Disciplina

Como a maioria das crianças nesse país eu queria ser jogador de futebol. Mas não que eu tivesse algum talento pro troço. Nunca tive. Era sempre um dos últimos a ser escolhido pra um dos times na aula de educação física. Então, por que eu sonhava que podia um dia entrar num Maracanã lotado e ouvir as pessoas gritando o meu nome? Até hoje eu não sei o que se passava na cabeça do guri de 10 anos que eu era quando tive essa ideia.

Daí que a melhor iniciativa que eu tive foi aos 11 anos entrar numa recém inaugurada ‘sala com livros’ (chamar de biblioteca aquela sala com meia dúzia de prateleiras de livros seria um exagero) da Escola Básica Alberico Azevedo pra pegar um livro emprestado. Também lembro de na 6a. série ter feito algumas pesquisas sobre peixes e anfíbios, o que me levou a uma peregrinação pelas melhores bibliotecas da cidade, duas, a do Colégio São Miguel e a biblioteca municipal de São Miguel do Oeste (elas tinham enciclopédias, a ‘biblioteca’ da minha escola não). Não sei que influência isso teve em mim. Só sei que eu sou uma pessoa que gosta de bibliotecas e que é curiosa. (Vai ver naquele dia de aula vaga, ao invés de ficar vendo os colegas jogar bola, porque ninguém tinha me escolhido pro time, eu tenha resolvido ir na biblioteca da escola ver o que tinha lá pra fazer).

Vai ver foi por isso também que virei linguista. Aliei duas qualidades que eu tenho: a curiosidade e o gosto pela leitura (talvez dê pra colocar ainda nesse balaio o meu ceticismo). Não sei se são qualidades “naturais”, minha personalidade, ou se foram características que eu adquiri ao longo da vida. Nenhum dos meus irmãos é assim, embora tenhamos tido relativamente a mesma criação e estudado nas mesmas escolas. (Será que eu me tornaria um acadêmico em qualquer área que eu tivesse escolhido pra estudar?).

Apesar disso eu acho que tenho um defeito que me atazana: tenho dificuldade pra terminar as coisas, pra perseverar. É como se algumas coisas me dessem um cansaço e de repente o negócio me enche o saco. Quem vê meu currículo acadêmico dirá que eu estou mentindo. Como assim, se você fez dois TCCs, uma monografia de especialização, um mestrado, um doutorado, escreveu artigos, capítulos de livros, relatórios e projetos de pesquisa? É que em algum momento eu desisti daqueles textos. Tenho certeza de que eles seriam bem melhores se eu tivesse me dedicado um tantinho mais a eles. E é esse “tantinho” que separa a excelência do normal (sendo bem, mas bem gentil comigo mesmo). Vai ver ninguém me incentivou a buscar a excelência.

Aí eu me pergunto. Por que eu não consegui desenvolver uma disciplina mais rígida de estudos, supondo que esse seja o remédio que teria possibilitado eu me dedicar com mais afinco aos meus textos? A excelência está nos detalhes. A organização do pensamento que a escrita proporciona pode produzir coisas maravilhosas. Se minha memória não falha, as melhores ideias que tive surgiram após longos momentos de trato com o texto. Claro que algumas surgiram num insight antes de dormir, outras numa caminhada ao final da tarde, mas a maioria (e olha que não dá uma mão, eu acho, se é que eu tive alguma boa ideia nessa minha curta carreira de linguista e escritor) foram em momentos em que eu estava tentando colocar no papel o que estava na minha cabeça (e nas anotações em cadernos e bloquinhos que carrego comigo desde os 17 anos). Ou seja, as melhores ideias me surgiram enquanto eu estava escrevendo. Logo, trabalhar no texto não apenas faz o texto surgir, mas também possibilita que a gente descubra e entenda coisas que não entenderia se apenas ficasse sentado na frente do computador em estado de contemplação esperando os insights surgirem como se ditados por um espírito superior.

Hoje eu acho que estou mais disciplinado do que eu era há dez anos. Se eu tivesse aos 20 a disciplina que tenho hoje para escrever tenho certeza que teria escrito coisas mais interessantes e terminado algum livro de ficção antes dos 30 (eu não sabia como terminar as histórias, muitas delas, por isso as abandonava; vai ver eu achava que tinha “talento”, que não precisava estudar como se faz literatura). Na escrita acadêmica é mais fácil chegar em algum lugar, mesmo que esse lugar seja provisório.

E de novo o questionamento: por que eu sou assim? Por que o prazer do estudo, da leitura, a curiosidade, características que me fizeram ser relativamente bem sucedido no que faço, não contribuíram para que eu fosse mais disciplinado para escrever? Veja, o meu ponto não é a escrita primeira, o jorro, a necessidade de se expressar… Isso nunca me faltou (graças às musas!). Nem pra fazer linguística, nem pra escrever ficção. Nunca me faltou assunto (o que é um problema também, porque me disperso).

Vai ver alguém me disse que eu tinha “talento”, e por algum traço de malandragem do meu caráter (como o Manoel de Barros, também tenho cacoete pra vadio), eu achei que o talento fosse o suficiente. Bastava ele, e eu chegaria em algum lugar. Voltando à metáfora do futebol, provavelmente o Romário é um “natural”, assim como Clarice Lispector era (olha a idade que ela tinha quando escreveu Perto do coração selvagem!, que na minha modesta opinião é um livro muito bom). Eles não precisavam “treinar”, pra eles bastava entrar em campo. Clarice com certeza era alguém que podia dizer de boca cheia “toca pra mim, que eu resolvo”, e até os 45min. do segundo tempo ela resolveria o jogo. Claro, com isso não quero dizer que ela não trabalhasse seus textos com a necessária dedicação que o fazer literário exige. (Olhando, quantitativamente, a produção dela, a gente pode concluir com certeza que ela treinava pra burro). Pondo isso de outra forma: um nó cego pode reescrever um conto seu umas vinte vezes que jamais vai estar no nível de uma Clarice Lispector. Ou, um Leandro Damião nunca será um Romário, mesmo que treine 8 horas por dia, 7 dias por semana.

Talvez um Faraco, um Ilari, sejam capazes de escrever de primeira versão com a clareza e a fluidez que só eles têm (o que eu duvido muito). Mas a maioria de nós, eu inclusive, precisamos domar as nossas ideias, dominá-las como uma bola lançada pelo zagueiro, que a gente sabe que provavelmente será difícil matar no peito do pé, com a elegância que o Neymar e o Messi tem… que provavelmente mataremos na canela, que ela vai espanar e que teremos que sair correndo de-atrás antes que ela se perca.

Porque, no final das contas, a escrita acadêmica, profissional ou literária é uma luta solitária. Talvez “luta” não seja a melhor expressão (desculpa aí, Drummond). Talvez a escrita seja um jogo de um cara só, em que o adversário não é a televisão, o rádio, a internet, os filhos (ou qualquer outra distração), é a tua vontade de levantar dali, o teu próprio julgamento: está bom porque eu acho que está bom, ou está bom porque eu cansei de trabalhar nisso? Poderia ficar melhor? (Alguns escritores falam que desistem do texto quando percebem que nada do que fizerem poderá melhorar o texto). Hemingway dizia que todo escritor precisa ter uma espécie de detector de bobagem. Acho que eu não fui capaz de desenvolver um. Quem sabe um dia eu consiga. Afinal, também é preciso achar um meio termo, algum tipo de parâmetro entre o texto que te deixa feliz (legal, consegui escrever) e o que te decepciona (puta merda, como eu escrevi esse bostaço!?). Vai ver eu me satisfaça com pouco, e esse seja o problema também.

Alguns escritores e gurus da escrita criativa sugerem que a gente deixe o texto descansar uns dias. Outros falam da importância de um leitor particular, alguém que posse dar pitacos pra além de comentários vagos como gostei, ou tá muito bom. Já achei um leitor pros meus textos acadêmicos, me falta um, ou dois, pra minha literatura.

Armado de um detector de bobagem, mais a disciplina necessária para escrever, quem sabe um dia eu consiga escrever alguma coisa que preste. Felizmente, diferentemente do futebol, pra escrever não precisa de preparo físico. O Luís A. Fischer usa o conto do Kafka, Um artista da Fome, como uma metáfora pra isso que eu quero dizer: escrever como aquele cara jejuava.

“Talvez o texto ideal, no sentido dessa pequena filosofia, seja como o jejum do personagem do conto “Um artista da fome”, de Franz Kafka: escrever como aquele cara precisava jejuar, com aquela gana, se possível sem jamais parar (mas ao mesmo tempo sabendo que há um limite para o jejum, a morte). Jejuar, escrever, não para agradar, mas para atingir o ponto máximo de sua verdade pessoal, mesmo que ao custo da vida, isso é um ideal que vale a pena” (Fischer, ler e escrever. In: Filosofia mínima. Arquipélago, 2011).

Só que pra atingir aquele nível de excelência no jejum é preciso mais que o impulso, mais que vontade. Vai ver seja preciso um algo mais (a gana?) que poucos de nós temos. E todo dia eu me pergunto isso: se eu me dedicasse um tantinho mais, seria um linguista melhor? Poderia ser um escritor melhor? Não sei. Só sei que o que me move é a crença de que posso melhorar (mesmo que eu não venha a ser um Romário ou um Suarez).

* * *

Por mais que eu tenha categorizado esse post como ‘crônica’ no fundo tá com cara de ensaio montagueano. Não me preocupei muito com estrutura, fui mais pro depoimento pessoal mesmo, usando um registro coloquial.

Literatura e vaidade

O Orígenes Lessa mandando a real na voz de uma personagem simplona.

Maria Rosa, mulher de Campos Lara, o poeta protagonista de O feijão e o sonho, não entende porque o marido não possui pretensões monetárias com a sua poesia. E o acusa de escrever e publicar só por vaidade:

“- Sim, você e sua rodinha não passam de uns convencidos, de uns pretensiosos. Nem todos levam a vaidade para a roupa, mas nem por isso são menos vaidosos do que qualquer mulherzinha. Eu já compreendi bem os  tais artistas que você traz aqui. Todos são uns portentos. Cada qual é mais ilustre. Não passam cinco minutos sem que se elogiem da maneira mais ridícula. ‘Que gênio! Que grande poeta você é!’ ‘Não, gênio é você, poeta é você.’ E o pior é que todos acreditam. Dia em que ninguém te elogia você até emagrece.” (Cap. 26)

Lara fica desnorteado com as palavras da mulher. Talvez porque lá no fundo ele saiba que ela está falando a verdade. Ele só pensa em escrever. Por isso sua vida financeira é um desastre, pois ele é absurdamente irresponsável com suas obrigações profissionais como professor, ou mesmo nas outras profissões que tenta exercer. Não acho que ele tenha a ilusão de viver só da escrita. É outra coisa. É como se as obrigações cotidianas fossem irrelevantes e pequenas diante da obrigação da literatura. Flaubert tinha um pouco disso, de achar a vida cotidiana um saco, e só se sentir feliz e completo escrevendo. Kafka também. Kafka não era vaidoso, acho, visto que publicou tão pouco em vida (mas, sei lá, né… vai que é o oposto?).

Lara é um sonhador, mas um sonhador ingênuo, de um Brasil ainda rural, analfabeto e provinciano, com uma população que consumia filosofia e literatura nos jornais e nos almanaques. Livro era luxo. Sua família passava necessidade, mas ele tinha livros em casa. No fundo ele é um retrato do país em que vive, e de sua classe. Não sabemos nada de suas origens familiares, mas ele é incapaz de perceber que ser um professor de merda é o que faz com que a sua realidade seja o que é: miserável e tosca. Claro, ele não a produz, mas nada faz para que ela mude.

O romance atinge o clímax quando começa a circular na cidade o boato que Lara ofendeu o vigário da paróquia. O padre já tinha fama de pedófilo e tudo que Lara fez foi perguntar durante a conversa no bar por que ninguém fazia nada. Indignado com a calúnia, ele confronta os frequentadores do bar, particularmente um advogado, Matraca, famoso por ser linguarudo. O padre chega naquele momento e tudo se acerta. Lara não baixa a cabeça e intima Matraca a assumir o que disse, mas ele se cala.

Lara e a família voltam pra São Paulo. Além disso, ele também deixa a poesia de lado e investe na prosa. Aos poucos vai ganhando notoriedade e até algum dinheiro. Sua vida melhora um pouco, pois consegue trabalho em um jornal e seus filhos ganham bolsa em uma escola privada. Nesse ponto da narrativa parece que tudo se encaminha para um final tranquilo, como se a vida fosse aquilo ali mesmo.

Aí chegamos num ponto de virada. Vem a Segunda Guerra Mundial e também uma espécie de virada estética. Os jovens veem Lara como o representante do status quo e passam a atacar a sua literatura. Mesmo amigos que antes o elogiavam, agora o desacreditam. Então ele se dá conta que passou a vida inteira lutando por prestígio, por reconhecimento, pra construir uma obra que se desmanchava diante dos seus olhos. E o preço disso tudo foi ter deixado sua família passar necessidades. Seus filhos eram agora adolescentes e ele mal os conhecia.

Na superfície é um romance sobre o dilema do sujeito que quer se dedicar à arte num país como o nosso, e num Brasil pré-industrial ainda, sem uma classe média urbana consumidora de literatura.  Mas é também um romance sobre vaidade, sobre o preço do sucesso, e como esse sucesso é fugaz e ilusório.

Escreva, Luisandro, escreva

Matei o outro blogue que eu havia criado, o “um conto por semana”. Fi-lo com o objetivo de disciplinar a minha escrita, pelo menos no sentido de escrever com regularidade, e se for diariamente, melhor.

Acabei de ler o “A preparação do romance, vol. II” de R. Barthes. Li, ainda o estou deglutindo, e provavelmente voltarei a ele em algum momento, porque não fiz anotações. Simplesmente fui “devorando” o livro. A ideia toda desse volume e do anterior é a proposta da escrita de um romance, e a partir disso Barthes se propõe a comentar o que os escritores dizem sobre essa tarefa. Muita gente quer escrever, mas poucos conseguem levar a cabo o trabalho. O que há de especial naqueles que conseguem. Eu diria que além de talento, é a disciplina. Como o jogador de futebol que se acha bom de bola e não treina. Talvez ele seja um best-seller (daqueles de encher estádio), mas não vai entrar pra história como gênio, certamente. Para o escritor, a disciplina envolve a dedicação, o pensamento focado, e por vezes a abnegação, deixar de lado as coisas mundanas (o trato com as coisas do cotidiano) a favor da literatura. Ele cita Kafka, Flaubert, Balzac, entre outros, que quando não estavam escrevendo, só sabiam pensar nisso, como uma espécie de obsessão. O que pra mim só revela esse mágica que há por detrás da escrita literária, o sujeito se apaixonar por um personagem e querer investigá-lo. Pelo menos é o que eu tenho em mente enquanto escrevo. Alguns querem imitar Joyce ou Guimarães Rosa. Eu prefiro imitar Machado, embora o texto, a palavra seja importante pra mim também, embora só depois que comecei a oficina do Assis Brasil eu tenha começado a ser mais cuidadoso com o texto.

Enfim, o fato é que consegui escrever uma novela de 137 páginas, e uma coletânea de contos de 90 em seis meses, e acho que vou juntar mais 100 páginas de contos até o final do ano, ao mesmo tempo em que estou planejando uma novela que pretendo escrever no mês de janeiro do próximo ano. Além disso, no primeiro semestre, traduzi umas 200 páginas. Cento e poucas delas do Science of Language, uma entrevista que o James McGilvray fez com Noam Chomsky sobre vários temas ligados a linguagem e neurociência, que vai sair pela editora da UNESP – a tradução é em conjunto com meus colegas de UFRGS, Gabriel Othero e Sérgio Menuzzi. Ou seja, acho que escrevi um bocado esse ano (até agora, pelo menos).

Escrita, escritor e leitor

Tenho lido a coletânea de pequenas crônicas do Luís Augusto Fischer reunidas em Filosofia Mínima: ler, escrever, ensinar e aprender e me deparei com um trecho (da parte sobre escrever) que gostaria de compartilhar com vocês (embora eu não saiba exatamente quem é meu leitor comum, já que comumente quem passa por aqui e dá um oi são os amigos).

“Talvez o texto ideal, no sentido dessa pequena filosofia, seja como o jejum do personagem do conto “Um artista da fome”, de Franz Kafka: escrever como aquele cara precisava jejuar, com aquela gana, se possível sem jamais parar (mas ao mesmo tempo sabendo que há um limite para o jejum, a morte). Jejuar, escrever, não para agradar, mas para atingir o ponto máximo de sua verdade pessoal, mesmo que ao custo da vida, isso é um ideal que vale a pena.” (p. 138)

Por que eu gostei desse trecho? Provavelmente porque nos últimos seis meses tenho escrito praticamente todo dia (mesmo que umas poucas páginas) e mesmo quando não sento sistematicamente para escrever as histórias habitam em mim e me perturbam. Talvez é isso que tenha me movido a escrever, essa perturbação interior, essa necessidade de comunicação que um simples bate-papo com alguém não satisfaz. E dedicar tempo e energia a isso sistematicamente tem sido muito mais do que aquele mero exercício de sentar e colocar sentimentos e impressões no papel, coisas que eu fazia há 15 anos atrás. Li esses dias um caderno velho de anotações e me deparei comigo mesmo perdido, tendo anotado que estava sem rumo, não sabia que direção dar aos meus textos. Eu recomendava a mim mesmo ler mais teoria literária. (Ri sozinho agora porque lembrei que foi exatamente um livro sobre ensino escolar da escrita que me deu a chave toda, o Da redação à produção textual do Paulo Guedes). Afinal, pelo que entendo, a teoria literária está preocupada com o ‘produto’, digamos assim, de dar uma leitura para o objeto pronto, quando o que o escritor jovem precisa na verdade é entender o ‘processo’, as dinâmicas da construção.

E aproveito o ensejo para corrigir a minha leitura do Autran Dourado, o que fiz no post anterior. Claro que ele fala de enredo. O problema todo do romance é o personagem. Sem personagem não existe ficção; e o enredo é fruto disso, do que o personagem quer, dos seus dilemas, das suas angústias, das suas relações, etc.