma figura mítica sem correspondente na realidade, já que abstrai da língua todos os fatores extralinguísticos que a constituem, com citações do próprio Chomsky, em que ele justifica essa escolha pela idealização. Embora já existam livros com esse propósito – como o excelente Curso básico de linguística gerativa, de Eduardo Kenedy (Contexto, 2013) – esse segundo capítulo é uma baita introdução ao gerativismo.

Não se engane. O livro não é uma introdução. Como o próprio autor esclarece no primeiro capítulo, seu livro não é uma introdução técnica à sintaxe, é antes um complemento, que eu diria mais epistemológico a introduções técnicas, como o Novo Manual de Sintaxe (Mioto; Figueiredo-Silva; Lopes. Contexto). Citando Guimarães (p. 16)

Meu objetivo é ajudar o leitor a compreender Chomsky num sentido complementar
a saber manipular o aparato técnico-analítico aplicável a dados. Há vários modos de se fazer teoria e análise gramatical. Por que alguém deveria adotar ou rejeitar o modo chomskyano de fazê-lo? Para tomar partido, é preciso conhecer minimamente o objeto de estudo, os objetivos, os métodos, as premissas, e as bases empíricas e conceituais nas quais o paradigma chomskyano se sustenta.

Ou seja, a leitura do livro pressupõe pelo menos familiaridade com a análise sintática gerativista e uma introdução à linguística geral. Guimarães também tem o cuidado de dar crédito às ideias (o que muitas vezes fica obliterado em livros dessa natureza) e de oferecer leituras adicionais, a todo momento indicando ao leitor referências.

*Para o leitor interessado em uma resenha mais completa e detalhada, Alessandro B. Medeiros (UFRJ) escreveu uma na revista LinguiStica (UFRJ), v. 13 (2), 2017.

Estrutura argumental e discurso

O número de complementos de um verbo e os papéis temáticos que esse verbo atribui a esses participantes é um tema que pode ser tratado de diferentes perspectivas. Posso olhar para isso considerando o papel do léxico, o papel da sintaxe, ou o papel que essas propriedades possuem para a situação descrita e/ou seu papel composicional. Comparando (1) e (2),

(1) João abriu a porta com a chave.

(2) A porta abriu com a chave.

vemos que do ponto de vista lexical abrir é um verbo que descreve uma situação que pede pelo menos dois participantes, quem abre e o que é aberto. Do ponto de vista sintático abrir é um verbo transitivo direto, que toma como sujeito e objeto sintagmas nominais e atribui a eles um papel temático qualquer.

Na voz ativa, se o verbo possui dois argumentos, um paciente e outro agente, em 99,9% dos casos o português vai transformar o agente em sujeito e o paciente em objeto. Do ponto de vista composicional, (1) expressa que existiu uma situação de abrir em que João foi o agente, a porta o paciente, e a chave foi o instrumento usado na situação. Claro, a explicação para (2) pode ser o trabalho de um semanticista-lexicólogo quanto de um sintaticista. Afinal, o que permite que o verbo abrir construa uma estrutura com um sujeito paciente? É o fato de ele pertencer a uma classe lexical, ao que tudo indica, ou isso não interessa, temos verbos no português que permitem um uso intransitivo, e informações semânticas são secundárias?

O fato é que os verbos possuem uma estrutura que pode ser maleável. Com isso quero dizer que com um verbo como abrir eu posso criar com ele diferentes estruturas sintáticas para descrever a mesma situação:

(3) A porta foi aberta (por João).

(4) A chave abriu a porta.

(5) A abertura da porta (pelo João) (com a chave)

Veja que há construções em que posso omitir o agente, como (2), a forma ergativa,  (3), a passiva, (4), o instrumento foi alçado a sujeito, e (5), uma nominalização. A função referencial dessas estruturas é relativamente a mesma, mas a função textual/discursiva não.

Isso nos mostra que o falante possui à sua disposição, com alguns verbos, uma gama de opções linguísticas para descrever os acontecimentos que pretende comunicar. E a escolha por uma dessas alternativas pode ser regida por vários fatores discursivos: o tópico do discurso (do que estou falando), relevância comunicativa (às vezes não interessa quem foi o agente ou não se sabe) ou motivações socioideológicas (cf. A gasolina aumenta amanhã é um manchete que oculta o fato de que há um agente público, o governo federal, que realizou o aumento; e me parece que expressar ou ocultar agente públicos em notícias depende da simpatia do grupo de mídia).

Segundo reportagens, parece que armas podem disparar sozinhas. Por isso é comum vermos manchetes como:

(6) Arma dispara sozinha e acerta policial em Porto Alegre. (R7, 08/12/2010)

(7) Arma dispara e mata trabalhador autônomo em Campos. (Notícia Urbana, 21/07/2016)

Nos dois casos as armas estavam na cintura dos indivíduos atingidos. Mas temos casos em que alguém disparou a arma, tem um agente na ação, mas o redator escolhe não expressá-lo por não querer imputar culpa a esse agente, mesmo que na matéria se leia depois: “Segundo a Polícia Civil, o disparo foi feito por um amigo dele, da mesma idade”.

(8) Arma dispara e mata amigo de 12 anos. (VGNews, 21/08/2016)

Veja que isso nos dá outras estratégias de indeterminação do sujeito, além da tradicional apontada pela gramática escolar com o verbo na terceira pessoa do plural ou com pronome de indeterminação se. Quero dizer com isso que no caso de verbos como abrir ou disparar posso tranquilamente ocultar o agente da ação utilizando um recurso que o verbo me disponibiliza pela sua estrutura sintática, isto é, posso alçar o paciente a sujeito.

(9) Assaltaram a farmácia da esquina.

(10) Bandidos assaltam farmácia.

(11) Farmácia foi assaltada.

Note agora que em (10) temos um sujeito linguístico, bandidos, mas que é uma expressão que se refere a um grupo indefinido. Normalmente essas manchetes não trazem os nomes dos envolvidos porque não é relevante, mesmo que depois eles sejam presos. Uma manchete como João da Silva e Marcos Moreira assaltam farmácia só é relevante se os personagens são conhecidos do público leitor do jornal. Assim, é mais comum vermos ao invés de (10) a manchete em (11).

Eu ando meio desleixado com o blogue. Andei escrevendo mais no Medium, minhas ficções, por isso não postei mais nada aqui. Vou publicar só por lá minhas aventuras na prosa, e vou deixar o blogue só pra falar de linguística ou outras coisas que me deem na veneta. medium.com/@luisandromendes

Colocação pronominal (parte II)

piaui 001Dias atrás eu comentei o uso do pronome lhe. Na ocasião prometi falar de mais um caso especial de colocação pronominal. Esse caso é interessante porque mostra discrepância entre o que dizem as gramáticas normativas e o uso coloquial brasileiro. Acredito que todos conhecem o caso típico, exemplificado abaixo. [exemplos de Cegalla, 1985]

(1a) Ele deu o livro para mim/*eu.

(1b) Ele deu o livro para eu guardar.

(1c) Ele deu o livro para mim guardar.

O que vemos nos exemplos? Em (1a) temos o pronome de primeira pessoa como complemento de preposição. Nesse caso ele assume a forma mim. Compare com a forma eu, cuja ocorrência na fala deve estar restrita às crianças em fase de aquisição, apenas. Ou seja, isso nos mostra que um falante de português brasileiro jamais vai usar a forma eu depois de uma preposição (por isso o asterisco ali). Acontece que em (1b) temos um caso especial. O pronome não é complemento da preposição, mas é sujeito do verbo guardar. Erroneamente se diz que o pronome deve assumir essa forma porque mim não conjuga verbo (de onde as pessoas tiram essas coisas?). Não é nada disso. Na verdade, a forma é essa porque o pronome é sujeito de um verbo no infinitivo, portanto, não conjugado. O que importa aqui é a função sintática que o pronome ocupa. Lutar contra (1c) me parece a mesma coisa que enxugar gelo. Podem ficar dizendo que (1c) é errado, as pessoas continuarão a falar assim. Do ponto de vista do linguista o que interessa é: por que as pessoas falam assim? Ora, justamente porque a regra (1a) parece ser mais forte que a regra de (1b): entre usar a forma do pronome como sujeito e usar a forma dele como complemento de preposição, o falante opta pela segunda. Como a forma (1b) é a prescrita pelas gramáticas, a forma padrão, cabe ao professor mostrar as duas, explicar a diferença, e considerar que as duas podem ser usadas. O que diferencia uma da outra é o registro. Enquanto uma é coloquial, a outra é formal.

Deixemos de lado esse caso e agora vejamos outro. Os pares abaixo são exemplos que eu recolhi por aí.

(2a) Acho que devia abrir a porta e deixá-los entrar. [frase que aparece no trailer do filme Enquanto Somos Jovens]

(2b) …eu me divirto vendo eles correrem de um canto pro outro. [está na charge acima, da Piauí de out/2015]

O que temos aqui é um pronome que exerce dupla função sintática. Notem que o pronome de terceira pessoa é objeto de deixar e ao mesmo tempo sujeito de entrar. Abrindo uma gramática, como a de Cunha e Cintra, por exemplo, é essa a explicação que encontramos na seção que trata do uso do pronome oblíquo como sujeito de uma oração infinitiva. Para constar, Cegalla também menciona o fato. O caso é que nenhum deles traz exemplos como (2b): a estrutura é a mesma, o pronome parece ser objeto de ver e sujeito de correr. Eu tenho lá as minhas dúvidas se de fato o pronome é objeto do verbo. Note que essa solução complica as coisas. A estrutura do verbo tem que ser algo como [ [(você)] [deixa [los entrar]], ou seja, deixar pede como complementos um sujeito (cuja categoria tem que ser um sintagma nominal) e como objeto uma oração no infinitivo (ou conjugada, cf. Ele deixou que eles entrassem/eles entrarem.). Veja o problema: como é que o danado do pronome, que é sujeito do verbo assume a forma que tomaria caso fosse objeto direto? E não é só isso. Olhem a confusão: por que cargas d’água ele pode assumir a forma oblíqua aqui (deveria assumir?) e não pode no caso de (1)? Nenhuma das gramáticas que consultei proíbe a forma (2b), isso quer dizer que ela é lícita? Bom, eu não iria tão longe. Basta olhar as diferenças de emprego. Mesmo que o contexto de um trailer de cinema possa ser visto como um uso coloquial, o fato de estar escrito pode trazer a impressão de que o registro requerido seja o padrão. Já no caso de (2b), ou da tirinha do Charlie Brown abaixo, exemplos de uso oral, fica claro, me parece, porque a forma escolhida foi a reta. As duas frases são coloquiais, portanto, usar a forma oblíqua soaria bem estranho.

charlie brown 001

Vejam que, no fundo, não é uma questão de certo-errado que está em jogo. Temos duas formas de uso do pronome nesses casos. Uma é coloquial, típica da fala, outra é restrita a usos mais formais (não necessariamente escritos, claro). A língua que falamos é diferente da que temos que escrever em certas ocasiões. Isso é um problema? Não. Problema é um professor não saber a diferença entre os dois usos e dizer que o coloquial não existe.

[Créditos das imagens: Piauí 109; Peanuts completo: 1950-1952, trad. de Alexandre Boide, L&PM, 2014.]

Colocação pronominal: caso 1

Nesta semana falei de colocação pronominal na aula de sintaxe. Pelas leituras que fiz e por estar com o assunto na cabeça, acabei ficando com os olhos e ouvidos atentos a isso. Foi assim que encontrei o caso abaixo (tem outro, que vai ficar pra um próximo post).

Apareceu na minha timeline no Twitter a seguinte frase, uma resposta da Claro Brasil a um consumidor reclamando do serviço. “Conta pra gente por DM o que está acontecendo, ok?! Queremos lhe ajudar!” Há algumas coisas interessantes no segmento todo, mas vou focalizar apenas no pronome. Talvez ele passe despercebido para a maioria dos falantes. Mas ele é um típico caso de uso inadequado do pronome lhe (pelo menos se levarmos à risca os gramáticos normativos). Essa forma oblíqua do pronome de terceira pessoa deveria ocorrer apenas para substituir objetos indiretos. Paguei a dívida ao João/Paguei-lhe a dívida (exemplo de Cegalla, 1985). A forma que o pronome de terceira pessoa assume como objeto direto é o (e suas variantes no/lo e respectivas flexões de gênero e número – nunca entendi porque se listam as variações flexionais). O problema é que tal forma do pronome de terceira pessoa já não existe mais no português vernacular, isto é, não é português brasileiro coloquial, e isso em todas as classes sociais e rincões pelo menos é a minha impressão. Talvez lá nos corredores da ABL ainda se escute um o bem empregado. Pra aprendermos o uso de o temos que ir pra escola.

Antenor Nascentes (Letras, v. 11, 1960, clica aqui) já nos anos 60 comentava o que chamou de lheismo: a tendência de se regularizar o sistema de pronomes oblíquos com o lhe tomando o lugar de o. Notem as outras pessoas, primeira e segunda, possuem apenas uma forma para o acusativo e para o dativo: me e te. Segundo ele, essa tendência se manifestou no espanhol e não era novidade na sua época. Escritores do séc. XVI usavam alguns verbos com dupla colocação. Podia-se ler no Camões Este que socorrer-lhe não queria (Lusíadas), ou em Camilo Já tinha poucos amigos que o socorressem (Serões…). No início do séc. XIX, Francisco de Morais, em ‘Epítome da gramática portuguesa’, apontava como erro as colocações eu lhe amo, eu lhe adoro, no lugar de eu o amo, eu o adoro. Se o leitor se interessar por mais exemplos, leia o texto todo. Ele tem exemplos de Machado de Assis a Guimarães Rosa.

Vejam que a explicação para o uso de lhe no lugar de o vinha de uma analogia com o aconteceu no espanhol. Talvez ele não tenha se dado conta que o que também poderia estar interferindo era a baixa frequência do uso da forma acusativa do pronome. Com o seu desaparecimento, imagino, aí já sou eu hipotetizando (e como sempre digo, alguém mais esperto já deve ter dito isso antes e melhor que eu em algum lugar), que o lhe vem conferir formalidade a uma estrutura que normalmente seria preenchida por um pronome reto: ele (e suas variantes). Como a polícia gramatical está sempre em cima desse uso (não se usa pronome do caso reto na posição de objeto), o preenchimento por lhe é o que soa mais ‘certo’ para aqueles que não dominam o uso da forma acusativa o.

Tem gente que fica irritada com esse uso (clica aqui). O autor (ou autora) do texto atribui a disseminação do lhe pelo fato de ele ser característica de fala de uma personagem nordestina da novela das oito na época, Senhora do Destino (interpretada por Suzana Vieira). Não há motivo para destempero.

Eu jogo no time do Antenor Nascentes: “Até hoje os nossos gramáticos se tem recusado a admitir êste fato da língua. A quem conhece a mentalidade retrógrada e ultraconservadora dos gramáticos o fato não parece estranho. Os que, respeitando embora os ditames razoáveis da gramática, olham para a evolução natural da língua e aceitam os fatos consumados contra os quais é inútil lutar, pensam de outro modo e admitem lhe como objeto direto. Eu pertenço a êste número”.

Pois é, Antenor, mais de 50 anos depois e ainda nossos gramáticos ainda dizem que isso é errado. Mas é só explicar pra moçada o que está acontecendo que tá tudo certo. Erar é umano. Ainda mais quando há uma lacuna considerável entre o que falamos e o que devemos utilizar em situações monitoradas (principalmente de escrita).

N.B.: Dos gramáticos que consultei, Cegalla, Cunha & Cintra, Faraco, Moura e Maruxo, nenhum faz menção ao uso de lhe como objeto direto (pelo menos se os li corretamente ou procurei nos lugares certos).

Sobre o número em português

Olhando para como o número em português funciona, vemos que a palavra muda de forma se queremos nos referir a um indivíduo ou mais de um. Se o conjunto tem apenas um indivíduo a forma deve ser a singular, menino, por exemplo. Se o conjunto possuir mais de um elemento, a forma a ser usada deve ser meninos. No caso dos nomes é mais ou menos essa a história. Ou não? Se você for um bom observador, vai notar que não usei determinante nos exemplos. Em português se pode dizer também coisas como: o menino, os meninos. Agora os nomes estão precedidos por determinantes.

Isto posto, comparemos as frases abaixo:

(1) O menino bebeu suco.

(2) Os meninos beberam suco.

(3) Menino bebeu suco. (a frase pode soar esquisitinha, mas imagine que ela é seguida por menina bebeu refrigerante, mulher bebeu cerveja etc.)

Em (1) é o que dissemos acima, o conjunto denotado por menino é unitário. Será mesmo? Não poderíamos dizer que de fato quem dá o número é o determinante e que o papel do nome é apenas me informar do que estou falando? (i.e., estou me referindo à classe dos meninos).

Veja que podemos ter então duas hipóteses (pelo menos) sobre a denotação de um nome e sua relação com o número: a) o nome sem plural designa um conjunto unitário e o papel do artigo definido é dizer que esse elemento é conhecido dos falantes; b) o nome sem plural e acompanhado do artigo definido designa um conjunto unitário e também informa que esse elemento é conhecido dos falantes.

O exemplo (3) seria um problema para a hipótese (a). Afinal, se o nome sem marcação de plural designa sempre o conjunto unitário, como explicar que menino nesse caso possa se referir a mais de um indivíduo? Uma resposta possível seria afirmar que nesse exemplo menino designa a classe toda, portanto uma entidade semanticamente plural, embora seja morfologicamente singular. Complicado?

Sim, porque precisaríamos distinguir, se é que é possível distinguir, a marcação morfológica de plural (o –s ao final das palavras) e o plural semântico, a possibilidade de a palavra se referir a um conjunto que possua mais de um indivíduo em seu domínio. Pense em casos como povo, a maioria, grupo etc., palavras que são morfologicamente singulares, mas que designam conjuntos cuja referência contém (e deve conter) mais de um elemento. Afinal, não existem maioria de um só, nem grupo de um lobo solitário (pelo menos no uso comum que fazemos dessas palavras).

Por outro lado, e se (3) for visto como uma evidência de que a hipótese (b) está correta? Essa seria uma forma diferente de entender o plural na língua portuguesa. Seria supor que ele tem como termo regente não o substantivo, mas o determinante, isto é, o termo que antecede o nome e o localiza discursivamente (se é conhecido ou não, no caso dos artigos definidos ou indefinidos), ou como se localiza no espaço do discurso/texto (no caso dos pronomes demonstrativos) [estou simplificando grosseiramente o papel dos determinantes aqui].

O leitor poderia pensar em casos como (4), em que se pode fazer o plural sem usar determinante. E agora?

(4) Meninos gostam de desenhos animados de aventura.

Temos aqui um nome que possui morfologia de plural, e que designa uma classe de indivíduos com cardinalidade maior que um. Veja que se temos morfologia de plural, necessariamente a cardinalidade do conjunto denotado pelo nome tem que ser maior que um. Note também que posso expressar a mesma ideia que (4) expressa sem usar o plural no nome:

(5) Menino gosta de desenho animado de aventura.

Aqui também me refiro a uma classe que é plural, no sentido que precisa ter mais de um elemento lá dentro (ou seja, é semanticamente plural), mas que não possui marca morfológica de plural, isto é, não possui –s no final da palavra.

Mas voltemos a (4). Até que ponto ele é uma contraevidência para a hipótese (b)? Ele parece ser um problema sério para essa hipótese. E no momento não vejo como acomodá-lo nessa visão (talvez um linguista mais esperto que eu saiba). A não ser que…

…o sistema de expressão morfológica (ou morfossintática) do plural em português funcione de outra forma (uma terceira hipótese): o plural não precisa estar nem no nome, nem no determinante, obrigatoriamente, mas ele precisa estar expresso no primeiro elemento do sintagma nominal. Ou seja, se a escolha do falante residir na forma marcada morfologicamente para expressar o plural, então essa marca precisa estar expressa no primeiro elemento do sintagma (como as pesquisas em sociolinguística parecem mostrar). Nesse sentido, nem o determinante, nem o nome são os responsáveis, per se, pela expressão do número, e sim a configuração que a estrutura do sintagma apresenta. (suponho que algum linguista por aí já tenha defendido essa hipótese).

Tradicionalmente os gramáticos tenderam a ver o nome como o elemento que determina a expressão do número, é ele quem rege a concordância. Vejamos o que diz Said Ali, por exemplo: “Número é a particularidade que têm os substantivos de indicar se se fala de uma pessoa, animal, ou cousa, ou de mais de um ser”. Veja que a expressão do número é característica do substantivo. Cunha e Cintra possuem a mesma visão. A visão de Mattoso Câmara Jr. não é muito diferente. No seu Dicionário de Linguística e Gramática, ele afirma o seguinte na entrada sobre número: “Categoria gramatical que leva em consideração o número dos indivíduos designados nos nomes” (p. 179). Claro, a intuição é exatamente essa. Usamos o singular ou o plural em função da cardinalidade do conjunto de indivíduos que queremos designar. Talvez por isso a ênfase tenha recaído sobre o nome em si, núcleo da construção (outra hipótese bem discutível).

Poderíamos tomar esse caso como um exemplo de como os dados que escolhemos podem nos levar a formular uma hipótese ou outra. O caso da marcação não-padrão do plural em português pode ser visto tanto como uma evidência para as duas últimas hipóteses, quanto como uma contraevidência para a hipótese (a). Se o plural é marcado no nome, por que podemos dizer os menino, então? Agora, se ignoramos a marcação não-padrão, e os nomes sem determinantes, tudo nos leva a crer que a opção (a) é a correta. Talvez tenha sido isso o que levou os gramáticos a considerarem que o número morfológico é expresso essencialmente no nome núcleo do sintagma nominal e não no determinante ou no primeiro elemento da construção.

Uma ressalva precisa ser feita aqui: será que poderíamos formular a hipótese (c) com o aparato conceitual da gramática tradicional? Falo ali em ‘sintagma’, ‘construção’, noções relativamente recentes no pensamento gramatical/linguístico. Por pensar o funcionamento da língua estritamente em cima da noção de palavra, não sei até que ponto também seria possível formular a terceira hipótese nesse paradigma incapaz, creio, de formular regras olhando para a estrutura interna de uma construção, já que não há a noção de construção na NGB, por exemplo, embora se fale em ‘termo’, em muitas das nossas gramáticas. Uma noção, que pra mim, abarca não só o conceito de vocábulo/palavra, como também o conceito de sintagma/construção. Embora, a noção de concordância nominal seja construída a partir da hipótese que o nome é quem rege a concordância dos seus termos satélites/determinantes. A de gênero parece ser assim, já a de número…