Esse é um conto de 2012 (acho), que resgatei semana passada. Reli e gostei do potencial dele e do que eu queria com ele, testar uma linguagem mais adolescente e bem coloquial, já que o tema é um drama adolescente. Trabalhei nele na última semana. Claro que ele ainda precisa de retoques. Mas a proposta aqui é publicar work in progress mesmo, pra ver se alguém me dá um tipo de retorno . Às vezes alguém dá (Valeu, Cláudio!). Aí vai.
Era uma manhã de setembro em que a gente estava de bobeira pelo colégio, logo depois do intervalo, ali no pátio trocando ideia e tal, eu, o Alex, a Verônica e a Francine. Como o professor faltou, ficamos por ali, já que ir pra casa era a última coisa que eu queria naquela época.
O Alex e a Verônica saíram pra outro canto e nos deixaram sozinhos. Eu meio que entendi a intenção deles ao fazer isso, pensei lá comigo que se dane, que ela não era tão esquisita e que depois do meu primeiro beijo eu não tinha ficado com mais ninguém, já tinha mais de seis meses aquilo, e que, bom, a Fran era o tipo de menina pro meu bico, afinal de contas.
Ficamos ali um tempinho conversando, eu me acostumando com a ideia e tudo, até que percebi que ela foi se aproximando e dali a pouco pegou na minha mão. Olhei pra ela e nos beijamos. Foi esquisito pra burro. Ali no meio do colégio e tudo. Por mais que só a gente estivesse sentado no pátio naquela hora, ninguém estava vendo, o Alex a e Verônica estavam noutro canto e não viam a gente de lá. Ela era magrela e desengonçada como eu, só que baixinha, tampinha mesmo, quase um gravetinho que dava de pegar no colo de tão leve. Não que eu fosse lá muito diferente disso. Eu era mais alto e ela batia com a cabeça no meu peito. Mas a gente sentado isso não fazia muita diferença. E olhando assim bem de perto, ela tinha os seus encantos, se o cara olhasse bem, como aquelas mulheres que você vai se afeiçoando aos poucos, de repente uma beleza inédita aparece e a atração nasce. Naquele momento eu não pensei muito e beijei ela porque eu queria fazer isso, mesmo nunca tendo pensado seriamente naquilo. Ela não me dava tesão, pra te falar bem a verdade.
Engraçado isso. Naquele ano não me apaixonei por ninguém, eu andava numa totalmente diferente, sei lá. Meio que me conformei com minha situação de bocó. Não tinha a mínima condição de me achar capaz de despertar sentimentos em alguma menina. Daí que parei de pensar nisso. Eu era um cabaço e ia ficar assim por um bom tempo, pelo jeito. O beijo foi estranho, sem saliva, sabe? Meu primeiro beijo tinha sido molhadinho, com muita língua, gostoso pra burro e tudo, e o que tinha acontecido ali era outra coisa. Eu não entendia aquilo. Como podia não ser bom? Por que o beijo da Fran era diferente? Eu não sentia desejo naqueles lábios, como eu tinha sentido com a primeira menina que eu beijei – e como eu viria a sentir em outras mulheres depois – aquela coisa de o beijo ser tão bom que você não quer parar nunca mais de beijar, tá ligado? É massa quando isso acontece. Mesmo assim, dei mais algumas chances praquela boca, pra ver se a gente se entendia na sequência. Dali a pouco o Alex e a Verônica voltaram. E o beijo não melhorava, como se ela não quisesse pisar no acelerador.
– Hummmm! – Verônica murmurou isso daquele jeitinho engraçadinho e fofo dela, com aquele risinho pequeno e tudo, que quase não sai de dentro da boca, vendo que estávamos de mãos dadas.
– Vamos lá pra casa. Querem vir junto? Comprei o CD novo do Legião – O Alex propôs.
O Alex morava no quarto andar de um prédio ali no centro da cidade, uns quinze minutos do colégio, numa rua tranquila. Não tinha perigo de cruzar com ninguém conhecido que fosse perguntar o que eu estava fazendo fora da escola. Não fomos de mãos dadas pela rua. Não me sentia com vontade de fazer aquilo, já que a gente não era nem namorado nem nada. E não tinha chance disso acontecer. Alex e Verônica também não estavam de mãos dadas. Estávamos contentes. Era uma manhã que tinha começada coberta de serração e que depois das dez horas tinha se aberto com um grande sol amarelo que espantou as últimas nuvens de névoa.
Sentamos na sala. Eu e a Fran num sofá de dois lugares, o Alex e a Verônica no outro de três.
– Vamos tomar alguma coisa? Cuba?
– Pode ser – eu disse.
– Tem cigarro aí, Luís?
– Tenho! – gritei. Ele já tinha ido pra cozinha. – Quer um?
– Não! Imagina, perguntei só pra saber mesmo. Estou fazendo uma pesquisa pro IBGE.
Nós rimos. Ele voltava com o copo. Entreguei o cigarro pra ele.
Dei uma bicadinha só, não podia chegar em casa com bafo de cachaça em pleno meio dia de uma quarta-feira. Ia ser uma merda enorme se meu pai sequer cogitasse que eu tinha bebido.
– O CD! Deixa eu pôr o CD do Legião pra gente ouvir. É meio depressivo e tal, porque ele já andava bem doente. Mas é muito massa.
Ele me passa o encarte do disco pra eu ver com a Fran e senta ao lado da Verônica que cochicha alguma coisa no ouvido dele.
– Moçada, fiquem à vontade aí. Cara, se quiser fazer mais um preparado você sabe onde tem vodka e Coca. Você é de casa.
A primeira música acaba. Ele deu um gole longo no copo e o passou pra mim. Alex pegou Verônica pela mão, foram pro quarto e trancaram a porta. Ofereci pra Fran, que balançou a cabeça negando. Dei outra bicada e o depositei na mesa de centro. Perguntei se ela não bebia. Ela respondeu que não. A religião dela não permitia. Não era brincadeira, né? Não, foi a resposta. Era a primeira vez que eu conhecia alguém da minha idade que levava a sério o que a sua religião dizia. Talvez fosse só uma desculpa dela também.
Ficamos ali de mão dada e tudo ouvindo a música. Eu estudando aquela mão pequena, tão menor que a minha, que dava pra abracar. Era maciazinha, os dedos finos e curtos. Ela não tinha as unhas pintadas, nem compridas, como daquelas meninas metidas a adultas. Fiquei nessa, porque eu não sabia o que conversar com ela. A gente conversava todo dia sobre essas coisas do colégio, os livros que a gente lia, sobre Legião, sobre os filmes e programas na tevê… e agora a gente estava ali um segurando a mão do outro e sem nada pra dizer. Vai ver a gente só conseguia conversar quando tivesse gente por perto pra puxar assunto.
– Bonita essa música – comentei.
– Qual é o nome mesmo?
Eu olhei no encarte.
– “Via Láctea”.
– Bonita mesmo.
Concordei. A gente se beijou pelo tempo de outra música. Não melhorava. Era como se nossas bocas não fossem do mesmo tipo, como se fossemos peças erradas de um quebra-cabeça, que forçosamente uma criança tenta unir por teimosia, por não saber pensar em outra solução.
– Gostei dessa também. Mais rock, mais rápida, mais agitada, dançante.
– Sei lá, gostei mais das românticas – ela disse.
– “Dezesseis”.
– O quê que tem?
– “Dezesseis”, é o nome da música. Irônico, não?
– Por quê?
– Eu tenho dezesseis anos e você?
– Eu já tenho dezessete…
– Ah tá… eu não sabia, pensei que você tinha dezesseis também.
– Eu reprovei na sexta-série.
– Onde você estudou no primeiro grau?
– No Pedro Stelmachuk.
– Hummm.
– É perto de casa.
– Por que veio fazer o segundo grau no Túlio de França?
– Todo mundo diz que o ensino é melhor.
Eu ri.
– Por que tá rindo? – Ela parecia mesmo intrigada.
– Tá na cara que não é, né?
– Como assim?
– A gente mal teve aula esse ano, só matação. Hoje, por exemplo, o professor de matemática não veio. Quantas vezes ele já faltou esse ano?
– Verdade.
Ela parecia estar se dando conta daquilo só agora.
– Olha que linda essa música – ela mudou de assunto.
– Bonita também. – Olhei no encarte. – “Mil pedaços”.
– Vou comprar no um e noventa e nove a fita.
Fiquei quieto ouvindo a música.
– Não é tão triste como ele disse, tem umas músicas bem boas. Olha essa batidinha que massa.
Agora tocava “1 de julho”.
– É boa mesmo. Que música linda.
Não penso em me vingar/eu não sou assim/a tua insegurança era por mim
– Cara, é MUITO boa essa música. – eu tinha gostado demais dela.
Ela concordou. Aquele era um baita dum disco.
Tocava “O livro dos dias” quando eles saíram do quarto. O Alex com os cabelos bagunçados, as maçãs do rosto vermelhas. A Verônica foi direto para o banheiro. Senti alguma coisa esquisita no ar. Ele estava desconfortável. O sujeito mais cheio de si que eu conhecia estava sem jeito. Isso era novo. Ela saiu do banheiro. Também com as bochechas rosadas e meio sem jeito, sorrindo de nervosa.
– Moçada, preciso ir nessa – falei, já era quase meio-dia.
– Beleza. Daqui a pouco meu pai e minha mãe chegam.
O Alex nos levou até lá embaixo. Deu um beijinho no rosto da Verônica e um abraço.
– Falou, maluco. A gente se fala – me estendeu a mão e nos abraçamos. Ele agora estava apenas sério.
Na esquina dei um beijinho no rosto da Fran a Verônica fez a mesma coisa, ela ia pra outro lado. Eu e a Verônica íamos pra mesma direção até um pedaço. Fomos caminhando em silêncio. Eu pensava no ano passado. No quanto aquela menina tinha povoado meus pensamentos, meus sonhos, meus desejos, minhas punhetas, no quanto a gente tinha se aproximado e no quanto aquilo tudo tinha se esvaziado no último ano. A figura dela já não aparecia mais na minha mente antes de eu dormir. Não pensava mais nela quando ouvia November Rain. Nem era mais alguém com quem eu queria falar por horas e horas. Era esquisito aquilo tudo, porque agora ela recém tinha transado com o Alex e eu não me sentia incomodado com aquilo, não sentia ciúmes, nem nada. Eu deveria sentir alguma coisa, na verdade?
Não sei o que eu deveria sentir. Raiva? Ciúme? Inveja? Não sei. Não conseguia sentir nada. Porque esse desconhecimento das sensações, me fez seguir ali do lado pela, quieto. Quieto porque sentia que tinha acontecido alguma coisa. Mas não tinha coragem de perguntar e intuía que ela não ia me dizer mesmo. Eu olhava de lado de vez em quando, me rindo por dentro porque o cabelo dela estava esquisito, repassando o gosto do beijo da Fran na minha boca, e era uma coisa que eu ainda não sabia também como lidar, pois eu ia chegar no outro dia no colégio e olhar pra ela, sabendo que a gente tinha se beijado e isso ficaria pra sempre entre a gente. E no fundo, acho que ela sabia também que não tinha sido bom. Mas a Verônica estava ali do meu lado caminhando apressada e com os olhos prestes a explodir em lágrima e eu não tinha nada pra dizer pra ela.
Eu ia pensando nessas coisas todas quando chegamos na esquina em que cada um ia pro seu lado. A gente se beijou no rosto. “Tchau!”, “Tchau! Até amanhã”. E cada um foi pra sua rua. Dei mais uma olhada pra bundinha dela que rebolava rua abaixo.
Porra! Por que é que eu não tinha falado pra ela o que eu sentia um ano atrás? Eu podia ter perdido o meu cabaço com ela.