Dois livros de crônicas

Tem dias que eu sinto que não tenho talento pra nada. Meio que é um milagre eu ter dado certo na vida como professor e linguista, que periódicos publiquem meus artigos, que editoras tenham topado publicar meus livros. Nem pra fazer amigos eu tenho lá muito talento. Como aquele meme, sou o introvertido que é sempre adotado pelos extrovertidos onde quer que chegue.

Tergiverso (e isso tudo aí é assunto pra outro texto). Por que na verdade eu queria era falar do talento de dois caras que eu conheço para a crônica. Não é pra puxar o saco, não! Eles mandam bem demais. Escrevem com aquela naturalidade do olhar do poeta que prefere fazer prosa e tirar um sarrinho. Se me permitem a metáfora, a crônica é um ensaio de bermuda e chinelo de dedo. Até onde eu entendo essas coisas, né!?

Leonardo Antunes foi meu colega na UFRGS. É um tímido desavergonhado. Em pouco tempo ficou amigo de todo mundo. Aposto que em seis meses fez mais amizades no meio literário do que eu fiz em sete anos de Porto Alegre. A pequena coletânea de crônicas que lançou recentemente, Diários de um paulista em Porto Alegre, é uma delícia. Só tem um defeito grave: são poucos textos. Trata dos desencontros da linguagem, rotinas de polidez, e especialmente da alimentação e rituais à mesa (como o uso de palitos de dente).

O Yuri Al’hanati eu conheci esses dias num churrasco. Depois que tomei conhecimento das coisas que ele faz, fiquei me perguntando como é que eu vivi tanto tempo sem saber da existência do blogue (https://livrada.com.br/) e do canal do Youtube. Na real eu não sou lá muito fã de canais que comentam livros, justo porque não tem graça se eu não li a obra comentada. Mas o canal do Yuri não é só isso. Tosquice minha, óbvio! Sou um rato digital que zanza pelas quebradas erradas, eu acho.

Yuri é autor do recente A volta ao quarto em 180 dias, uma coletânea de crônicas sobre o primeiro ano da pandemia. Diferentemente de um Rubem Braga encastelado na sua cobertura com vista para o mar em Ipanema, ele é um dos muitos adultos solitários que habitam essa metrópole de cimento e ônibus biarticulados que é Curitiba, se contentando com uma vista para o pôr do sol, cuja trilha sonora é o som das furadeiras e makitas. Suas crônicas falam de objetos, como uma bola de poeira e cabelos num canto, a máquina de lavar roupas; sobre atividades, como cozinhar para si, beber vinho, maratonar séries; e das coisas da pandemia: máscaras, distanciamentos, testes… embora trate dessas coisas todas dum jeito bem informal, ele eventualmente resvala para a reflexão sociológica: “A máscara é a nova camiseta, usada no calor por convenção e decência, o respeito pelo próximo. Sem ela, somos mais selvagens, menos sensíveis, menos humanos”.

E é justamente essa reflexão mais elaborada misturada com o cotidiano o que dá para as crônicas esse jeitão massa que elas têm.

Mudanças

Uma vez escrevi aqui que não faria mais concursos. Mas lá veio a vida… fiz outro concurso, passei e mudei de universidade e cidade. Depois de 7 anos de Porto Alegre e UFRGS, no mês passado me mudei para Curitiba e para a UFPR.

Sempre gostei de Curitiba, e como todo garoto do interior do Paraná, sempre tive uma atração pela capital. Sonhei algumas vezes em vir morar aqui, estudar na UFPR, cogitei largar a graduação na FAFIUV e mudar para cá (para continuar cursando Letras mesmo ou jornalismo, outra profissão que me atraía), mas como muitos planos da juventude, esse foi colocado num canto e esquecido. Depois de formado, quando pensava em fazer mestrado, claro que cogitei vir para a UFPR. Mas, por uma daquelas decisões que são meio conscientes meio inconscientes, meti na cabeça que meu lugar estava em Florianópolis. Foi uma sábia decisão, porque muita coisa legal aconteceu na minha vida a partir disso.

Agora estou aqui, começando tudo de novo (estágio probatório, se familiarizando com a universidade, sua burocracia e seus trâmites, buscando um espaço de pesquisa e colaboração com os professores do departamento – muitos dos quais eu conheço, o que facilita à beça as coisas – e com a cidade, uma parte mais legal, sem dúvida). Coincidiu que eu estava finalizando meu projeto de pesquisa na UFRGS justamente em julho e já tinha um novo praticamente pronto (que iria submeter para a universidade lá em junho e que acabei usando no concurso também). Essas coisas todas tomam um baita tempo da gente.

Enquanto na UFRGS existe um sistema unificado em que você com um login consegue fazer quase tudo, na UFPR são vários sistemas que parecem não se comunicar. Por exemplo, para descobrir a lista de chamada, se faz login no Portal do Professor. Como esse sistema não tem vínculo com um sistema virtual de auxílio às aulas presenciais, tive que criar uma sala virtual no Google Classroom para disponibilizar as leituras e criar uma central de comunicação coletiva com os alunos. Para submeter o meu novo projeto de pesquisa ao Comitê de Pesquisa do Setor de Ciências Humanas (órgão ao qual o departamento de Literatura e Linguística e curso de Letras estão vinculados) preciso encaminhar o processo via outro sistema, o SEI. Para criar uma página profissional terei que passar por uns trâmites, coisa que na UFRGS eu fiz com alguns cliques. Tudo isso toma muito tempo da gente. Tempo que eu gostaria de estar dedicando ao que interessa (pelo menos para mim): preparar minhas aulas, ler/pesquisar e escrever. Pra vocês não me chamarem de mentiroso, na UFPR já descobri: o SIGA, a Intranet, o Portal do Professor e o SEI. Cada um desses lugares faz algo diferente.

Deveriam oferecer um minicurso aos professores novos sobre como funcionam e quais são os sistemas da universidade (tem curso sobre tanta coisa). Mas ninguém te ajuda com essas coisas e você vai meio que tateando e aos poucos via tentativa e erro encontra as informações.

Um continho

Chegou em casa. Tio Valdemar, Tia Filomena e o primo Nelson viam televisão. Soltou a notícia no meio da sala. Riram. Nelson o chamou de louco.

– Eu não sou louco. – Esbravejou, batendo com o pé no chão, punho fechado. – Vou embora pra Porto Alegre sim!

Ele tinha visto na televisão. Em Porto Alegre havia empregos. As pessoas como ele trabalhavam em mercados, farmácias, andavam de ônibus, de bicicleta, brincavam nas praças. Ficasse ali, passaria o resto da vida indo naquele lugar chato, com professoras que não gostavam dele; nem a comida era boa, pelo menos isso fosse o caso, mas não era.

Era uma segunda-feira do mês de maio. O vento lambia campos e orelhas com sua língua fria. Agasalhou-se bem, como a mãe sempre lhe pedia, gorro na cabeça e cachecol de tricô no pescoço. Arrumou sua trouxa, e como naqueles desenhos do Pato Donald, colocou o saco na ponta do cabo de uma vassoura e foi em direção à rodoviária. Leu “Porto Alegre” no guichê e foi até lá.

– Quero uma passagem pra Porto Alegre. – Falou decidido.

– E tua mãe sabe disso, guri? – O caixa o olhou meio de lado.

– Sou de maior, faço o que quiser. – Respondeu, mostrando a identidade para o rapaz, que examinou-a, não acreditando no que estava lendo.

– É quarenta reais. Você tem esse dinheiro?

– Tenho. – Tirou do bolso várias notas de dez. Contou e entregou as notas para o rapaz. Para sua surpresa, o dinheiro estava certo. Vendeu-lhe a passagem e desejou-lhe boa sorte. Não era problema seu se um guri como aquele queria ir a Porto Alegre sozinho.

– O ônibus sai meio-dia e meia, não vai se atrasar, hein? – Avisou-lhe.

– Vou ficar aqui esperando.

Sentou-se no banco do saguão da pequena rodoviária e ficou vendo a televisão que estava ligada num daqueles programas matinais. Ele preferia que estivesse passando desenho. A televisão estava presa muito alta na parede, senão poderia mudar o canal e achar um em que estivesse passando algum desenho. No outro canto da rodoviária um grupo de índios dormia no chão, enrolados em trapos e abrigados do vento pelos cestos e balaios que faziam para vender.

A meio-dia dirigiu-se para a área de embarque. Havia espaço para quatro ônibus estacionarem ao mesmo tempo, mas não havia nenhum ainda. Sentou-se num banco que havia por ali. Pegou uma banana, que havia colocado na sua trouxa, caso lhe desse fome, e ficou mastigando com sua dentadura frouxa. Ia perder o almoço. A tia Filomena ia fazer purê de batatas e frango de panela no almoço. Como não sabia disso, ficou se perguntando o que teria em casa para comer. Fazia tempo que não comia uma polenta com molho.

Em casa a tia Filomena pensava que ele estaria andando pela cidade, como sempre fazia. O primo confirmou dizendo que o havia visto com uma sacola por volta das nove horas. Não se preocuparam, pois vivia pela rua e às vezes almoçava na casa de Ernesto, às vezes no Vanin. Até a velha Cida dava almoço pra ele também, quando ele por acaso passasse por lá e a visse tomando chimarrão na varanda ou arrancando os matinhos dos canteiros de flores do jardim. Ele gostava de ajudar a velha e se apoitava por ali durante o dia. Dali a pouco ele apareceria de volta, como sempre fazia. Ninguém considerou por muito tempo o fato de ele estar carregando um saco. Nelson se interrogou sobre o que ele levaria dentro, mas logo pensou noutra coisa e se esqueceu do primo doido.

Os passageiros surgiram assim que o ônibus estacionou.

– Mas que tal? Tu vai pra Porto Alegre também, guri? – Perguntou o seu Inácio, que o conhecia desde que nascera e que estava indo para a capital visitar o neto que tinha nascido.

– Me vou mesmo. Vou arrumar serviço. Trazer dinheiro pra tia.

“Que loucura desse guri”, pensou consigo Inácio e conferiu se a passagem ainda estava no bolso.

Seu Inácio embarcou. O guri ficou observando os passageiros com os olhos de quem estuda. Mais pessoas chegaram e uma fila de dez pessoas formou-se para colocar a bagagem debaixo do ônibus. Eles deixavam a bagagem ali e entravam em outra fila, agora para entrar. Ele só tinha sua trouxa. Viu que pessoas com bolsas pequenas não as colocavam ali embaixo. Elas tinham a identidade e a passagem na mão e dirigiam-se para a segunda fila diretamente. Pegou a sua passagem. A mãe dizia que era para ele sempre andar com a identidade no bolso, porque daí saberiam quem ele era, de onde ele vinha e quem era a mãe dele. O espaço para o nome do pai na identidade estava em branco.

Pela janela ele via os campos que se estendiam para além de onde a vista alcançava; plantações de arroz, gado pastando, árvores solitárias nos descampados, pequenos lagos de espelho azul marinho e muitas outras coisas que ele nunca tinha visto antes e não sabia o nome. A paisagem foi mudando quando a pista dobrou de tamanho, mais carros apareceram e os campos deram lugar a barracões de empresas. No horizonte surgiram os prédios, e as árvores e campos rarearam.

Ele desceu do ônibus e entrou na primeira lanchonete que encontrou na rodoviária.

– Quero trabalhar. – Respondeu, quando a moça que o atendeu perguntou o que ele queria.

– Não temos trabalho aqui, não. – Disse rindo o homem que estava no caixa. – Mas temos pastel, refrigerante, lanches.

– Quero uma torrada, então. – Estava com fome.

Entrou em outros lugares da rodoviária. Ninguém tinha serviço para ele. Alguém estranhou a presença daquele indivíduo pedindo emprego nas lanchonetes da rodoviária e comunicou aos guardas e à assistente social. O guarda foi atrás dele, mas quando o avistou, ele já atingia o outro lado da rua.

No ponto mais alto da passarela olhou para o alto, para a frente, para os lados. Se ali não havia serviço, tudo bem. Numa cidade como aquela, com todos esses lugares por ali, algum deles deveria dar alguma coisa para ele fazer.

Hiato na atualização do blogue

Oi, pessoal. O blogue andou meio paralisado nas últimas semanas porque eu estava me preparando para prestar um concurso público. O concurso ocorreu nessa semana e fui aprovado. Se tudo correr bem, devo ser contratado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul pela metade do ano pra começar a dar aulas no segundo semestre. Concursos públicos para professor adjunto sempre envolvem muitas etapas, a gente precisa estudar coisas que normalmente não estuda e que também normalmente não ensina. Tudo correu bem e, consideradas as quatro etapas, prova escrita, avaliação de títulos, defesa da produção intelectual e prova didática, fui o melhor classificado. Agora é um novo desafio que começa. Trabalhar em uma grande universidade foi um sonho recente. Quando se está na graduação, fazer um mestrado ou doutorado são sonhos longínquos, de tão distantes e irreais. De repente a gente se vê defendendo o mestrado, entrando para um doutorado, indo para o exterior fazer um estágio e quando vê está defendo uma tese. Não sei se sou um bom linguista (possivelmente apenas mediano), muito menos um bom professor (eu me esforço), mas a minha contribuição para os estudos sobre o português e em semântica de um modo geral é a comunidade acadêmica quem decide.