Férias

Nota inicial

Praticamente abandonei esse espaço no ano passado. Espero conseguir voltar a publicar aqui, nem que seja só pra jogar na rede algumas coisas que tenho escrito. Tenho publicado mensalmente crônicas e resenhas no Jornal Caiçara de União da Vitória (PR). Isso tem me motivado a retomar esse espaço, embora eu tenha perdido um pouco a motivação pra fazer divulgação científica de linguística. Mas como escrever e falar de linguística são meus vícios intelectuais, sigo na peleia, mais por teimosia mesmo.

Calhou de eu só me lembrar do livro Infância do Graciliano Ramos só depois de ter escrito a crônica. É um livro de crônicas/memórias de infância. Então, fica a dica.

Férias

Emprestando as palavras de Manoel de Barros, confesso: eu tenho cacoete pra vadio. Como é bom acordar sem pressa pra acordar; dormir sem ter hora pra dormir; almoçar na hora que a fome aparecer… ler por puro deleite, e não pela obrigação de ler. Dedicar-se ao ócio e à contemplação, sem que nada tenha lá muita da tal da pressa. Férias é um negócio abençoado, convenhamos!

A sociedade tem um pouco de inveja de nós professores, pois sempre teremos folga nas festas de final de ano, e, principalmente, férias em janeiro. Já que o salário e as condições de trabalho são precárias, que pelo menos preservem esse direito como cláusula pétrea da Declaração Universal dos Direitos do Trabalhador. Para um capitalista deve ser um absurdo pagar para que o trabalhador tenha folga. “Porque lá no país XYZ não existe férias”. Ainda bem que vivemos num país do séc. XXI. Pelo menos nisso somos vanguarda.

Nem todo mundo é como os promotores públicos e juízes, que têm 60 dias de férias. A maioria dos professores têm 45 dias. Em algumas cidades, os professores têm 30. Em tese, todo trabalhador tem direito a esse descanso anual. O justo pelo justo. Claro que dirão que falo como membro da classe, mas se eu fosse presidente, todos os professores teriam 60 dias de férias, como os juízes.

Li nalgum lugar que o ideal é que se tenha férias parceladas em períodos de 10 a 15 dias. É o tempo adequado para que se descanse adequadamente a mente e o corpo. Pessoalmente, acho razoável. Férias muito longas tiram a gente do ritmo, como se a gente desaprendesse a trabalhar. Férias duas vezes ao ano. Quando eu for presidente, outra medida vai ser baixar um decreto para que todo trabalhador brasileiro tenha esse direito.

Contam por aí que há gestores públicos preocupados com o bem-estar dos trabalhadores, que nas férias escolares não têm com quem deixar seus filhos. Daí esse tipo de gestor invocar que não tem motivo para professor ter tantas férias. Na verdade, nem deveria ter férias. Onde já se viu, escola fechar? Mas todos sabem que, tirando a educação física e o recreio, o que mais as crianças amam na escola são as férias.

Do que seriam as memórias da infância sem as férias? Nada de lição de casa. Nada de tabuada e fórmulas matemáticas para decorar. Nada de trabalhos de arte com material reciclável. Nada dos afluentes do rio Amazonas ou do ciclo da água. Nada de tabela periódica.

De que seriam as avós, tios e padrinhos se as crianças não tivessem férias? As férias deles seriam um tédio, absoluto. Aposto! As avós teriam que ficar amuadas com seu crochê, suas novenas e o bate-papo de final da tarde com a vizinha. Os avôs fuçariam na horta, pescariam e fariam sua fézinha sossegadamente. Os tios e tias poderiam ir para o sítio fazer churrasco, beber cerveja e balançar na rede sem ter que se preocupar com o que as crianças estão fazendo, se estão mexendo com aranhas ou se encontraram um ninho de cobras. Nada como ter um parente com casa no interior.

Só nas férias é possível ir tomar banho em cachoeira. Passar a manhã inteira, ou talvez o dia inteiro, vendo desenho. Comer todos os dias bolo, biscoito, picolé, sorvete, bala, pirulito e outras guloseimas. Só nas férias é possível brincar sem se preocupar com a hora de dormir porque amanhã cedo tem escola. Só nas férias é possível brincar na pracinha e jogar bola até se cansar.

A vida da criança de cidade grande, que mora em condomínio, cujo passeio mais interessante é dar uma volta no shopping, não se compara ao glamour da criança que passa as férias rolando na grama duma casa de avó e vai dormir se coçando toda picada de mosquito. O que é mais legal: um sorvete com gosto de nada do McDonald’s ou correr atrás do moço do carrinho de picolé que está assoviando seu apito a uma (ou duas?) quadras dali?

Claro. A criança que passa as férias num condomínio vai se divertir de outras formas. Netflix, videogame, irmãos chatos, leitura… a criança que passa as férias lendo, aos quinze anos já terá lido a obra completa de Conan Doyle, a saga do Harry Potter umas três vezes… assistido a saga dos Vingadores umas cincos vezes… ou seja, será um jovem adulto chato e arrogante, porque só ele saberá todas essas coisas. Aos dezoito já terá lido todo o Dostoiévski e será fã do Zack Snyder. Um insuportável.

Brinco, pois minhas filhas são crianças de condomínio de cidade grande. Elas não têm o privilégio que eu tive de ter uma avó que morava numa casa de madeira com quintal de terra perto de um córrego onde a gente ia tomar banho escondido. Elas não têm o privilégio que eu tive de poder ir pra cachoeira do rio Espingarda em Porto Vitória e lá estarem umas dez pessoas, e não duzentas, como agora. São outros tempos. Fico imaginando que tipo de redações sobre as férias sairão nas escolas nesse começo de ano letivo. Aliás, aposto que nem se fazem mais redações sobre o tema. Está fora de moda. Conta comigo, na minha modesta opinião um dos melhores filmes sobre as férias, já nos anos oitenta falava de outros tempos com saudade. Aí me pergunto sobre o que escreverão os jovens e crianças de hoje quando forem lembrar da sua infância?

Jornal Caiçara, 24/2/2024 (https://jcaicara.com.br/2024/02/24/ferias/)

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