Eu queria ficar em casa porque quero ficar em casa, não porque sou obrigado a ficar em casa. Eu queria aprender a fazer pão com fermentação natural não porque agora eu tenho mais tempo pra isso, mas eu quero fazer pão com fermentação natural para entender o tempo que o pão leva para crescer, sem os atalhos que a ligeireza do cotidiano nos obriga a tomar usando fermento tratado quimicamente para crescer mais rápido, porque cozinhar é entender o alimento e suas transformações, não juntar ingredientes numa tigela e torcer para que saia alguma coisa comestível dali de dentro.
Eu queria fazer um diário, porque eu sempre quis fazer um diário, não porque, sem muita ideia do que escrever, muita gente resolveu fazer um diário. Mas eu já disse que abandonei o diário (porque eu sempre abandono os diários que começo) e agora estudo o que eu estudaria de qualquer jeito e escrevo as coisas que escreveria de qualquer jeito, porque é isso que a gente que lida com a palavra faz: lê e escreve.
A sociedade me paga também pra isso e é isso que sigo fazendo, nessa faina infinita de produzir artigos e dar pareceres sobre os artigos dos outros. Eu queria fazer um diário porque eu gosto dos diários, porque é uma forma da gente se conectar com outras realidades, outros universos e perceber que está todo mundo junto nessa e que por mais que seja mais gostoso passar o confinamento numa cobertura em Ipanema, o escritor sofre as mesmas angústias que eu sofro num apartamento sem sacada em Curitiba.
Ainda sinto falta dos bifes à milanesa do Levrero, e das suas intermináveis tentativas de configurar programas inúteis em Visual Basic. Eu poderia falar das inúmeras horas perdidas tentando passar uma missão difícil de Command & Conquer, mas eu não jogo mais vídeo-game. Tentei, nas primeiras semanas do confinamento jogar Forge of Empires online. Nunca fui bom com vídeo-games. E ninguém quer saber como eu passo meus dias tentando não atrapalhar o processo de alfabetização da minha filha mais velha e preocupado com a mais nova de dois anos que, tudo indica, está atrasada na aquisição da língua falada. Tipo, muito atrasada.
Queria economizar porque eu aprendi a economizar e a administrar melhor as contas da casa, não porque agora estou gastando menos com várias coisas, não porque não gasto mais com coisas que antes gastava. Gasto menos com gasolina, porque não saímos. Gasto menos com restaurantes, porque comemos bem menos fora.
Arriscamos uma pizza e uma comida japonesa nesses dias (o dia dos namorados agora é também o dia nacional da comida japonesa), mas logo a gente fica se perguntando: Lavaram as mãos? Ninguém espirrou ou tossiu em cima da comida? Esses peixes são frescos e foram bem higienizados? O que eu faço com a caixa de papelão, se o papelão tocou na comida? E essa barca de plástico, estava limpa? Mas o Hot Filadélfia está tocando no plástico… melhor não pensar demais… e o pepino! meus deus, será que lavaram direito o pepino? Tomara que o vinagre da saladinha de pepino agridoce mate o que tiver que matar.
Queria economizar com farmácia vendo as minhas filhas pegarem menos viroses e alergias, não porque são obrigadas a ficar em casa longe de outras crianças, de quem pegariam viroses, ou longe de lugares em que seriam expostas a poluentes e outros materiais que poderiam desencadear nelas alergias respiratórias. Queria que a saúde delas se reforçasse pelo caminho natural, não por estarem menos expostas a vírus e bactérias e a todas essas outras coisas que fazem as crianças terem que tomar vacinas e xaropes.
Queria ficar sem ver meus amigos porque naquele final de semana não deu para ver meus amigos porque a preguiça falou mais alto ou porque apareceu outro compromisso, não porque agora ninguém pode mais ver os amigos, porque mesmo se a gente estiver confinado, ao nos vermos deixamos o confinamento e vamos expor uns aos outros e aqueles com quem temos contato em casa.
Eu queria tanta coisa. Mas no final do dia a gente guarda esses anseios todos sob o travesseiro e tenta dormir com eles te atrapalhando o sono.