Mentiras, fake-news e lorotas

Num outro mundo possível, as declarações que as pessoas fazem viriam etiquetadas com algum tipo de rótulo: mentira, fake-news, lorota, lenda, história de pescador, fofoca ou algo nesse sentido. Mas não é assim que a comunicação funciona no nosso mundo. Pra muita coisa que lemos e ouvimos, temos que ter um radar de bobagem ligado. Ernest Hemingway disse certa vez que o escritor precisa vir de fábrica com um detector de bobagem. Nem todos os escritores nascem com isso, claro, senão não teria tanta literatura ruim atulhando livrarias, sebos e bibliotecas.

No caso do ouvinte ou leitor, a questão é um pouco diferente, mas a analogia vale como ilustração da nossa capacidade de se deparar com um conteúdo que nos comunicam e refletir sobre a plausibilidade dele. Ninguém é totalmente cético, e ninguém é totalmente dogmático. O ateu ou agnóstico são dogmáticos no seu ceticismo, e o crente (em sentido lato) é a todo momento convidado a crer, pois é da nossa natureza também a desconfiança. Todo mundo tem um pouco de São Tomé.

Claro, há um lado social ou antropológico na equação. Tendemos a acreditar mais nas pessoas que são mais próximas, como família, amigos, comunidade, líderes religiosos, líderes políticos de mesma inclinação ideológica; e a desconfiar de desconhecidos e líderes religiosos e políticos de agremiações que professam crenças diferentes das nossas.

Que pessoas usem os meios de comunicação para espalhar aos quatro ventos as suas opiniões eu acho natural e até interessante. Faz parte da democracia. Vivemos na era da comunicação: podcasts, videocasts, redes sociais. Qualquer tagarela pode hoje pegar seu celular e atingir milhões de pessoas em segundos. Mas é sempre bom a gente ter ligado o nosso radar de bobagem ligado. Afinal, assim como há muita informação, também há muita desinformação.

Vou tentar convencer vocês de que há pelo menos três tipos de “inverdades” que circulam na sociedade. A mentira, a fake-news e a lorota. Tentemos separá-las.

A mentira tem duas características essenciais: é aquele enunciado que é contra os fatos e que tem a peculiaridade de que quem o enuncia sabe que está indo contra os fatos, e, portanto, quer enganar o seu ouvinte. Um exemplo. Imagine um adolescente que mente para os pais que fez a lição de casa, quando na verdade passou a tarde inteira jogando videogame. Ele sabe que não fez a lição de casa e tem a intenção de enganar.

A fake-news é parecida. Ela é um enunciado criado para ir contra os fatos, criado para enganar. Mas há um porém: apenas quem o criou sabe disso. Quem passa a circular a fake-news acredita que ela é verdadeira e não tem, portanto, a intenção de enganar ninguém. Há toda uma indústria de criação dessas notícias e histórias. Para dar um exemplo (há tantos por aí que é até difícil escolher), no começo do ano passado circulou uma notícia de que vários membros do governo respondiam a processos na justiça. Um deles era o ministro dos direitos humanos, Sílvio de Almeida. Sílvio é jurista, portanto, é natural que seu nome apareça em muitos processos. Essa é uma das mecânicas desse tipo de inverdade: de um fato se cria uma fake-news. Essa é a definição estrita de fake-news: uma notícia inventada.

A lorota é um pouco mais complexa. O que chamo de lorota é inspirado no conceito de ‘bullshit’ do filósofo Henry G. Frankfurt (‘On bullshit’, Oxford, 2005). Outros termos vernáculos se aplicariam aqui, creio eu, como ‘bobagem’ ou ‘besteira’. Na essência, a lorota é uma ideia em que o falante acredita, mesmo que vá contra os fatos. A intenção de enganar não é crucial aqui, embora possa estar presente. Muitas vezes acontece o oposto, ele tem a intenção de esclarecer, ou supõe, ingenuamente, estar do lado de uma verdade que só ele é capaz de ver. A famosa doutrinação esquerdista das crianças é uma dessas lorotas. A conspiração dos homossexuais e sua ideologia de gênero para destruir as famílias é outra. O essencial aqui é que quem conta uma lorota não está nem um pouco preocupado com a verdade. Quem mente sabe que está enunciado algo falso, já quem conta lorota, não está preocupado com os fatos, está preocupado em criar uma situação que esteja de acordo com sua visão das coisas, sejam elas falsas ou verdadeiras.

Tanto a mentira, a fake-news e a lorota são ideias que só confundem o debate público e nos fazem perder tempo para desmenti-las. Há alguns complicadores do nosso tempo. A opinião pública não é mais formada apenas por especialistas em buscar a verdade, como jornalistas e cientistas. Agora mesmo o seu vizinho ou vizinha pode estar pensando em criar um podcast para falar sobre tarô, o campeonato de futebol de botão da Suécia, ou como ganhar dinheiro com apostas. E no meio dessa balbúrdia, quem tem espaço no debate público acaba sendo impelido ou compelido a emitir opiniões sobre temas que não domina ou, pior ainda, sobre os quais é completamente ignorante. Acontece que quem está no espaço público, normalmente, se expressa bem, sabe usar as palavras. E nada mais sedutor do que alguém que fala bem. Pessoas que falam bem chamam a atenção, conquistam nossa confiança. Pouco importa o conteúdo, importa a forma. Um podcast ou videocast bem produzido, com pessoas com aparência de especialistas em alguma coisa falando vai ter repercussão, mesmo que o conteúdo seja um monte de lorota.

(Texto a sair no Jornal Caiçara https://jcaicara.com.br/)

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Esse é um tema quente e tão amplo que certamente deixei de tocar em coisas importantes, especialmente o papel da crença do falante sobre o estado de coisas que enuncia. Ele é fundamental desde uma simples asserção até na mentira. Notem que para o Frankfurt, na lorota o elemento fundamental é o desprezo por qualquer conexão com os fatos.

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