Qual erro de português te irrita mais?

Pra mim nenhum. Mas eu sou suspeito. Sou linguista e fui treinado a ver o erro de português mais como sintoma, do que apenas um desvio do que se considera correto. Aliás, a própria noção de erro é constantemente posta em discussão na academia. Já que o que interessa ao linguista é a linguagem nas suas diversas manifestações, não ficar corrigindo os outros.

Não que a atitude dos falantes em relação a linguagem não interesse. Na verdade interessa pra caramba, tanto que eu estou aqui pensando sobre isso, pois o fato de as pessoas terem reações diversas diante de letras ou sons é um negócio que eu acho admiravelmente curioso.

[No caso da escrita, são só letras, tá ligado? Pra quê todo esse auê?]

A escola deveria ter um pouco esse olhar, pois há erros e erros. Mas, é mais prejudicial do que benéfico simplificar tudo, jogando num mesmo saco coisas que são diferentes, , embora o discurso do certo/errado seja sempre justificado pela sua utilidade pedagógica.

Ortografia

A escrita correta das palavras é um cuidado perene (ou deveria ser). É uma atitude saudável que a gente deveria levar pra vida, como o cultivo de uma boa escrita à mão. A gente trata a escrita do médico como um objeto cultural, mas atender um paciente é o afazer cotidiano desse profissional, e se ele tem que escrever rápido e desleixado porque tem coisa melhor pra ir fazer, então eu acho que entendi tudo errado. Escrever seguindo a ortografia ou escrever manuscrito com uma boa caligrafia são faces de uma mesma moeda: cuidado com o leitor.

[Muita gente por aí destaca o poder da escrita à mão para a memória, por exemplo. Eu sinto que é uma forma de eu manipular mais concretamente os conceitos que preciso assimilar. Semana passada eu estava com dificuldade para entender um texto. Resolvi esquematizar as ideias dele e pronto: ele se abriu como uma castanha difícil de quebrar.]

Quando a escrita é pessoal, tudo bem, escreva como quiser. Mas a escrita pública precisa ser caprichada e cuidada. Eu demorei um pouco a entender esse valor. Um médico que escreve uma receita de qualquer jeito não quer ajudar o paciente, só quer se livrar dele.

Por que um erro irrita?

Não tenho nenhuma resposta pronta pra isso, mas minha hipótese é que é mais uma faceta do preconceito linguístico. Rimos dos erros dos pobres, mas não dos ricos. Os pobres erram tentando acertar, mas os ricos erram (mais) por desleixo ou preguiça. Imagino quantos erros de digitação não aparecem em sentenças e processos judiciais ou note quantos erros não vemos todos os dias nos textos publicados em jornais digitais e blogues, textos publicados no afã de dar a notícia logo, pois vivemos a era da sede de informação (parece que nunca estamos saciados e sempre tem algo acontecendo).

Quando vejo erros de digitação nos meus textos já publicados fico com uma pontinha de embaraço, especialmente na tese e na dissertação, que são textos em que eu deveria ter passado um pente fino ou pago alguém pra revisar. Não tem o que justifique. Especialmente pra alguém da área com acesso a dicionários e recursos tecnológicos.

Por que (ainda) estão falando sobre o acordo ortográfico?

Me fiz essa pergunta ao ler um texto do Rodrigo Gonçalves na Gazeta do Povo sobre o tema. Ele esclarece os equívocos comuns. Para quem entende um pouquinho sobre como uma língua funciona ele não apresenta novidades, mas é sempre válido quando alguém da academia escreve um texto para ajudar o público leigo a entender melhor as coisas. Por que a escola não faz isso eu não entendo. A ortografia de uma língua não é a língua; um idioma não se reduz às convenções para representá-lo por escrito. A premissa me parece simples.
Na página onde estava o texto do Rodrigo, aparecia o link para outro texto sobre o assunto. Diogo Fontana, escritor e editor, segundo a minibiografia ao pé do texto, exibe os clichês de quem acha que sabe do que está falando, mas que provavelmente não deu um Google antes para conferir a veracidade de suas afirmações.
Pra começo de conversa ele fala de oito acordos ortográficos. Oito! Mário Perini e Lúcia Fulgêncio (Gramática descritiva do português brasileiro, Vozes, 2016), por um lado, ou Rodolfo Ilari e Renato Basso (O português da gente, Contexto, 2009), por outro, só mencionam três: vamos dizer que a reforma proposta por Gonçalves Viana em 1911 conte como um primeiro acordo no séc. XX; daí vem o de 1945; e agora o de 1990. Talvez tenham ocorrido outros que a literatura não mencione…  vai que… Mas esse aí de 2009, que o Lula assinou em 2004, já estava homologado em 1990. Só faltava os países aceitarem (ou “acordarem” mesmo, até onde sei).
Um segundo ponto que me soa completamente equivocado é o seguinte, que ele desenvolve a partir dos “oito” acordos.
“Essa flutuação do idioma rompe o elo entre as gerações. Pais aprendem a escrever de um modo diferente dos seus filhos. Nunca, em lugar nenhum, ergueu-se uma grande cultura em alicerces assim movediços. A língua portuguesa muda tanto no Brasil, e tão rapidamente, que não tarda o dia em que o acesso aos clássicos estará obstruído para sempre, e os livros de um Cruz e Sousa, ou de um Machado de Assis, serão leitura para especialistas em Linguística e Filologia.”
“Flutuação do idioma”? Não sei como escrever veem ou vêem é capaz de fazer um idioma flutuar, mas tudo bem (acho que ele deveria ler o texto do Rodrigo, para não misturar a língua com a sua ortografia). Camões escrevia hum, naõ, ingrês, e se a gente for ler ele hoje, vai suar um pouco, mas lê de boa. Só que não precisa. As novas edições atualizam a ortografia. Nesse ponto o problema não é a atualização, é o fato de que iremos conviver ainda por um tempo com livros nas duas grafias. Assim como acontece quando pegamos livros dos anos 50, 40 ou 30… Pra um profissional da escrita ele me parece ter pouca convicção na reedição de livros.
Ele fala de anos de discussão nas universidades… não sei de onde tirou isso também. Muitos linguistas escreveram sobre o acordo. Até saiu uma edição especial de uma revista acadêmica, a Linguasagem (UFSCar) sobre o tema: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/especial_ao/. Só que segundo Perini e Fulgêncio, não teve participação alguma da academia no acordo. Aliás, o tom de estudiosos como Mario Perini, Lúcia Fulgêncio, Carlos Alberto Faraco e Luiz Carlos Cagliari, em geral, é de crítica à reforma. Uma por que a simplificação alegada não ocorreu. Perini afirma que trocamos um sistema ruim por outro ruim, e dá seus motivos no seu texto. E outra porque a afirmação que a unificação da ortografia poderia beneficiar a indústria editorial brasileira e a promoção da língua portuguesa no exterior também não se seguem.
Por fim, tem a afirmação de que a ortografia é do Lula, “empurrada goela abaixo, na canetada de um presidente analfabeto”, uma declaração que só pode ser sacanagem, daquelas que um Augusto Nunes assinaria com gosto. Como tá na moda falar mal do Lula, qualquer bobagem que se atribua a ele a Gazeta do Povo publica sem receio.

O tal ‘erro de português’

São famosas as reportagens da Veja sobre os deslizes que os usuários do português brasileiro cometem (se presidentes da república, FHC que o diga, e candidatos a altos cargos tropeçam na própria língua, quem dirá o povo, coitado). Há também uma infinidade de reportagens e textos em blogues e sites dando dicas para evitar as ‘armadilhas’ da língua. Durante o programa Agora é Tarde, apresentado por Danilo Gentili, Neto afirmou que ‘fala errado’, inclusive citou que já falou ‘mais maior’ ao vivo e Danilo também expressou sua insegurança com o idioma, embora não tenha citado nenhuma ‘gafe’. Fotos de placas com grafia errada viraram virais (felizmente não recebo mais essas coisas), e se o leitor estiver curioso, o site Kibeloco frequentemente publica uma seleção dessas fotos (clique aqui).  Não é pra rir dessas coisas (tá, tem umas bem engraçadas), deveríamos ter duas reações: pena, porque a pessoa não teve as oportunidades que muitos de nós tivemos e se ela vende caipira na praia ou corta cabelo e pinto não é porque ela prefere isso a estar no seu lugar sentadão ali na cadeira de praia; segunda, vergonha, pois um sujeito escrever as palavras de forma incorreta revela que sua intimidade com a palavra escrita é pequena, e que ele não se deu ao trabalho de ir ao dicionário, o que fica pior se a pessoa não perceber que escreveu errado (numa sociedade como a nossa pouco íntima com os livros isso é comum).
Há duas modalidades de erros bastante perseguidas, e em geral os metidos a gramáticos pela internet afora os confundem e são mais realistas que o rei, isto é, se metem a legislar o idioma, ou simplesmente copiam as dicas de outros gramatiqueiros. Carlos Alberto Faraco, em seu livro “Norma Culta Brasileira” chamou esse fenômeno de ‘norma curta’. Que modalidades são essas? A escrita e a fala. A visão estreita dos fatos da língua dirá que fala e escrita se opõem, quando na verdade essas duas modalidades de uso da língua estão num contínuo gradativo. Há usos da escrita que estão próximos da fala (bilhetes, cartas pessoais, bate-papos online) assim como há usos da fala que estão próximos do escrito, ou se baseiam no escrito (peças de teatro, novelas de televisão, conferências, palestras…). Essa é uma primeira distinção que precisamos fazer quando falamos de ‘erro de português’. Feito isso, vou tentar definir melhor cada um dos dois.

O erro de português na escrita. Podemos aqui fazer duas divisões bem gerais. Há erros de convenção (ortografia e pontuação) e erros que são reflexos da fala (escrever ‘poriso’ ou ‘agente’, por exemplo). Os erros de convenção são os mais comuns e que se resolvem facilmente com uma busca ao dicionário, já aprender pontuação é algo bem mais complexo, porque pontuar corretamente envolve compreender rudimentarmente noções da estrutura da oração (sujeito, predicado, aposto, vocativo, adjunto…), afinal de contas, se o vocativo, precisa vir separado por vírgula, de nada adianta você saber isso se não sabe o que é um vocativo, nem consegue reconhecer um quando o encontra, né, amigo? A escrita é uma convenção e como tal é natural que existam palavras que por um motivo ou outro não se escrevem como se falam, uma característica que não é só do português, e sim de todas as línguas. Há casos que poderiam ser resolvidos, como os quatro ‘porquês’, que é coisa de gramático, invenção, não precisa ser assim; da mesma forma o acento grave ‘`’, que marca crase (um fenômeno fonológico, não um acento), se ele fosse abolido, ninguém sentiria falta (talvez os gramatiqueiros, que perderiam mais um tema bizarro pra vender livros). Desnecessário dizer que todo mundo que usa a escrita como ferramenta de trabalho (advogados, publicitários, funcionários públicos, etc.) precisa saber escrever com correção. Fazer um cursinho de redação resolve? Na boa, não jogue dinheiro fora. Compre um bom dicionário (Houaiss e Aurélio ainda são os melhores) e uma boa gramática (Bechara ou Cunha & Cintra) na dúvida consulte-os ou pesquise na internet, pelo menos em dois lugares e jamais confie em blogues cujos autores não são professores reconhecidos, vá em sites maiores como o UOL Educação ou a Revista Nova Escola.
O erro de português na fala. Aqui as coisas se complicam. Primeiro porque tem muita coisa em jogo, preconceitos principalmente. Antes de entrarmos nas teorias vamos aos fatos (‘fato’ aqui é no sentido científico, uma tsunami é um fato, se isso é a ira de zeus castingando pecadores, ou resultado de tremores de terra sub-oceânicos (com ou sem hífen?), já estamos no reino das teorias). Fato 1: não se fala como se escreve (em língua nenhuma); fato 2: as línguas variam (isto é, não são faladas uniformemente por todos os falantes). A grande sensação geral de desconforto com a própria fala que o brasileiro sofre (vide Neto e Gentili) se deve a uma tradição que remonta ao século XIX, do professor de português tentar “corrigir” a fala do aluno, e de basear essa correção no padrão escrito (durante o século XX grande parte da evasão escolar foi fruto dessa pedagogia equivocada, a escola nunca aceitou o diferente, sempre o repeliu). Essa correção acontecia, e se duvidar ainda acontece, porque as línguas mudam e variam. A variação, a existência de duas formas na gramática da língua que cumprem a mesma função (estou sendo grotesco aqui, claro), nem sempre indica mudança, porque para a mudança ocorrer outros fatores entram em jogo, como a adoção da nova forma pelos falantes da língua (como a substituição do ‘tu’ pelo ‘você’ em 90% do território brasileiro). Veja que ninguém corrige outra pessoa caso o fulano diga ‘o agente de saúde esteve aqui’ ou ‘a gente somos inútil’ (como na música do Ultraje). Repare que se pronuncia as duas expressões igualmente ‘a gente’ e ‘agente’, enquanto um acompanha artigo ‘O agente especial Fox Mulder’, não faria sentido dizer ou escrever ‘o/a gente vamos jogar bola.’, tanto não faz sentido que ninguém faz isso. Esse exemplo é interessante, pois ilustra um caso de variação no português. Tem duas opções aqui: ‘a gente somos’ ou ‘a gente é’. O ingênuo pergunta: qual é o correto? Alguém com bom senso, e que teve um bom professor de português, perguntaria: quando se usa um e quando se usa outro? ‘a gente’ está na boca do povo e veio pra ficar, os gramáticos gostando ou não. A variação pode indicar que esse termo ainda está em processo de acomodação no sistema, daí a possibilidade da dupla concordância, pois mesmo sendo singular, é ‘A gente’, não ‘as gentes’ como se lê em textos antigos, esse termo está substituindo o ‘nós’, pronome de primeira pessoa do plural, daí que a ocorrência de ‘a gente somos’ pode estar relacionada ao fato do termo denotar ‘mais de um’ e não reflete ignorância do usuário. Ao lado disso, concorre um enfraquecimento geral do sistema morfológico de desinências de pessoa e número na língua falada, repare nos gaúchos e cariocas falando, os brasileiros que ainda usam o ‘tu’, até na novela os personagens já falam ‘tu tá’. Errado? Não, esse é o português brasileiro atual, se conformem. Tudo bem falar ‘a gente fomos’, então? Infelizmente, não. Daí é que entra o preconceito e as regras de bom comportamento nos salões do reino. Espera-se que pessoas educadas e finas não falem coisas como ‘a gente somos’, afinal isso é língua de caipira, doméstica e pobre (sério, tinha gramático que falava essas coisas). Quando os linguistas afirmam que não existe ‘erro de português’ é no sentido científico, porque os linguistas veem a língua como um fenômeno natural (assim, como andamos sobre duas pernas, temos dois braços, aprendemos a falar naturalmente, sem instrução, se tudo correr bem no nosso crescimento biológico). Acontece que a língua é também um fenômeno cultural, é o que nos define como humanos, é o que possibilita a organização social, a troca de experiências e conhecimento. Assim, não é de se espantar que a sociedade valorize aquela variedade da língua que usam os doutos e letrados. A pedagogia do ensino de língua portuguesa no século XXI busca justamente fazer com que o aluno que chega na escola falando a ‘gente somos’ aprenda que existem outras formas de se dizer a mesma coisa, como ‘a gente é’ ou ‘nós somos’. A escolha entre uma forma e outra tem a ver com a modalidade, se escrita ou se falada (fica melhor num texto formal ‘nós somos’, enquanto fica melhor num bilhete, numa conversa de boteco ‘a gente é/somos’), com as intenções daquele que fala. Ou vai dizer que músicas como Comida dos Titãs (‘a gente não quer só comida…”) ou Inútil do Ultraje (“Inútil, a gente somos inútil”) teriam a graça que tem se tivessem sido escritas como “nós não queremos só comida” e “nós somos inúteis”? A celeuma em torno do livro que ‘ensina errado’ só aconteceu porque imprensa e ‘intelectuais’ possuem um olhar estreito sobre os fatos da língua.
Vou deixar o tema dos legisladores de plantão pra próxima semana. Mas se o tema interessar, leia “norma culta brasileira” de Carlos Alberto Faraco, vai ser no mínimo esclarecedor. Ou espere até sexta-que-vem.