Cinema multilíngue

De um modo ou de outro, o tema da linguagem acabou perpassando alguns filmes que concorreram ao último Oscar. Deve ser uma das consequências da globalização. E a arte do nosso tempo replica em alguma medida pop a Babel em que vivemos.

Causou um burburinho que Napoleão seja um filme falado em inglês e não em francês. Talvez os franceses esperassem também que o Oliver Stone tivesse escalado um Roman Duris para ser Napoleão, e não um Joaquim Phoenix, e uma Adèle Haenel para viver Josephine. Vai saber. Não acho que os italianos tenham ficado chateados que a série Roma tenha sido falada em inglês, assim como os suecos, noruegueses e dinamarqueses não devem ter ficado chateados que Vikings (série produzida por canadenses, a propósito) também seja falada em inglês e não nórdico antigo. Claro, estou brincando, mas o fato de o francês do Napoleão estar mais próximo da gente do que o latim de Júlio César e Marco Antônio é um bom argumento pra pedir que um filme sobre um dos maiores personagens da história da França e da Europa fale no cinema a sua língua materna.

No filme Anatomia de uma queda, Sandra é alemã, o marido francês e eles conversam em inglês, entre si e com o filho, Daniel. É uma casa multilíngue. Creio que não deva ser incomum na Europa esses relacionamentos internacionais, nem crianças vivendo em lares, escolas e bairros multilíngues. Na verdade, embora a Europa como um todo seja um território bem variado linguisticamente, essa pluralidade não é novidade. Júlio César quando foi invadir a Gália se deparou com os povos celtas falando línguas que os romanos não conheciam. Lembrando que os próprios romanos viviam em situação de diglossia. As diferenças entre o latim vulgar (falado pelos escravos, soldados, camponeses etc.) era diferente do latim clássico, que era a forma escrita e cultivada pelas classes altas e letradas de Roma, já naquela época pouco antes de Cristo. No filme, em certo momento, há uma discussão entre o casal sobre o tema. O marido não gosta que Sandra fale em inglês com o filho, já que eles moram na França.

Já em Vidas Passadas temos uma coreana, Nora, que se muda com a família para o Canadá aos 12 anos. Ela ainda fala coreano com a mãe, mas, além de ter passado a adolescência no Canadá, como ela se torna uma dramaturga de relativo sucesso em Nova Iorque, “sua língua” agora é o inglês. Aos vinte e poucos anos, ela retoma o contato com um amigo de infância que ficou na Coréia do Sul e eles conversam em coreano. Pouco depois, ela sente que eles estão ficando apegados, mas a distância é muito grande. Então, ela decide parar de falar com ele. Eles só voltariam a se falar outros 10 depois. Nesse meio tempo Nora se casa, e eles se encontram quando ele briga com a noiva e vai a Nova Iorque visitar ela. Uma das falas mais significativas do filme é quando o marido dela diz algo bastante poético: “Você sonha em um idioma que eu não entendo. Parece que há um lugar inteiro dentro de você que eu não consigo acessar”.

Por fim, em Ficção Americana a questão é menos explícita. Monk é um negro de classe média alta. Seu pai era médico, seus irmãos são médicos, mas ele é escritor e professor universitário. Sua “mágoa” com o mercado literário é que ele não é lido como um escritor em sentido lato. Sempre o enquadram como um escritor negro, mesmo que os temas de raça não sejam o seu objeto literário. Suponho, então, que ele não escreva no Black English, mas no inglês standard. Mas quando ele resolve escrever um livro para mostrar que o mercado literário está interessado nos negros não pelo mérito literário, mas por certo tipo de história que perpassa a vida deles nos Estados Unidos (violência, abandono parental e desestruturação familiar, abuso de drogas e álcool etc.), ele escreve um romance autobiográfico criando como autor-personagem um condenado fugitivo da prisão. Mas como o livro é comprado por uma grande editora e passa a fazer sucesso, ele precisa mudar sua forma de falar (e até seus trejeitos físicos) para lidar com as consequências do sucesso editorial. O livro ter como título um palavrão me parece significativo dessa necessidade de marcar linguisticamente que o autor é alguém de classe baixa e pouco instruído.

Dado seu valor cultural, como veículo de expressão de valores, costumes, hábitos, entre outras coisas, as línguas fazem parte da nossa identidade. Daí a reclamação dos franceses, creio. E ao mesmo tempo vivemos num mundo em que é possível alguém se candidatar a empregos em qualquer lugar do mundo, a entrar em contato com pessoas de países diferentes pelas redes sociais e a aprender os idiomas mais falados do globo usando um aplicativo para celular como Duolingo ou Babbel. Daí ser inevitável relações amorosas internacionais, e crianças crescendo em lares bilíngues.

Férias

Nota inicial

Praticamente abandonei esse espaço no ano passado. Espero conseguir voltar a publicar aqui, nem que seja só pra jogar na rede algumas coisas que tenho escrito. Tenho publicado mensalmente crônicas e resenhas no Jornal Caiçara de União da Vitória (PR). Isso tem me motivado a retomar esse espaço, embora eu tenha perdido um pouco a motivação pra fazer divulgação científica de linguística. Mas como escrever e falar de linguística são meus vícios intelectuais, sigo na peleia, mais por teimosia mesmo.

Calhou de eu só me lembrar do livro Infância do Graciliano Ramos só depois de ter escrito a crônica. É um livro de crônicas/memórias de infância. Então, fica a dica.

Férias

Emprestando as palavras de Manoel de Barros, confesso: eu tenho cacoete pra vadio. Como é bom acordar sem pressa pra acordar; dormir sem ter hora pra dormir; almoçar na hora que a fome aparecer… ler por puro deleite, e não pela obrigação de ler. Dedicar-se ao ócio e à contemplação, sem que nada tenha lá muita da tal da pressa. Férias é um negócio abençoado, convenhamos!

A sociedade tem um pouco de inveja de nós professores, pois sempre teremos folga nas festas de final de ano, e, principalmente, férias em janeiro. Já que o salário e as condições de trabalho são precárias, que pelo menos preservem esse direito como cláusula pétrea da Declaração Universal dos Direitos do Trabalhador. Para um capitalista deve ser um absurdo pagar para que o trabalhador tenha folga. “Porque lá no país XYZ não existe férias”. Ainda bem que vivemos num país do séc. XXI. Pelo menos nisso somos vanguarda.

Nem todo mundo é como os promotores públicos e juízes, que têm 60 dias de férias. A maioria dos professores têm 45 dias. Em algumas cidades, os professores têm 30. Em tese, todo trabalhador tem direito a esse descanso anual. O justo pelo justo. Claro que dirão que falo como membro da classe, mas se eu fosse presidente, todos os professores teriam 60 dias de férias, como os juízes.

Li nalgum lugar que o ideal é que se tenha férias parceladas em períodos de 10 a 15 dias. É o tempo adequado para que se descanse adequadamente a mente e o corpo. Pessoalmente, acho razoável. Férias muito longas tiram a gente do ritmo, como se a gente desaprendesse a trabalhar. Férias duas vezes ao ano. Quando eu for presidente, outra medida vai ser baixar um decreto para que todo trabalhador brasileiro tenha esse direito.

Contam por aí que há gestores públicos preocupados com o bem-estar dos trabalhadores, que nas férias escolares não têm com quem deixar seus filhos. Daí esse tipo de gestor invocar que não tem motivo para professor ter tantas férias. Na verdade, nem deveria ter férias. Onde já se viu, escola fechar? Mas todos sabem que, tirando a educação física e o recreio, o que mais as crianças amam na escola são as férias.

Do que seriam as memórias da infância sem as férias? Nada de lição de casa. Nada de tabuada e fórmulas matemáticas para decorar. Nada de trabalhos de arte com material reciclável. Nada dos afluentes do rio Amazonas ou do ciclo da água. Nada de tabela periódica.

De que seriam as avós, tios e padrinhos se as crianças não tivessem férias? As férias deles seriam um tédio, absoluto. Aposto! As avós teriam que ficar amuadas com seu crochê, suas novenas e o bate-papo de final da tarde com a vizinha. Os avôs fuçariam na horta, pescariam e fariam sua fézinha sossegadamente. Os tios e tias poderiam ir para o sítio fazer churrasco, beber cerveja e balançar na rede sem ter que se preocupar com o que as crianças estão fazendo, se estão mexendo com aranhas ou se encontraram um ninho de cobras. Nada como ter um parente com casa no interior.

Só nas férias é possível ir tomar banho em cachoeira. Passar a manhã inteira, ou talvez o dia inteiro, vendo desenho. Comer todos os dias bolo, biscoito, picolé, sorvete, bala, pirulito e outras guloseimas. Só nas férias é possível brincar sem se preocupar com a hora de dormir porque amanhã cedo tem escola. Só nas férias é possível brincar na pracinha e jogar bola até se cansar.

A vida da criança de cidade grande, que mora em condomínio, cujo passeio mais interessante é dar uma volta no shopping, não se compara ao glamour da criança que passa as férias rolando na grama duma casa de avó e vai dormir se coçando toda picada de mosquito. O que é mais legal: um sorvete com gosto de nada do McDonald’s ou correr atrás do moço do carrinho de picolé que está assoviando seu apito a uma (ou duas?) quadras dali?

Claro. A criança que passa as férias num condomínio vai se divertir de outras formas. Netflix, videogame, irmãos chatos, leitura… a criança que passa as férias lendo, aos quinze anos já terá lido a obra completa de Conan Doyle, a saga do Harry Potter umas três vezes… assistido a saga dos Vingadores umas cincos vezes… ou seja, será um jovem adulto chato e arrogante, porque só ele saberá todas essas coisas. Aos dezoito já terá lido todo o Dostoiévski e será fã do Zack Snyder. Um insuportável.

Brinco, pois minhas filhas são crianças de condomínio de cidade grande. Elas não têm o privilégio que eu tive de ter uma avó que morava numa casa de madeira com quintal de terra perto de um córrego onde a gente ia tomar banho escondido. Elas não têm o privilégio que eu tive de poder ir pra cachoeira do rio Espingarda em Porto Vitória e lá estarem umas dez pessoas, e não duzentas, como agora. São outros tempos. Fico imaginando que tipo de redações sobre as férias sairão nas escolas nesse começo de ano letivo. Aliás, aposto que nem se fazem mais redações sobre o tema. Está fora de moda. Conta comigo, na minha modesta opinião um dos melhores filmes sobre as férias, já nos anos oitenta falava de outros tempos com saudade. Aí me pergunto sobre o que escreverão os jovens e crianças de hoje quando forem lembrar da sua infância?

Jornal Caiçara, 24/2/2024 (https://jcaicara.com.br/2024/02/24/ferias/)

Frentear

Não sei se os jovens de hoje conhecem o conceito de ‘frentear’, uma atividade que mostra muito da realidade socioeconômica dos anos 90 e início dos anos 2000, pelo menos na cidade em que eu morava na época. A “minha galera”, quer dizer, a galera que meio que me adotou, era uma mistura confusa de metaleiros de diferentes bairros da cidade, aglutinados por alguns líderes com essa capacidade de fazer aquele povo se reunir pra beber e falar de bandas, gibis e leituras – especialmente Paulo Coelho, uma febre naqueles anos 1990 (tinha uma longa lista de espera para ler seus livros na biblioteca do colégio).

O frentear era basicamente ir para a frente da balada ou da lanchonete da moda. Como muitos de nós não tínhamos dinheiro (ou idade) para se sentar no bar, ou entrar no clube, o jeito era fazer uma vaquinha pra comprar alguma coisa pra tomar e ficar ali pela frente bebendo e conversando. As festas aconteciam em clubes, o Concórdia e o Aliança. Os sócios não pagavam entrada, e pagar para entrar não era lá muito barato.

Suspeito que não conheçam. Faz muito tempo que não saio à noite, mas o fenômeno me parece ter desaparecido, embora nas grandes cidades eu imagino que os jovens tenham pontos de encontro para paquerar ao ar livre nos finais de semana.

Lendo e vendo

O declínio do império americano (1986): revi o filme Denys Arcand final de semana. Ele tem mais de 30 anos e me soa hoje como ‘a vida sexual dos intelectuais canadenses de meia idade feios’. O filme é bem humorado, mas acaba num tom ácido. Tem o professor pegador divertido, tem o professor que se apaixona pela aluna muito mais nova, a solteirona com um homem mais novo, o gay (provavelmente com AIDS, não entendi se está ou não).

Saturno translada (7 Letras, 2022). Lucas Lazaretti, além de escritor, é tradutor e doutor em Filosofia pela PUC-PR. Fiquei intrigado pelo ‘saturno’ do título e demorei pra entender que tem a ver com a chegada dos 30 anos e a maturidade. O livro trata de um grupo de amigos que por essa idade enfrentam dilemas pessoais e profissionais. O músico que volta de uma temporada no exterior e está sem perspectiva; o artista que se exila da Alemanha com medo das hordas conservadoras; a recém-doutora que não consegue trabalho nem bolsa de pós-doutorado e que vê no exterior uma oportunidade de continuar na sua área de pesquisa; o psicólogo suicida. Todos são personagens interessantes, cujos dilemas e questões estão inseridos nesse Brasil em que vivemos, narrados por uma voz com muito estilo e erudição.

Finja que isso é uma cidade

Eu comecei a ver Pretend it’s a city e achei que lá vinha mais uma daquelas personagens novaiorquinas tagarelas óbvias que só sabem reclamar. Achei que ela seria um Woody Allen dos anos 1970 de vestido. Mas não era nada disso. Afinal, ela não usa vestido. Fran Lebowitz é engraçada, inteligente, culta, um pouco ranzinza, claro, mas não deixa de ser uma mulher cativante.

Todos os episódios são ótimos. Mas vou falar do último.

Nele, sobre bibliotecas (ou livros, mais precisamente), ela discorre sobre seu amor pelos livros e pela leitura. Tem uma reflexão que ela faz que me pegou. O livro é uma porta, não um espelho. Tá, ela nem é tão original assim, só que me deixou pensando.

Certamente que algo em nós quer se identificar com personagens e situações, mas também a leitura é uma entrada para outras vidas e mundos que estariam indisponíveis de outra forma. Provavelmente jamais irei para Cartagena, da qual conheci pedaços via Garcia Marques. Embora tenha nascido de origem humilde, sou homem e branco. Só a literatura para me dar uma amostra do que é ser mulher, negro, gay, morar numa favela, crescer numa fazenda, crescer nos anos 1970 durante a ditadura militar etc. Em resumo, é para isso que deveria servir a literatura, abrir nossos olhos para outras perspectivas de mundo.

E outros mundos, eventualmente. Mas mesmo a literatura de fantasia ou distopia, a boa, ela nos faz pensar sobre a nossa realidade.

E falando em realidade, ela nos permite conhecer um olhar sobre Nova Iorque. Nós, brasileiros médios periféricos que somos apaixonados por aquela cidade e seus personagens, passeamos por uma metrópole linda e confusa, com suas ruas batizadas por números cuja referência não conseguimos alcançar. Meu caso pelo menos. 12th Avenue? Não faço ideia de como seja. Broadway, Times Square, Wall Street, Brooklyn, Queens, Ellis Island… Esses nomes são mais fáceis de gravar.

Já se você não é lá muito fã da cidade, de repente é uma porta para conhecê-la. E a cidade é “lida” por uma de suas personagens. Morando lá desde seus 20 anos, Fran conhece seus moradores, seus barulhos, sua música, seus fetiches (dinheiro, fama, trabalho, comida, cultura, personagens etc.).

Nesse sentido, nada mais simbólico do que ela ser entrevistada por alguns “cronistas” da metrópole, principalmente por Martin Scorsese, e também em alguns momentos por Spike Lee. Em algumas entrevistas ela conversa com os atores Olivia Wilde e Alec Baldwin. Outro aspecto simbólico é que algumas cenas das conversas foram gravadas com Fran caminhando em torno de uma maquete da cidade. No início da série, a cidade vai sendo iluminada, e a Fran aparece, caminhando no rio da maquete. A última cena do último episódio é ela saindo de cena e as luzes se apagando. Não preciso explicar, né? O Scorsese sabe das coisas.

Pessoas morrem todos os dias

Pessoas morrem todos os dias. Um ricaço se espatifou com seu carro. Policial alvejou um assaltante foragido. Criança levou um tiro na cabeça em comunidade no Rio de Janeiro. Idosa morreu de Covid. As pessoas morrem todos os dias. Nas últimas 24h foram mais 1252 pessoas morreram de coronavírus.  Sem colocar na conta a média de pessoas que já morrem por outras causas. Umas 78 de câncer; 92 de acidentes no trânsito; 153 vítimas da violência… e assim vai. As pessoas morrem todos os dias.

O João, o Pedro, O Dudu, a dona Maria, o Marcos, irmão da Cristina, filho da Maria Cleusa, sabe? Não sei. São nomes sem referente. Vejo as fotos. Não sei quem são essas pessoas. Podem muito bem ter sido inventadas. Marcos, diz aí um número, e lá vai o prefeito de Campinas colocar na estatística de mortes por Covid mais 30 e tantas e assim vai, Brasil afora. Só por politicagem, pra prejudicar esse presidente competentíssimo.

Quero chorar. Quero chorar porque o Dudu poderia ter sido o primeiro cientista brasileiro a ganhar o Nobel de Medicina. Mesmo que não fosse, poderia ter sido o primeiro da sua família a ter uma faculdade. E mesmo que não fosse, poderia ter sido apenas um bom cidadão, o que nesse país já é grande coisa. Mas não choro. Semana que vem outro Dudu vai ser morto.

Fazemos piada sobre engordar, enquanto tem gente sem emprego e sem comida. Podemos escolher que bolo vamos fazer essa semana, enquanto tem gente que não tem um quilo de açúcar e aprende a tomar chá e café amargo na marra.

Alguém reclama que não aguenta mais ficar sem sexo. No Twitter uma jovem de 20 e poucos anos rateando que está há dois meses sem transar. Não sabe mais o que fazer. O que faremos se houver um colapso na internet, nos satélites de transmissão de tevê ou se as torres de celular derreterem como aquele creme gelado instantâneo que o McDonalds chama de sorvete? As pessoas querem ser entretidas, para se esquecer daquelas que padecem e morrem nos hospitais. Estimo que o consumo de séries e filmes meia-boca nas dezenas de plataformas de streaming esteja no seu ápice. Precisamos nos divertir enquanto as pessoas morrem.

Afinal, pessoas morrem todos os dias. O que são umas mil e poucas a mais?

Deus é brasileiro e anda do meu lado

Somos abençoados, não há dúvida disso.

Na dúvida, que por ventura faz você dar um passinho pra trás, vai lá e ajoelha na frente do presidente e faz uma reza qualquer que a tua religião diz que você tem que me fazer pra ver se o homem faz alguma coisa, porque, mesmo que você creia piamente que ele está fazendo o que tem que fazer, a gente dá uma rezada que é pra ajudar e garantir que o homem lá de cima está de fato olhando por nós.

Não vai dar nada, nunca dá. Os hospitais estão vazios, vejam! Não existe epidemia! É uma invenção da mídia. Todos os canais de televisão se reuniram em conlunio: vamos passar a mostrar imagens de enterros e confinamentos ao redor do planeta como se fossem verdadeiros, mas todos foram filmados em computação gráfica no Projac, os repórteres falam em estúdios com fundo verde, e as imagens de fundo são inseridas em cromaqui. É a fabricação da histeria. O crime perfeito!

As companhias aéreas são cúmplices, todas, absolutamente todas, malditas comunistas ávaras pela verba das viagens infindáveis dos presidentes petistas que adoravam fazer turismo na África, no Oriente Médio e nos países socialistas do Caribe (Cuba e Venezuela, principalmente). Perderam a mamata!

Tem um remédio aí que o presidente tá dizendo que é batata.Tomou curou. Mas também tem um monte de médico dizendo que não sabem direito se funciona ou não. Por via das dúvidas, acho melhor tomar, que é pra garantir, né? E pra ajudar ele mandou o exército produzir milhões e milhões dessas pílulas, que é pra garantir que todo mundo vai ter. É uma gripezinha, né, mas quem pegar vai estar garantido. Só a cloroquina salva!

Tem um povo fazendo carreata pra que não tenha quarentena. Eu não sei porque tão tudo lá de máscara se é só uma gripezinha, vai ver Deus não tá tão assim do lado deles. Porque eles acham que não precisa de quarentena, mas precisa de máscara e da tal da cloroquina abençoada que só Jesus pra inventar um negócio desses.

A gente é o país do futuro e o presidente tá consertando o país e a corrupção acabou. O povo só não vê porque a Globo não mostra. Os jornais são todos comunistas também. Não leio nem que eu tivesse dinheiro. Jornal é só pra embrulhar peixe e por no assoalho do carro depois de lavado. Tudo uns mentiroso safado.

Porque, olha, se esse povo tudo se juntando nas feiras por aí, nas portas de banco e  portas de repartição pra fazer CPF não tiver couro duro… acho melhor a gente rezar mesmo, fazer uma novena, um jejum, um despacho…

Cadê a nossa boa e velha crônica?

Lendo João do Rio, me pego pensando nessa coisa gostosa que é a crônica, esse texto que tá ali entre o conto e a poesia, entre a realidade e a ficção, entre a hipótese e a certeza. Tivemos Rubem Braga, Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues (esse lazarento que escrevia de tudo e fazia tudo muito bem), Luis Fernando Veríssimo (o últimos dos grandes cronistas?); sem contar um outro time que atacava de cronista também pra pagar as contas: Drummond, Clarice, Cecília Meireles…

Devo andar lendo as pessoas erradas…

Ou vai ver que o mundo em que a gente vive seja tão maluco ao ponto de a imaginação não ter mais graça, e a graça toda esteja em inventar distopias, fantasias medievais, super-heróis com poderes inusitados e por aí afora. Ou a gente ficou careta? Vai ver que a tragédia grega que Nelson Rodrigues enxergava na violência cotidiana não comove mais ninguém.

* * *

João do Rio (um desses iluminados que sabiam colher da vida a sua graça), numa crônica sobre as tabuletas dos estabelecimentos comerciais do Rio:

“…encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, já pintara ‘vendem-se móveis’ quando o negociante veio a ele:

– Você está maluco ou a mangar comigo!

– Por quê?

– Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se… Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!” (A alma encantadora das ruas, p. 101).

A sabedoria popular que os gramáticos tendem em não ouvir…

O inimigo

O inimigo está lá fora, de butuca, prestes a lhe atacar a qualquer momento. Quando saiu do condomínio de grades altas e cerca elétrica, onde se esconde do inimigo (ele acha que se tranca, mas na verdade está cercado por eles), entrou à direita na avenida, mas sua lentidão obrigou o bmw que vinha atrás a diminuir a velocidade e a afundar a mão na buzina. Ele afundou a mão na buzina também. Começou o duelo.

O bmw o perseguiu por alguns metros, mas teve que virar. Perdem-se de vista. Melhor assim. Temia que ele parasse ao seu lado e lhe apontasse uma arma ou o dedo do meio. Não poderia deixar isso assim. Não é homem de levar desaforo pra casa nem de engolir sapo. Por que o desgraçado não podia ter diminuído a velocidade?

Sua viagem até o trabalho seguiu, juntamente com os outros carros. Todos inimigos. Todos lutando por um espaço na avenida de quatro pistas, que parecia pequena para tantos automóveis. Uns seguiam o seu caminho a 50 km/h outros a 60km/h outros passariam por cima desses, se pudessem. Taxis e ônibus, sempre com pressa, passariam por cima dos outros carros se pudessem; os outros são inimigos, são lentos, são barbeiros, atrapalham o trânsito.

E o fluxo seguia, agora um pouco lento. Algum barbeiro devia ter batido na traseira de outro barbeiro que andava devagar, só pode ser. Um motociclista cortou a frente de um gol bola para fazer uma conversão proibida. Buzinaram-se. É uma mudança relativamente recente no tráfego da região, há quatro meses duas placas enormes avisam que é proibido virar à direita ali. Talvez o motociclista não tenha visto. Um corsa também fez a conversão proibida. Outro que não viu a placa.

A parada no sinal é como a largada de uma corrida. Os taxistas e motociclistas a queimaram. Sempre. Partiram quando notaram que amarelou no outro sinal. Os detrás, cautelosos, mas também com pressa, esperaram com a primeira engatada, o carro já levemente deslocando-se, esperando que a coleira seja solta. Quando finalmente o verde se acende, buzinas soam em coro ao fundo. Secretamente todos desejam que aqueles que estão na frente sumam logo, estão lhes atrasando.

Enfim ele chegou ao trabalho. Carros, carros e carros. Já ao passar o portão, onde o guarda olhava para todos com desconfiança, uma outra pequena corrida se inicia. Alguém sempre está atrasado e precisa se apressar para achar uma vaga, iniciar a sua tarefa, ou chegar mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. Onde estacionar? Ele percorreu o estacionamento da empresa, que parece encolher a cada semana. Dez minutos depois uma vaga apareceu, milagrosa, mas… é estreita. Tanto o da direita como o da esquerda estacionaram não se preocupando em colocar o carro no centro da vaga. Com algumas manobras o carro entra, mas ele mal tem espaço para sair. Espreme-se e sai. Livre, enfim.