Quem decide se uma pronúncia existe?

Um dos negócios mais difíceis de colocar na cabeça das pessoas é que não tem um valor intrínseco nas formas linguísticas. Mortadela não é mais correto que mortandela como uma verdade absoluta inquestionável. Depende, essencialmente, do valor que o grupo de falantes da língua dá praquela forma.

“Uma variedade linguística “vale” o que “valem” na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”. É o que disse o italiano Maurizzio Gnerre em um livrinho clássico chamado Linguagem, escrita e poder (Martins Fontes, 1985). Isso quer dizer que quando temos opções na língua, quando vemos grupos sociais utilizando formas distintas, é inevitável que se atribuam valores sociais àquelas formas. Assim, mortandela não é errada em si mesma, é errada porque um grupo de falantes usa essa forma, e esses falantes normalmente são pouco escolarizados. Mortadela é a forma correta porque é a forma registrada nos dicionários e está associada à escrita, pois é a forma que as classes escolarizadas utilizam.

Na semana passada um médico tentou tirar um sarro de uma paciente que falou peleumonia e raôxis (se você não sabe do que eu estou falando, clica aqui). Por que tem gente que acha engraçado o falar diferente? Por que Framengo, praca e adevogado são pronúncias engraçadas?

Já se falou em preconceito linguístico e preconceito social. Rio dessas formas porque não gosto da classe social que as utiliza, e a fala é uma forma de eu criticar ou manifestar meu desprezo. Posso desprezar outros produtos culturais de uma classe social, como a sua música, a sua dança, sua produção escrita, seu vestuário etc. Falar de sexo numa letra do AC/DC não tem problema, mas num funk tem.

Isso tudo fica um pouco mascarado porque tem toda uma complexa rede de instituições que atuam para criar o que se chama de Norma Padrão. Como qualquer língua humana é intrinsecamente variável, isto é, varia na pronúncia, na forma das palavras, na aplicação das regras, no vocabulário, historicamente se cultiva uma variedade que aos poucos vai se tornando limpa, digamos assim, de regionalismos. As instituições que atuam no cultivo dessa norma são a escola, os gramáticos, os dicionários, a imprensa, os intelectuais, ou seja, a própria sociedade. São esses atores que controlam o que é e o que não é português. E esse controle se baseia principalmente na associação à escrita (se a pronúncia é mais próxima da escrita é mais correta), ou no valor do grupo social que usa a forma. É o caipira que fala poRta (usando o erre retroflexo), ou o colono do interior da região sul que usa o erre fraco (o tepe) onde o resto do Brasil usa o erre forte (o vibrante), em palavras como rato, serra etc.

Assumir que mortandela e peleumonia existem seria o mesmo que dizer que a minha língua vale tanto quanto a dele. Isso quer dizer que já não sou mais tão especial assim, que minha língua não é mais expressiva e clara que a da minha empregada. E esse pensamento assusta algumas pessoas.

Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.

Colocação pronominal (parte II)

piaui 001Dias atrás eu comentei o uso do pronome lhe. Na ocasião prometi falar de mais um caso especial de colocação pronominal. Esse caso é interessante porque mostra discrepância entre o que dizem as gramáticas normativas e o uso coloquial brasileiro. Acredito que todos conhecem o caso típico, exemplificado abaixo. [exemplos de Cegalla, 1985]

(1a) Ele deu o livro para mim/*eu.

(1b) Ele deu o livro para eu guardar.

(1c) Ele deu o livro para mim guardar.

O que vemos nos exemplos? Em (1a) temos o pronome de primeira pessoa como complemento de preposição. Nesse caso ele assume a forma mim. Compare com a forma eu, cuja ocorrência na fala deve estar restrita às crianças em fase de aquisição, apenas. Ou seja, isso nos mostra que um falante de português brasileiro jamais vai usar a forma eu depois de uma preposição (por isso o asterisco ali). Acontece que em (1b) temos um caso especial. O pronome não é complemento da preposição, mas é sujeito do verbo guardar. Erroneamente se diz que o pronome deve assumir essa forma porque mim não conjuga verbo (de onde as pessoas tiram essas coisas?). Não é nada disso. Na verdade, a forma é essa porque o pronome é sujeito de um verbo no infinitivo, portanto, não conjugado. O que importa aqui é a função sintática que o pronome ocupa. Lutar contra (1c) me parece a mesma coisa que enxugar gelo. Podem ficar dizendo que (1c) é errado, as pessoas continuarão a falar assim. Do ponto de vista do linguista o que interessa é: por que as pessoas falam assim? Ora, justamente porque a regra (1a) parece ser mais forte que a regra de (1b): entre usar a forma do pronome como sujeito e usar a forma dele como complemento de preposição, o falante opta pela segunda. Como a forma (1b) é a prescrita pelas gramáticas, a forma padrão, cabe ao professor mostrar as duas, explicar a diferença, e considerar que as duas podem ser usadas. O que diferencia uma da outra é o registro. Enquanto uma é coloquial, a outra é formal.

Deixemos de lado esse caso e agora vejamos outro. Os pares abaixo são exemplos que eu recolhi por aí.

(2a) Acho que devia abrir a porta e deixá-los entrar. [frase que aparece no trailer do filme Enquanto Somos Jovens]

(2b) …eu me divirto vendo eles correrem de um canto pro outro. [está na charge acima, da Piauí de out/2015]

O que temos aqui é um pronome que exerce dupla função sintática. Notem que o pronome de terceira pessoa é objeto de deixar e ao mesmo tempo sujeito de entrar. Abrindo uma gramática, como a de Cunha e Cintra, por exemplo, é essa a explicação que encontramos na seção que trata do uso do pronome oblíquo como sujeito de uma oração infinitiva. Para constar, Cegalla também menciona o fato. O caso é que nenhum deles traz exemplos como (2b): a estrutura é a mesma, o pronome parece ser objeto de ver e sujeito de correr. Eu tenho lá as minhas dúvidas se de fato o pronome é objeto do verbo. Note que essa solução complica as coisas. A estrutura do verbo tem que ser algo como [ [(você)] [deixa [los entrar]], ou seja, deixar pede como complementos um sujeito (cuja categoria tem que ser um sintagma nominal) e como objeto uma oração no infinitivo (ou conjugada, cf. Ele deixou que eles entrassem/eles entrarem.). Veja o problema: como é que o danado do pronome, que é sujeito do verbo assume a forma que tomaria caso fosse objeto direto? E não é só isso. Olhem a confusão: por que cargas d’água ele pode assumir a forma oblíqua aqui (deveria assumir?) e não pode no caso de (1)? Nenhuma das gramáticas que consultei proíbe a forma (2b), isso quer dizer que ela é lícita? Bom, eu não iria tão longe. Basta olhar as diferenças de emprego. Mesmo que o contexto de um trailer de cinema possa ser visto como um uso coloquial, o fato de estar escrito pode trazer a impressão de que o registro requerido seja o padrão. Já no caso de (2b), ou da tirinha do Charlie Brown abaixo, exemplos de uso oral, fica claro, me parece, porque a forma escolhida foi a reta. As duas frases são coloquiais, portanto, usar a forma oblíqua soaria bem estranho.

charlie brown 001

Vejam que, no fundo, não é uma questão de certo-errado que está em jogo. Temos duas formas de uso do pronome nesses casos. Uma é coloquial, típica da fala, outra é restrita a usos mais formais (não necessariamente escritos, claro). A língua que falamos é diferente da que temos que escrever em certas ocasiões. Isso é um problema? Não. Problema é um professor não saber a diferença entre os dois usos e dizer que o coloquial não existe.

[Créditos das imagens: Piauí 109; Peanuts completo: 1950-1952, trad. de Alexandre Boide, L&PM, 2014.]

A gente e as palavras

Em vários trabalhos William Labov mostrou que os falantes mudam sua expressão linguística se possuem consciência de que estão sendo monitorados. A maioria de nós tem consciência de que existe uma variedade de língua que é a correta, ou valorizada pela sociedade. Se nossa fala dista daquela em algum grau (por falta de escolarização, por morarmos longe dos centros urbanos etc.), normalmente, o falante tem uma atitude de menosprezo com sua própria fala. Quem se orgulharia de ‘falar errado’, não é mesmo?

Pois bem, não sei de onde surgiu a lista. Tomei conhecimento pelo Buzzfeed (que faz as listas mais massa da internet) e a vi chupinhada em vários lugares, inclusive no rádio, pelo Pretinho Básico (programa das 18h da Atlântida). A lista original do Buzzfeed traz uma série de palavras que exemplificam fenômenos diversos: imbigo/umbigo, tauba/tábua, zap-zap/Whatsapp, mindingo/mendigo, adevogado/advogado, pobrema/problema, guspe/cuspe, iorgute/iorgute.

O caso de imbigo é um mistério pra mim, embora, à primeira vista, temos a troca de um segmento por outro. O que difere u e i é a posição da língua em relação à boca. Na articulação do primeiro segmento a língua está avançada, e na do segundo, recuada. Mindingo é fácil. Há duas coisas acontecendo aqui. Primeiro, normalmente, nas sílabas átonas (pré ou pós-tônicas) as vogais médias são alçadas. Em outros termos. No português coloquial, em muitos lugares do país, onde temos um e ou um o, a tendência é que em posições átonas essas vogais virem u ou i. Do ponto de vista articulatório, a única diferença entre esses pares e/i, de um lado, e o/u de outro é a altura da língua. Dizemos que i e u são vogais altas, enquanto e e o são vogais médias (a figura ilustra isso). É por isso que falamos zueira e não zoeira, mininu e não menino, leitchi e não leite. Claro. Há regiões do país em que essa pronúncia não ocorre (alguns lugares do sul). Nesses lugares ouviremos menino, leite, zoeira, mendigo. E aquele n, de onde saiu? Ele surge por assimilação (fonólogos, me corrijam se eu estiver errado), a nasalidade da primeira sílaba passa pra segunda. Há dois segmentos nasais na primeira sílaba, m e en – por mais que tenhamos duas letras aqui, o som é apenas um.

Tauba e iorgute podem ser envolvidos no mesmo conjunto (acredito), pois envolvem a mudança de sílaba de um segmento. u estava na segunda sílaba e pulou para a primeira. O mesmo com o r de iogurte. Esse fenômeno, tecnicamente chamado de metátese, é bastante comum na história do português e produziu palavras que hoje nos soam naturais, mas que tinham pronúncia diversa no latim. Alguns exemplos: inter (latim)/entre (português); semper (latim)/sempre(português).

Pobrema envolve duas coisas. Talvez seja a mistura de rotacismo (a troca de l por r) e o fenômeno anterior.

Adevogado também envolve dois fenômenos. O primeiro é a epêntese, que é a inserção de uma vogal onde antes ela não existia. Como a estrutura silábica do português não admite (aqui no sentido natural da coisa, não no sentido normativo) sílaba que termine por consoante oclusiva, a tendência natural é inserirmos uma vogal, o fechamento comum de sílaba na nossa língua. Isso ocorre com peneu/pneu, pisicólogo/psicólogo, páquito/pacto etc. Como a sílaba é pretônica, o natural é que a vogal seja um i, como de fato é o caso. Mas por que, então, e? Ora, o falante erra tentando acertar (a hipercorreção, corrige onde não deve), justamente por que normalmente nas posições átonas onde pronunciamos i, essa vogal é uma variante de e.

Guspe é um caso mais complicado. Mas também envolve uma mudança comum na articulação desse tipo de consoante. A diferença articulatória entre g [g] e c [k] é somente um traço, a vibração das cordas vocais. A vibração que inexiste em [k] é acrescentada na produção do segmento, gerando [g]. Como não muda o significado da palavra, não há problema comunicativo. Esse é um processo bastante comum, e deu origem a lobo (do latim, lupum), vida (do lat., vita), água (do lat. acqua).

Bom, mas por que eu falei de atitude do falante? Vejam que a lista do Buzzfeed trata com bom humor essas pronúncias (embora também as classifique como ‘erros’). Afinal, elas fazem parte do nosso cotidiano, e são características do português coloquial falado por classes populares com baixa escolaridade em grande parte do país (logo, menos influenciáveis pela escrita). É mais gostoso falar assim porque esse é o vernáculo (é a língua que aprendemos com a família, com a mãe, com os vizinhos na rua), a língua que aprendemos sem instrução formal. O Blog do Jair Kobe (o Guri de Uruguaiana) pegou a lista e a desvirtuou: a transformou em “18 coisas faladas errado que ‘te dá nos nervo'”. Como é que um humorista que se utiliza justamente de traços típicos da fala gaúcha para construir seu personagem tem essa atitude perante tais fenômenos? Talvez por um pré-conceito, uma visão equivocada e ingênua do que seja a variação. O que é o certo é o que eu falo, ou uma variedade de língua inalcançável, a língua padrão. O que vale é a versão escrita da palavra (um dos mitos mais difíceis de desconstruir). Como assim, meu? Por que daria nos nervo de alguém a pronúncia natural de um grupo de palavras? Suponho que ela só irritaria quem fala de forma diferente.

Pra saber mais: Mário Eduardo Viaro. Etimologia. Contexto. No livro o autor apresenta uma série de fenômenos responsáveis pela mudança na forma das palavras. Muitos dos processos que produziram as mudanças no latim que originaram as línguas românicas ainda estão ativos no português.

O português na mídia

Duas notinhas:

1) O título da matéria da ZH: “Já duram mais de 48 horas buscas por marinheiro que teria caído de navio em Pelotas”

Por que buscar alguém que “teria caído”´? É só no meu idioleto que o futuro do pretérito é um tempo que expressa incerteza? Aparentemente para os jornalistas da ZH é um verbo do modo indicativo, logo expressaria certeza. Isso é uma hipótese, ainda não entendi esse uso, tem cheiro de hipercorreção. O que me intriga é o jornalista não ter usado a forma simples: “caiu”, já que de fato o sujeito foi visto desaparecer na água, conforme relata uma testemunha entrevistada; embora, os tripulantes da embarcação em que marinheiro estava só se deram conta do sumiço do sujeito 40 minutos depois de zarpar, última vez em que foi visto no barco.

2) Achei curioso a frase da Cristina Ranzolin, âncora do Jornal do Almoço, da RBS (RS): “fulana, conta pra gente o que você tá fazendo por aí.” Como ela é gaúcha de Porto Alegre, por que usa “você”? Hipótese: o “tu” é de registro informal na cidade? Teria que reparar nos outros jornalistas para ver como eles conversam entre si.

O deputado mineiro que queria proibir Guimarães Rosa nas escolas

A semana passada foi bem bagunçada e acabou que não consegui atualizar o blogue na sexta, por isso o texto saiu hoje. A ideia de publicar um post por semana (pelo menos), é para justamente me obrigar a ter uma rotina de escrita. E eis que duas coisas interessantes aconteceram na semana passada, consegui ver a palestra do Carlos Alberto Faraco no youtube e descobri o projeto de lei do deputado estadual Bruno Siqueira (PMDB). Bruno é de Juiz de Fora, e é formado em engenharia civil. O projeto do deputado quer defender a língua portuguesa (clique aqui para ver o projeto). Mas defendê-la de quem? Dos seus próprios falantes? Daqueles escritores que contrariam a norma culta com objetivos estilísticos? Se o lugar da produção cultural brasileira escrita em vernáculo não é a escola também, onde ela deve ser consumida e apreciada? Nos guetos?
O texto do projeto de lei é o seguinte, foram suprimidos os trechos que listavam os autores que estariam proibidos de serem lidos nas escolas mineiras. Pelo menos é o que está na página:
“A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – O art. 2º da Lei nº 8.503, de 19 de dezembro de 1983, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 2º – (…)
Parágrafo único – Será priorizada a adoção de livros que não contrariem a norma culta da língua portuguesa.”
Art. 2º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Primeira coisa: qual a justificativa para isso? Com base em que tipo de estudo o autor da lei está excluindo livros que contrariem a norma culta? Por que desenterrar um projeto de 1983, que por alguma razão não foi aprovado na época em que foi elaborado. Pelo que eu entendo, as leis são propostas para melhorar a vida da população ou regular atividades sociais que precisem de regras, como o trânsito, a venda de armas e remédios, essas coisas. Por exemplo, o governo quer proibir o consumo de cigarros com sabor porque eles incentivam os jovens a fumar. Como as doenças decorrentes do fumo geram custos para a saúde pública, essa decisão tem um certo apelo, embora esteja lidando com o direito do cidadão se envenenar da maneira que julgar conveniente. Alguns fumam cigarros sabor menta, outros comem hambúrgueres e sorvetes do McDonald’s, outros preferem costela e cupim, outros ainda preferem bebidas alcóolicas. No final das contas não vejo nenhuma justificativa científica para esse projeto (o do ensino). Mas há uma, e ela é essencialmente ideológica.
Por que alguém iria proibir o português coloquial escrito de entrar nas escolas? Por que alguém acredita que ler os gibis do Chico Bento, as poesias de Patativa do Assaré, Manoel Bandeira e Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade entre muitos outros, é prejudicial ao ensino de língua portuguesa quando não há nenhuma evidência científica de que seja esse o caso? Ora, porque esses escritores justamente buscavam se expressar utilizando o português coloquial e mesmo o português culto brasileiro (não o português culto dos portugueses). Vejamos o que diz um trecho do poema “Evocação do Recife” de Manuel Bandeira: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua CERTA do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/Ao passo que nós/O que fazemos/É macaquear/A sintaxe lusíada.” A crença de que existe uma língua correta apenas e que é preciso defendê-la de seus falantes incultos é tão ingênua que chega a ser triste uma iniciativa como essa. Se o deputado tivesse conhecimento sobre a matéria que pretende legislar teria se dado ao trabalho de ler os parâmetros curriculares nacionais, documento oficial do estado que dá embasamento ao tratamento da língua no ensino básico. Vejamos o que nos diz o documento:
“Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa
livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma correta de falar, o de que a fala de
uma região é melhor da que a de outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da
língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua
difícil, o de que é preciso consertar”a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.” (BRASIL, 1998, p. 31)

Um pouco antes dessa discussão sobre o lugar da variação e da gramática no ensino, os parâmetros estabelecem o seguinte em relação ao texto literário:

“O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento
de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É
possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação
aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras
(valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de
leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a
profundidade das construções literárias.” (BRASIL, 1998, p. 27).

Bom, supondo que o deputado é um sujeito responsável, que quer fazer o bem para as pessoas e melhorar a qualidade do ensino nas escolas públicas, acho que ele não faria uma lei que proíbe as pessoas de dirigirem embriagadas, porque ele sabe que já existe uma lei que faz isso. Então porque ele está querendo fazer uma lei para dizer aos professores de língua portuguesa o que eles devem levar para seus alunos ler quando já há um documento oficial que faz esse trabalho? Por puro achismo. Justamente pelo preconceito com as variedades populares da língua portuguesa falada no Brasil. Elas não possuem nada de errado intrinsecamente. Suponha que você esteja aprendendo o português agora, como uma língua estrangeira, e na aula você aprenda que deve-se dizer coisas do tipo “Quero dez pães.”, só que quando você vai na padaria escuta as pessoas dizendo “Quero cinco pão.”, “Dois pastel de carne.” “Custa cinco real.”. Você não sabe muito bem porque essa diferença existe, e pergunta ao seu professor que responde: quem fala assim é ignorante, é errado falar assim. Essa resposta seria dada por um professor preguiçoso, ou por alguém que nunca se deu conta de que não existe nada mais feio ou mais bonito em “dois reais” e em “dois real”, o valor que atribuímos à primeira alternativa é social. É a forma correta porque é a forma usada pelas pessoas escolarizadas (as ditas cultas), por quem detêm o poder econômico, pelos advogados, pelos juízes, nossas leis são escritas utilizando-se dessa variedade da língua, nossos melhores escritores (os modernos são uns fanfarrões, querem fazer literatura com o português coloquial, veja se pode uma coisa dessas, que atrevimento!). Ou alguém acha que escolheriam a língua dos sertanejos, dos motoristas de ônibus, das empregadas domésticas e dos feirantes para redigir leis? Claro que não, porque esses falantes da língua não possuem prestígio social. O que a proposta do deputado faz é, além de menosprezar a língua das classes populares, menosprezar a produção cultural realizada com essa variedade do português. Por mais que o Chico Bento use uma versão caricata do ‘caipirês’ (isso é, ninguém fala exatamente daquele modo), por mais que Patativa e outros cordelistas, ou mesmo canções tradicionais como o cuitelinho ou alguns sambas de Adoniram Barbosa sejam parte do nosso arsenal artístico, projetos desse tipo as rebaixam ao estatuto de mero folclore (quem devem ficar confinadas aos botecos, às favelas, às feiras-livres), quando a variação (entendida como a possibilidade estrutural de se expressar a mesma informação se utilizando de estruturas linguísticas diferentes) é um fenômeno muito mais complexo que isso. A isso se acresce o fato de que o deputado sequer deve ter ouvido algum especialista no assunto. Nesse caso, deixo aqui a palestra que o prof. Carlos Alberto Faraco, da UFPR, ministrou em um seminário da Olímpiada de Língua Portuguesa. Mas nem precisava vir até aqui. Ele poderia ter dado um pulo na UFMG e batido um papo com o Mário Perini.

Por que pesquisar o português?

O Mario Perini explica melhor que eu o que é pesquisa em gramática

Eu tinha planejado falar de outra coisa hoje, mas como o meu professor de violão me desafiou com a pergunta  “o que se descobriu sobre o português nos últimos tempos?” resolvi pensar sobre isso já que a minha aula de violão acabou virando um debate sobre a importância da pesquisa científica, que pra ele é nenhuma. É difícil explicar para o leigo os problemas científicos em linguagem, afinal, para o cidadão comum não há nada relevante a ser estudado ali e as consequências desse estudo não possuem uma aplicação direta na sua vida (tá e daí se o português brasileiro tem objeto nulo?), não é como se estudando o solo pudéssemos melhorar a produtividade de uma plantação ou saber que tipo de planta cresce melhor naquele ambiente, ou fôssemos curar alguma doença estudando uma bactéria ou vacina nova.
Por que, mesmo com as diferenças regionais de pronúncia, nos entendemos?
Eu tentei explicar pra ele (talvez o exemplo não fosse o mais adequado, mas foi o único que me surgiu naquelemomento) que hoje sabemos melhor como funciona a comunicação e conseguimos explicar porque, apesar das diferenças regionais de pronúncia e sotaque, falamos que um gaúcho, um mineiro, um cearense, ainda falam o português. Eu perguntei a ele como ele explica que embora existam diferentes pronúncias regionais para uma mesma palavra, as pessoas ainda se entendem. Um cearense vai falar ‘mininu’, um paranaense ‘meninu’ e um gaúcho ‘menino’, essa última pronúncia é mais próxima da nossa escrita, só que isso não é relevante, estamos preocupados com a fala. Para o J. (meu professor de violão), isso é óbvio, a língua é uma convenção, e as pessoas se entendem porque convivem na mesma sociedade. Eu repliquei, mas suponha que um gaúcho dos pampas se encontre pela primeira vez com um sertanejo do ceará, e o gaúcho fale ‘menino’. Será que o sertanejo vai encontrar problemas para entender o que o gaúcho quis dizer? Ele não se convenceu, pois não entendeu o problema. Tentei ser mais específico. Vejamos o seguinte. Agora compare os seguintes pares: ‘pira/pêra’, ‘murro/morro’. O que aconteceu? Se eu troco um som pelo outro as palavras mudam de significado nesse caso, mas não mudam no outro. Será que não temos um problema científico interessante aí? Como é que o cara que nunca falou ‘mininu’, e vive em uma comunidade que só fala assim, ouve alguém falar ‘menino’ sabe que essa palavra significa o que significa e significa a mesma coisa que se ‘mininu’ significa? É, ele não viu graça e interesse nenhum em estudar isso.
O que aprendemos sobre o português nos últimos 100 anos?

Gramática de João de Barros (1560), segunda gramática sobre o português, e há quem diga que é cópia de uma gramática latina

Claro que para o leigo dizer que: descobrimos os nomes nus; que o português está passando por um processo de rearranjo do sistema pronominal (tônico e átono) e de concordância verbal; que usar o pretérito perfeito não acarreta que a ação que descrevo tenha chegado ao seu final natural no passado; que só se pode concordar em gênero e número, não em grau, porque o grau não é um processo flexional, logo não desencadeia concordância; são coisas que não farão o menor sentido. Provavelmente se ele souber algum dia que se estuda matéria escura, ou física quântica vai achar uma perda de tempo. Descobrimos que não há nada mais feio ou mais bonito ou mais certo ou mais errado entre ‘dois reais’ e ‘dois real’, entre ‘nós vamos almoçar’ ou ‘a gente vamos armoçá’ ou ‘nóis vai armoçá’. Pelo menos ninguém conseguiu provar que quem usa as opções ditas ‘corretas’ é mais inteligente e capacitado para tarefas cognitivas do que o sujeito que utiliza as opções coloquiais. O fato de que uma é considerada a correta é uma opção política, uma escolha, e escolhas envolvem juízos de valor. Não é um fato natural que as opções ditas ‘corretas’ sejam as mais adaptadas para a comunicação. Pelo contrário, o que a pesquisa nos mostra é que se uma comunidade usa uma forma linguística qualquer (gostemos disso ou não), essa forma se presta aos usos comunicativos de que aquela comunidade necessita. Acho que aprendemos também que as línguas não pioram, não deterioram, não se corrompem, e por mais que Saramago pareça uma autoridade em termos de língua, não se preocupem, jamais voltaremos a grunhir, como ele prevê no seu depoimento para o documentário ‘Língua: vidas em português’. Também tentei argumentar que, por mais que agora muita pesquisa não tenha aplicação prática, no futuro poderemos ver os resultados, e aquilo que parece sem valor agora, poderá ter amanhã, ou contribuir, mesmo que seja um pouquinho, para a compreensão da nossa realidade linguística ou para como o português funciona e com isso, entender como as línguas humanas funcionam de uma maneira geral. Uma das mais importantes descobertas do século XX (embora no funda seja uma hipótese) é a Gramática Universal. Acreditando que ela existe, quais as consequências? Nascemos aptos pra falar qualquer língua, e em decorrência disso há regras muito abstratas que todas as línguas obedecem, apesar das diferenças superficiais arbitrárias.

Se J. conhecesse os gregos mesmo diria que Aristóteles já acreditava nisso, que gramáticos de Port-Royal também defendiam isso e que o Chomsky só copiou a ideia. Só que a diferença é que hoje podemos mostrar isso, mostrar que línguas tão diferentes como o inglês, o português e o japonês obedecem aos mesmos princípios gramaticais. Mas pra ele isso não fará diferença, já que é só uma hipótese de trabalho, uma teoria, e por enquanto não temos certeza absoluta disso, e se a ciência não nos dá verdades (dá verdades, mas provisórias), pra que se dar ao trabalho? E se descobrirmos que o c-comando é uma princípio universal, que diferença isso vai fazer? Não vai mexer com o preço do petróleo, certamente, mas estudos desse tipo nos ajudaram a perceber que mesmo a língua de uma pequena tribo na amazónia é tão complexa quanto o alemão ou o japonês, que a língua que o sertanejo ou o colono da roça falam tem tanta regra quanto a língua que os nobres jornalistas da Veja e da Folha de São Paulo falam. Se a pesquisa linguística nos ajudou a ter menos preconceito em relação a povos ‘menos civilizados’ que nós ou em relação a comunidades brasileiras com menos oportunidades de educação que nós habitantes das cidades temos, isso já não é um ganho suficiente? Ou ainda, de que adianta ensinar linguística nas faculdades de letras se nunca teremos um Bloomfield, um Sapir, um Jakobson, um Chomsky. Tivemos um Mattoso Camara Jr., para o qual muitos alunos ainda torcem o nariz, infelizmente não sabemos apreciar os nossos gênios. Todo mundo na academia tem um currículo Lattes, mas quantos sabem quem foi César Lattes? Afinal, o senso comum nos diz, através da voz de J. que o estudo não importa, precisamos ter talento. Não existe novidade na ciência, só cópia. Vai ver o Mattoso descreveu o sistema vocálico do português brasileiro copiando a gramática do latim.