Latim em pó

O português que falamos no Brasil, ou o português brasileiro, tem um jeitão diferente do português europeu. Podemos nos perguntar por que ele tem essa “cara”, por que falamos do jeito que falamos, por que é diferente do português d’além mar. A resposta para essa pergunta só pode vir do estudo da História, e da história da própria linguagem, daquelas forças que agem para que as línguas mudem. O livro recém lançado de Caetano Galindo, Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras), narra essa aventura, emprestando o título da obra de outro Caetano, o Veloso, da canção Língua.
Caetano Galindo é professor do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade Federal do Paraná, é escritor e tradutor de James Joyce, Tomas Pynchon, e David Foster Wallace, entre outros escritores. Toda a sua experiência como professor de linguística histórica (e também como artífice da palavra) está no livro. Sua habilidade em explicar (ou descomplicar?), pode ser atestada em cada página em que apresenta grandes teses que mudaram nossa compreensão do funcionamento da linguagem e do próprio português. Esse é o grande mérito dos bons livros de divulgação. Nesse aspecto, ler o livro não é apenas uma experiência de adquirir conhecimento, é também fruir uma história bem contada. Tenho certeza de que para o leigo será um agradável passeio, não apenas pela paisagem, mas também pela sintaxe adorável do guia. Além da introdução e da conclusão, são dezessete capítulos, que passam tão rápido que, quando vemos, já se acabaram. Caetano tem grandes poderes, e sabe usá-los com responsabilidade.
São dezessete porque a história é longa e há vários temas paralelos que acabam se aproximando. Assim, ele opta por começar a viagem partindo não do desembarque da língua nessas terras com Pedro Álvares Cabral e sua turma, mas partindo da história do latim. Uma história que em si poderia ser contada em outro passeio.
Alguns capítulos nos apresentam teses básicas da linguística, como a constatação de que todas as línguas mudam, de que todas variam no espaço e no tempo, de que as línguas podem interferir umas nas outras etc.; também desconstrói uma tese em particular sobre o português, a de que seria uma língua difícil. Os mitos sobre a linguagem em geral e sobre o português em particular são como insetos no campo. Por mais que a gente mate um, em pouco tempo aparece outro que precisará sem combatido da mesma forma. Se nem a astronomia está livre desses retornos (olha o povo da terra redonda por aí fazendo furdunço), quem dirá nós, meros estudiosos da linguagem que todos os anos precisamos convencer os calouros dos cursos de Letras de que não existe língua mais difícil que a outra, que as línguas não se degeneram, que os jovens não estão matando a bela língua do Padre Antônio Vieira e que hoje em dia ninguém mais sabe escrever…
Assim, a história começa com os romanos e seu império. Por isso ela demora um pouco para chegar até nós, um dos poucos defeitos do livro. Mas é necessário desenrolar essa cantilena, pois ela ilustra uma constante da história humana, e consequentemente, das línguas: o contato e a troca. Além de terem subjugado e dominado boa parcela do mundo da sua época, os romanos conseguiram a proeza de impor sua língua aos povos dominados, especialmente na Europa.
Como vemos até hoje, quando há comércio e troca cultural, também há troca linguística. Não é preciso ser um otaku pra saber o que é anime, sushi, sashimi, temaki e pra ter visto Jaspion ou Meu vizinho Totoro. Isso que o Japão está lá do outro lado do globo! Imagine o que aconteceu quando os romanos chegaram na península Ibérica ou na Gália? Com o contato, trocamos objetos, costumes, crenças e também as palavras. Essa troca é o que mais nos salta aos olhos, óbvio. Mas uma das grandes questões atuais é como esses contatos influenciam áreas mais profundas da gramática das línguas. Poderia mudar o sistema sonoro, a forma como conjugamos verbos, como colocamos pronomes, como construímos orações?
Aparentemente sim. Mas não pense que os romanos enviaram professores de latim bem treinados e munidos com métodos avançados de ensino de idiomas. Os enviados às províncias eram (geralmente) soldados, colonos e baixos funcionários da máquina imperialista. Ou seja, indivíduos de estratos sociais baixos. E o latim que elas levavam não era o que hoje se chama latim clássico, mas um latim popular, o latim do vulgo, o latim vulgar.
Algo similar ocorreu quando as caravelas de Cabral baixaram a âncora no litoral brasileiro. A história do português por essas bandas vai se confundir inevitavelmente com a nossa história. O contato do português com as línguas dos indígenas e dos africanos escravizados vai mudar a cara do idioma. Caetano aponta em vários momentos que esses contatos não geram consequência apenas no plano do vocabulário (na toponímia e nos nomes da flora e fauna). Essa é uma pergunta interessante que o livro explora: até que ponto o contato do português com as línguas indígenas e africanas foi capaz de mudar o português? Essa nossa tendência a formar sílabas com a estrutura consoante-vogal, eliminando encontros consonantais, seria um indício dessa influência, como nas palavras pneu, que pronunciamos “peneu”? A marcação de concordância nominal apenas no primeiro elemento da expressão, como em os menino, as pessoa seria outro?
Como o autor diz logo de cara, o livro não é uma história aprofundada, mas um passeio pelas etapas históricas de formação da nossa língua. Como o assunto é bom, e o guia experiente, falo com tranquilidade que vale a viagem.

Publicado no Jornal Caiçara, 04/03/2023 (https://jcaicara.com.br/2023/03/04/latim-em-po/)

Qual erro de português te irrita mais?

Pra mim nenhum. Mas eu sou suspeito. Sou linguista e fui treinado a ver o erro de português mais como sintoma, do que apenas um desvio do que se considera correto. Aliás, a própria noção de erro é constantemente posta em discussão na academia. Já que o que interessa ao linguista é a linguagem nas suas diversas manifestações, não ficar corrigindo os outros.

Não que a atitude dos falantes em relação a linguagem não interesse. Na verdade interessa pra caramba, tanto que eu estou aqui pensando sobre isso, pois o fato de as pessoas terem reações diversas diante de letras ou sons é um negócio que eu acho admiravelmente curioso.

[No caso da escrita, são só letras, tá ligado? Pra quê todo esse auê?]

A escola deveria ter um pouco esse olhar, pois há erros e erros. Mas, é mais prejudicial do que benéfico simplificar tudo, jogando num mesmo saco coisas que são diferentes, , embora o discurso do certo/errado seja sempre justificado pela sua utilidade pedagógica.

Ortografia

A escrita correta das palavras é um cuidado perene (ou deveria ser). É uma atitude saudável que a gente deveria levar pra vida, como o cultivo de uma boa escrita à mão. A gente trata a escrita do médico como um objeto cultural, mas atender um paciente é o afazer cotidiano desse profissional, e se ele tem que escrever rápido e desleixado porque tem coisa melhor pra ir fazer, então eu acho que entendi tudo errado. Escrever seguindo a ortografia ou escrever manuscrito com uma boa caligrafia são faces de uma mesma moeda: cuidado com o leitor.

[Muita gente por aí destaca o poder da escrita à mão para a memória, por exemplo. Eu sinto que é uma forma de eu manipular mais concretamente os conceitos que preciso assimilar. Semana passada eu estava com dificuldade para entender um texto. Resolvi esquematizar as ideias dele e pronto: ele se abriu como uma castanha difícil de quebrar.]

Quando a escrita é pessoal, tudo bem, escreva como quiser. Mas a escrita pública precisa ser caprichada e cuidada. Eu demorei um pouco a entender esse valor. Um médico que escreve uma receita de qualquer jeito não quer ajudar o paciente, só quer se livrar dele.

Por que um erro irrita?

Não tenho nenhuma resposta pronta pra isso, mas minha hipótese é que é mais uma faceta do preconceito linguístico. Rimos dos erros dos pobres, mas não dos ricos. Os pobres erram tentando acertar, mas os ricos erram (mais) por desleixo ou preguiça. Imagino quantos erros de digitação não aparecem em sentenças e processos judiciais ou note quantos erros não vemos todos os dias nos textos publicados em jornais digitais e blogues, textos publicados no afã de dar a notícia logo, pois vivemos a era da sede de informação (parece que nunca estamos saciados e sempre tem algo acontecendo).

Quando vejo erros de digitação nos meus textos já publicados fico com uma pontinha de embaraço, especialmente na tese e na dissertação, que são textos em que eu deveria ter passado um pente fino ou pago alguém pra revisar. Não tem o que justifique. Especialmente pra alguém da área com acesso a dicionários e recursos tecnológicos.

Exclamativas: PB x PE

Eu estava lendo a tese do português F. Martinho (Sintaxe e semântica dos adjetivos graduáveis em português. Universidade de Aveiro, 2007), quando no capítulo 9, em que ele discute qual seria a melhor hipótese para a estrutura do SA (se com projeção funcional de grau ou se o SGrau seria especificador), um dos argumentos para defender a primeira abordagem é que alguns movimentos de modificadores só seriam possíveis se o adjetivo for alçado junto com o wh. Mas nas exclamativas, os exemplos são os seguintes.

(1a) *Tão a minha pele está sensível!

(1b) Tão sensível que a minha pele está!

(2a) *Que este homem é cabeludo!

(2b) Que cabeludo que este homem é!

O negócio é que a minha intuição reagiu instantaneamente ao ler essas orações. A reação dos meus alunos foi a mesma. Essas exclamativas são esquisitas (no mínimo).

Claro, em português brasileiro parece que gostamos de fazer exclamativas apenas com a entonação (sem uso de recursos sintáticos), como o deslocamento para a periferia esquerda, como em (3a), ou usando o recurso do que, que certamente envolve deslocamento:

(3a) A minha pele está tão sensível!

(3b) Que sensível que a minha pele está!

A outra exclamativa sem o tão precisa do deslocamento e do que, mas além disso ocorre uma inversão. O sujeito aparece posposto ao verbo de ligação:

(4a) Que cabeludo que é este homem!

Claro, é importante ter em mente que o fato de preferirmos expressar o mesmo conteúdo de (1b) com outras estruturas, não é indício de que ela seja agramatical. Contudo, a exclamativa com tão fronteado me parece certamente agramatical no PB.

Confesso que nunca li nada sobre as exclamativas no português. Sei da tese da Karina Zendron (Sentenças exclamativas em português brasileiro: um estudo experimental de interface. UFSC, 2016). Preciso ler qualquer hora dessas.

Ideia pra um conto: desdobramentos

A ideia poderia ficar naquele estado. Projeto, potencial, simples anotação no caderno de apontamentos. Frases justapostas, embrião de narrativa. Mas eu fui lá e resolvei escrever mais um pouquinho.

Quem é o personagem principal? O crítico poderia ser um homem de seus quarenta e poucos anos. Tem uma namorada, jamais foi casado. Sempre se dedicou à crítica, desde os anos 80, quando foi contratado pelo jornal, ainda cursando letras, para escrever resumos de livros, filmes e espetáculos. Promovido à seção de resenhas, com o passar do tempo ganhou uma coluna semanal, e algumas páginas no caderno especial de cultura, caso tivesse alguma ideia pra explorar com mais detalhe. Tinha liberdade de assunto. Respeitado por alguns, detestado por tantos outros escritores no seu estado. Possivelmente mora em um apartamento de dois quartos, comprado com muito sacrifício, na sua maior parte pago com uma poupança que descobriu que sua mãe tinha, falecida no início dos anos 90. Dividiu a herança com um irmão, que é professor de geografia em uma pequena cidade na Serra Gaúcha (faz bicos de guia turístico aos finais de semana). Possui um gato, não tem paciência pra levar um cachorro passear. Sempre viu os gatos como seres misteriosos e independentes, personagens muito mais interessantes que os cães, embora, Baleia, seja uma bela exceção na literatura. Não toma café, apenas chá. Não por motivos de saúde, apenas por idiossincrasia pessoal. Compra livros religiosamente em uma livraria no bairro Rio Branco. Como muitos, acredita que as mega-livrarias estão matando as livrarias de rua, com suas mega-promoções, mega-lançamentos, mega-estantes cheias de nada. Talvez pudéssemos começar o conto por esse ambiente. É final de tarde, uma quinta-feira. Ele toma seu chá inglês, come uma fatia de torta qualquer e lê Walter Benjamin quando seu telefone toca. É a secretária do editor do jornal, que quer falar com ele no dia seguinte. Não diz o assunto. Apenas que ele o espera amanhã, às dez horas. Tem dois anos já que ganhou o privilégio de trabalhar em casa. Vai para a redação nas segundas-feiras para a reunião de pauta do caderno de cultura. Dá lá os seus pitacos. E tem o tempo livre para escrever suas colunas, resenhas e ensaios. Fez mestrado dois anos depois de formado. O desejo de cursar um doutorado e seguir carreira acadêmica sempre o seduziu. Mas o projeto foi sendo deixado pra depois, ano que vem, ano que vem, se dizia, quando os colegas perguntavam para ele quando é que iria fazer um doutorado. Tinha pra si que os estudos formais poderiam destruir o seu olhar intuitivo, não queria pegar as manias dos críticos “oficiais”. Não sabia dizer de onde tinha tido essa ideia, nem quem eram propriamente os críticos oficiais, apenas era, talvez, uma desculpa, algo que dizia pra si mesmo para justificar a falta de sistematicidade nos seus estudos. Sérgio Buarque de Holanda diria, tá vendo, é disso que eu falo, o brasileiro é um aventureiro, um caçador, não um cultivador. Porra. O veado tinha razão. [e essa boca suja é dele mesmo, do personagem, que também tem que ser um cara sem frescura, porque alguma coisa nele diz lá dentro dele que escrever pra viver é frescura, que tipo de homem sustenta a família lendo e escrevendo, é capaz de ouvir ainda seu avô dizendo quando contou que arrumou o emprego no jornal]. Embora a própria existência de um Sérgio Buarque, de um Antônio Cândido, de um Lima Barreto sejam a negação dessa tese. Claro, são exceções, não a regra, o pai do Chico diria. Ele tinha consciência disso tudo. Jamais seria um Antônio Cândido. Estava velho demais pra isso, e, bom, já sabemos que não possui doutorado. Naquela altura do campeonato jamais terminaria o doutorado antes dos 50, e, começar uma carreira nova aos 50… puxa vida, quem é que faria algo assim? Ele poderia estar lá, lendo o Benjamin e pensando nessas coisas quando receberia a ligação marcando um encontro, que ele ainda não sabia, iria mudar a sua vida. Ele, naquela altura, depois de vinte anos de serviços prestados, esperava chegar à aposentadoria naquele jornal, com a sua coluna, enfim, levando aquela vidinha mais ou menos que ele levava. Embora não fosse repleta de aventuras, era a vida que um crítico literário profissional poderia levar. Cinema, café, um concerto ou uma peça teatral de vez em quando, vernissages e lançamentos de livros, participação em seminários e feiras literárias pelo país. Era essa a sua vida. Uma namorada artista plástica frustrada que ensinava pintura em tela para adolescentes, donas de casa e idosas. Era bonita, tinhas seus trinta e poucos anos, e partilhava dos seus gostos para cinema e música. Além de ser uma cozinheira daquelas que fazia a própria massa de lasanha; ou mesmo um bife acebolado básico que parecia ter saído de uma revista de culinária.

As cenas [isso fica pra outro post]

Cadê a nossa boa e velha crônica?

Lendo João do Rio, me pego pensando nessa coisa gostosa que é a crônica, esse texto que tá ali entre o conto e a poesia, entre a realidade e a ficção, entre a hipótese e a certeza. Tivemos Rubem Braga, Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues (esse lazarento que escrevia de tudo e fazia tudo muito bem), Luis Fernando Veríssimo (o últimos dos grandes cronistas?); sem contar um outro time que atacava de cronista também pra pagar as contas: Drummond, Clarice, Cecília Meireles…

Devo andar lendo as pessoas erradas…

Ou vai ver que o mundo em que a gente vive seja tão maluco ao ponto de a imaginação não ter mais graça, e a graça toda esteja em inventar distopias, fantasias medievais, super-heróis com poderes inusitados e por aí afora. Ou a gente ficou careta? Vai ver que a tragédia grega que Nelson Rodrigues enxergava na violência cotidiana não comove mais ninguém.

* * *

João do Rio (um desses iluminados que sabiam colher da vida a sua graça), numa crônica sobre as tabuletas dos estabelecimentos comerciais do Rio:

“…encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, já pintara ‘vendem-se móveis’ quando o negociante veio a ele:

– Você está maluco ou a mangar comigo!

– Por quê?

– Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se… Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!” (A alma encantadora das ruas, p. 101).

A sabedoria popular que os gramáticos tendem em não ouvir…

A guerra persuasiva

Desde que a guerra é guerra, ela também se dá no plano ideológico. Nazistas, comunistas, norte-americanos, o regime militar brasileiro, a atual propaganda estatal (por que diabos o governo precisa fazer propaganda que não seja de utilidade pública? Coisas como campanhas de vacinas, alistamento militar etc. até entendo). Podem bombardear todo e qualquer vilarejo suspeito no Oriente Médio, essa guerra não pode ser vencida.

Não pode porque não se pode matar uma ideia. Hitler conseguiu mobilizar um povo em torno de uma ideia. Perdeu a guerra, mas a ideia não morreu. De tempos em tempos ela ressurge. Os alemães (ou os brancos em geral) são superiores a outras raças, destinados à grandeza, e o estrangeiro está no seu quintal para tirar dele o seu emprego, o seu dinheiro, a sua terra. É o mesmo discurso que os extremistas islâmicos usam: estão destinados à grandeza, são o povo escolhido por Deus, e o outro está lá para roubar as suas riquezas. Estou simplificando, mas acho que a ideia é essa.

Como é que esse discurso funciona? Propaganda. As imagens que nos chegam são de um bando de maltrapilhos no meio do deserto. Mas eles têm wi-fi, têm celular. Eles andam em Mitsubishis e Toyotas, falam em Iphones e S4s, conversam pelo Skype, pelo Facebook e pelo Twitter. Se duvidar suas armas são israelenses e americanas, justamente os povos que tratam como inimigos.

Vi há pouco um documentário na GloboNews. Uma jornalista se infiltra em grupos pró-estado islâmico no Facebook e entra em contato com eles como se fosse uma francesa convertida que quer se casar com um soldado. Eles a orientam a ir até a Turquia. Lá um contato a ajudaria a chegar até uma cidade Síria onde seu futuro marido estaria. A promessa é que ela teria luxos, ficaria segura em uma mansão onde as mulheres dos soldados moram. Na Turquia ela conhece uma jovem francesa (nascida na França de pais franceses) que fugiu de casa para se juntar ao Estado Islâmico. A idade da jovem: 15 anos. Isso mesmo. Ela tem 15 anos! É ingênua, está completamente iludida pelas promessas de luxo e vida boa. E se nada der certo, a jornalista pergunta: ainda posso virar uma mártir, a garota responde. 15 anos! E o pior. Ela fugiu com uma identidade falsa. Embarcou tranquilamente na França, passou tranquilamente pela alfândega na Turquia. Ninguém a parou, ninguém percebeu que a foto na sua identidade não era sua, era da sua irmã mais velha. Estava de burca, claro. Era só mais uma muçulmana saindo do país.

Discordo do Tulio Milman. A história mostra que o capitalista está pouco se lixando. O dono do banco não quer saber de onde vem o dinheiro. O fabricante de armas não se importa com o número de vítimas que elas produzem. O dono do Facebook se importa com uma foto de peitos, mas não se se criam grupos para espalhar preconceito e ódio, ou aliciar simpatizantes para qualquer causa obscura. Alguém financia a guerra. E quem a financia não está rasgando dinheiro.

O mesmo documentário mostra que a propaganda é superproduzida. Os vídeos são em HD. Neles soldados são retratados como heróis; as cidades, oásis de prosperidade. Além disso, crianças sorridentes, com fuzis empunhados, brincam nas ruas; e mulheres fazem as compras em feiras-livres com frutas e verduras frescas. Nada mais longe da realidade. Quem permanece nas cidades passa fome, é roubado, e praticamente toda atividade econômica individual é suprimida. Não há comércio, não há agricultura, não há serviços públicos. Mas o convertido não se importa, para ele a ilusão é mais importante que a realidade. Um francês, um belga ou um inglês tem acesso à informação, sabe o que acontece lá, pelo menos via noticiário. Por que escolhe acreditar na ilusão e no que diz o seu irmão de fé? Aliás, por que um cristão se converteria ao islã? Por que esses filhos de imigrantes, ou mesmo cidadãos de países europeus engrossam a lista do EI? Por que se voltam contra o seu país natal ou o país que acolheu seus pais? Propaganda. Pura e simples propaganda.

Memória do Campos é documentário que mostra alguns campos de concentração descobertos depois da derrota nazista. Muitos campos ficavam na região rural de cidades pequenas. Os habitantes dessas cidades sabiam o que acontecia lá, embora a maioria não testemunhasse. Quando americanos chegaram a essas cidades, obrigaram as pessoas a irem lá ver. Saber é uma coisa, testemunhar a olho nu é outra. Mesmo conscientes da maldade, parece que havia ainda um certo pudor. Com o EI é diferente. Eles têm orgulho da maldade, a espetacularizam (e o jornalismo internacional divulga essas imagens aos borbotões: não percebem que é isso que eles querem?). Hannah Arendt disse em algum lugar que o ser humano não é mal por natureza. Ela, Rousseau, e tantos outros que repetem essa ladainha, estavam errados. Todo ser humano é mau, basta que tenha oportunidade para mostrar isso (se não conhecem a história do experimento da prisão com estudantes universitários, vejam a palestra no TED, é bem convincente; ainda não se convenceu, leiam o Tábula Rasa do Steven Pinker). Por outro não é justamente o que os americanos fizeram após a invasão ao Iraque? Os soldados americanos não faziam piada com os prisioneiros? Não faziam filmagens humilhando os coitados? Nós, os civilizados? Não linchamos um ladrãozinho de galinha, filmamos e jogamos no Youtube? Não lincharam uma mulher em Santos no ano passado por conta de um boato de Facebook? (foi tudo filmado, não?) Não bateram em um guri até a morte há pouco tempo no interior do Rio Grande do Sul por conta de uma briga de boate por um motivo banal qualquer? Os conservadores não ficam xingando conhecidos políticos petistas em ambientes públicos simplesmente porque a narrativa construída é de que o PT é o partido mais corrupto do Brasil? Aposto que o Maluf nunca foi incomodado num jantar; muito menos Luis Estevão.

No final das contas, me parecer que o horror é só uma questão de perspectiva. Ou melhor, de propaganda. Assim como o ódio.

Machadinho e a meritocracia

“— Há de perdoar-me, interrompeu Estácio com um ar de familiaridade indiscreta, que lhe não era habitual; eu creio que
um homem forte, moço e inteligente não tem o direito de cair na penúria.
— Sua observação, disse o dono da casa sorrindo, traz o sabor do chocolate que o senhor bebeu naturalmente esta manhã antes de sair para a caça. Presumo que é rico. Na abastança é impossível compreender as lutas da miséria, e a máxima de que todo o homem pode, com esforço, chegar ao mesmo brilhante resultado, há de sempre parecer uma grande verdade à pessoa que estiver trinchando um peru… Pois não é assim; há exceções. Nas coisas deste mundo não é tão livre o homem, como supõe, e uma coisa, a que uns chamam mau fado, outros concurso de circunstâncias,e que nós
batizamos com o genuíno nome brasileiro de caiporismo, impede a alguns ver o fruto de seus mais hercúleos esforços.
César e sua fortuna! toda a sabedoria humana está contida nestas quatro palavras.
O desconhecido proferiu isto com o tom mais simples e natural do mundo, e uma facilidade de elocução que Estácio mal
lhe podia supor. Era aquilo uma comédia ou a expressão da verdade? Estácio olhou fixamente para ele, como a querer penetrá-lo. Ao mesmo tempo, ouviu-se um rumor na parte da casa que ficava além da sala; Estácio voltou a cabeça com um gesto de desconfiança. A porta abriu-se e apareceu uma preta velha trazendo nas mãos uma bandeja.”
(Machado de Assis, Helena, Globo, 1997, p. 130.)
Caiporismo. sm. Bras. Má sorte ou infelicidade constante; azar, cábula, peso, urucubaca (bras.), macaca (bras.) (Dic. Aurélio).

Estudando a linguística

Deixa eu ver se entendi direito. Pro Jackendoff, um cara que usa a palavra “cognição” sem pudor algum nos seus textos e livros, há uma sistema de inato de formação de conceitos. Já os “cognitivistas” falam em construção cultural e social de conceitos linguísticos (o povo que estuda metáfora, em geral). A pergunta é, qual a visão de cognição para eles? a) Jackendoff é gerativista nesse aspecto?, b) os cognitivistas do segundo grupo são behavioristas? Creio que o Chomsky diria que sim, já que para ele quem não é idealista é empirista, e logo partidário da tese da tábula rasa (diferenças sobre a aprendizagem à parte; um construtivista ou interacionista que gostam de negar o inatismo tampouco são partidários do behaviorismo, embora para Chomsky eles sejam todos farinha do mesmo saco).

Novelas e escolhas duvidosas

Nessa semana, na quinta-feira, nos episódios de Sangue Bom e Amor à Vida vi duas cenas que me chamaram a atenção. Não essencialmente pelas cenas em si, mas pela trilha sonora, que posta nas cenas dá outra carga de significação. Um exercício que deveríamos fazer é o seguinte: se conseguíssemos retirar a trilha sonoras daquelas cenas, como as interpretaríamos?

Cena 1, Sangue Bom: Tito é um filhinho de papai, boçal, arrogante, bombadão. Na casa desse fulano tem uma empregada doméstica, Sheila, negra, jovem, bonita, que tem sonhos e ambições. Certa cena nos mostra a garota estudando na cozinha do trabalho. Ele pergunta por que ela está estudando. Ao que ela responde: “Não quero ser doméstica o resto da vida”. Ele caçoa dela e diz que ela é mal agradecida, afinal tem um emprego, isso deveria ser suficiente para ele. Em seguida diz que ela deve lhe levar água antes de ir embora. Corta. Outras cenas acontecem. Corta. Agora a empregada está indo embora, a outra lhe diz para levar a água se não quiser ser demitida. A moça não parece confortável com isso, mas pega o copo de água e leva ao quarto do playboy, que está lá malhando, sem camisa, e todo suado. Ele passa a chave na porta e agarra a empregada. Diz que gosta de vestibulandas. A expressão facial da personagem tem tudo pra ser uma cena de assédio sexual ou um estupro. Advinha que tipo de música é colocada por cima de uma cena dessas? Uma musiquinha feliz! A cena, que estava me causando um desconforto (na verdade o desconforto foi ainda maior depois que a música começou a tocar), ganhou outro matiz de significado: a mulher estava gostando de ser assediada sexualmente pelo patrão bonitão e musculoso! (mesmo que sua cara não mostrasse isso).

Cena 2, Amor à vida: é a cena que se segue à descoberta da homossexualidade de Félix (Mateus Solano) por sua esposa Edith (Bárbara Paz) . É uma cena que me causou desconforto também. A interpretação do Mateus é afetada, caricata, é difícil saber quando ele está sendo sincero ou irônico. De qualquer forma, na tensão toda daquela discussão, “sim eu sou homossexual”, ela dizendo “eu vou largar você”, ele tenta argumentar para que ela não o deixe. Um dos argumentos é que ele aprendeu a gostar dela, inclusive sentido prazer em estar com ela. Ele a abraça. Qual é a música que toda? Uma música de romance! (Vejam, que casal bonito!) Só que a expressão facial que o Mateus faz não tem nada de romântica! Como se fosse para deixar claro que o que ele disse era tudo mentira, e que ele é de fato, alguém desconfortável com aquela situação, mas que ao mesmo tempo precisa de uma família de fachada.

Talvez eu que seja estranho, mas nunca entendi essa coisa de homem ter que ter “pegada”. Aquela cena, que talvez seja um protótipo desse tipo de atitude, do homem que pega a mulher a força porque se for no papo ela não vai ceder, por mais que ela também queira ter alguma relação com ele. Mas quem garante isso? E o que é pior, qual é a mensagem que isso passa? Que esse é um comportamento socialmente aceitável, homem de verdade é aquele que pega mulheres à força, principalmente em relações de poder desiguais: patrão/empregada. Ela é só uma negra pobre, jamais irá processar o patrão por assédio sexual. Afinal, ela deve ter gostado.

Já a cena de Amor à Vida é uma cena confusa. Ao mesmo tempo em que quer criar um clima de ‘vejam, eles são um casal legal’, também quer mostrar que o Félix não é uma pessoa confiável, é um sujeito que fala uma coisa e sente outra. Nesse sentido, porque essa música de amor? É como se a música apagasse totalmente o clima de tensão criado na cena pela atuação dos atores, como se a intenção fosse: “não confie neles, eles se amam, só não sabem disso”.

O que une as duas cenas é exatamente isso: a música que contradiz o espírito da cena. Vai ver a intenção seja essa mesmo. Ou eu não entendi nada do que vi.