Ainda o falante e a sua língua

No post de ontem o que eu gostaria mesmo de ter discutido com um pouco mais de vagar era a atitude do Felipe Neto sobre a oração. Esse estranhamento é que eu acho um fenômeno interessantíssimo. É o que o linguista chama de intuição ou de conhecimento “epillinguístico”, essa reflexão consciente que fazemos sobre a língua, mas pensando na estrutura e no sentido das formas da língua.

Talvez um pós-modernista possa olhar para aquele pequeno acontecimento da vida da linguagem e interpretá-lo como um sintoma do descompasso entre as palavras e a gramática, um atrito ou curto-circuito na composicionalidade fregueana (por uma falha no sistema, a soma do todo não resultou na soma do significado das partes e do modo como se combinam). Mas um semanticista de viés lógico, como eu, diria que talvez Felipe estivesse simplesmente equivocado sobre o que as palavras significam ali naquela instância, como uma criança fica chocada quando descobre pela primeira vez a metáfora e se dá conta, deslumbrada, que as palavras não precisam alcançar no mundo sempre aos mesmos referentes, nem mesmo um e apenas um referente. (como assim a gente usa duas negações pra fazer uma negação e não uma afirmação e todo mundo acha normal?)

Se a gente for cavoucar no Twitter vai sair esse tipo de comentário de enxadada. Não é de varde que a Luana de Conto (@apudLuanam) tá se esbaldando de coisas pra comentar.

Para dar mais um exemplo do fenômeno ilustrativo desse estranhamento com a linguagem, a jornalista Renata de Medeiros se questiona se existem as expressões em separado e de fora.

Por que ela se fez (e nos fez) essa pergunta? Podemos supor que o peso da norma padrão é muito forte sobre os jornalistas e escrever corretamente é um requisito básico para o exercício da profissão. Mas note que o raciocínio dela está equivocado numa premissa: por que teria algum problema com as expressões suspeitas simplesmente pela falta de um oposto? Não entendi que tipo de argumento é esse. Ignorando esse aspecto, podemos supor que a questão tenha legitimidade e que é mais um exemplar do estranhamento que mencionei.

O dicionário Houaiss registra as duas locuções sem mais considerações. Provavelmente o uso do adjetivo seja mais comum, Fulano treinou separado do grupo, pois é estrutura ‘normal’ da fala brasileira. Parece que preferimos o adjetivo usado adverbialmente ao advérbio (mas aqui sou eu intuindo, não sei se alguém já fez um estudo sistemático disso), como em Fulano treinou separadamente – mas Fulano treinou separadamente do grupo me soa estranha. [do grupo seria complemento de separado?]

de fora não tem nada de estranho e uma googlada na expressão traz exemplos até de João de Barros, o que demonstra que ela está na língua já tem uns bons séculos. Por que ela supôs que a expressão deveria ficar de fora do uso culto eu não sei. Embora a opção mais curta ficou fora não seja lá sinônima. Posso dizer Fulano ficou com a bunda de fora, mas não Fulano ficou com a bunda fora; por outro lado Fulano ficou de fora da lista de Tite significa a mesma coisa que Fulano ficou fora da lista de Tite.

Exclamativas: PB x PE

Eu estava lendo a tese do português F. Martinho (Sintaxe e semântica dos adjetivos graduáveis em português. Universidade de Aveiro, 2007), quando no capítulo 9, em que ele discute qual seria a melhor hipótese para a estrutura do SA (se com projeção funcional de grau ou se o SGrau seria especificador), um dos argumentos para defender a primeira abordagem é que alguns movimentos de modificadores só seriam possíveis se o adjetivo for alçado junto com o wh. Mas nas exclamativas, os exemplos são os seguintes.

(1a) *Tão a minha pele está sensível!

(1b) Tão sensível que a minha pele está!

(2a) *Que este homem é cabeludo!

(2b) Que cabeludo que este homem é!

O negócio é que a minha intuição reagiu instantaneamente ao ler essas orações. A reação dos meus alunos foi a mesma. Essas exclamativas são esquisitas (no mínimo).

Claro, em português brasileiro parece que gostamos de fazer exclamativas apenas com a entonação (sem uso de recursos sintáticos), como o deslocamento para a periferia esquerda, como em (3a), ou usando o recurso do que, que certamente envolve deslocamento:

(3a) A minha pele está tão sensível!

(3b) Que sensível que a minha pele está!

A outra exclamativa sem o tão precisa do deslocamento e do que, mas além disso ocorre uma inversão. O sujeito aparece posposto ao verbo de ligação:

(4a) Que cabeludo que é este homem!

Claro, é importante ter em mente que o fato de preferirmos expressar o mesmo conteúdo de (1b) com outras estruturas, não é indício de que ela seja agramatical. Contudo, a exclamativa com tão fronteado me parece certamente agramatical no PB.

Confesso que nunca li nada sobre as exclamativas no português. Sei da tese da Karina Zendron (Sentenças exclamativas em português brasileiro: um estudo experimental de interface. UFSC, 2016). Preciso ler qualquer hora dessas.

Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.