Chegou em casa. Tio Valdemar, Tia Filomena e o primo Nelson viam televisão. Soltou a notícia no meio da sala. Riram. Nelson o chamou de louco.
– Eu não sou louco. – Esbravejou, batendo com o pé no chão, punho fechado. – Vou embora pra Porto Alegre sim!
Ele tinha visto na televisão. Em Porto Alegre havia empregos. As pessoas como ele trabalhavam em mercados, farmácias, andavam de ônibus, de bicicleta, brincavam nas praças. Ficasse ali, passaria o resto da vida indo naquele lugar chato, com professoras que não gostavam dele; nem a comida era boa, pelo menos isso fosse o caso, mas não era.
Era uma segunda-feira do mês de maio. O vento lambia campos e orelhas com sua língua fria. Agasalhou-se bem, como a mãe sempre lhe pedia, gorro na cabeça e cachecol de tricô no pescoço. Arrumou sua trouxa, e como naqueles desenhos do Pato Donald, colocou o saco na ponta do cabo de uma vassoura e foi em direção à rodoviária. Leu “Porto Alegre” no guichê e foi até lá.
– Quero uma passagem pra Porto Alegre. – Falou decidido.
– E tua mãe sabe disso, guri? – O caixa o olhou meio de lado.
– Sou de maior, faço o que quiser. – Respondeu, mostrando a identidade para o rapaz, que examinou-a, não acreditando no que estava lendo.
– É quarenta reais. Você tem esse dinheiro?
– Tenho. – Tirou do bolso várias notas de dez. Contou e entregou as notas para o rapaz. Para sua surpresa, o dinheiro estava certo. Vendeu-lhe a passagem e desejou-lhe boa sorte. Não era problema seu se um guri como aquele queria ir a Porto Alegre sozinho.
– O ônibus sai meio-dia e meia, não vai se atrasar, hein? – Avisou-lhe.
– Vou ficar aqui esperando.
Sentou-se no banco do saguão da pequena rodoviária e ficou vendo a televisão que estava ligada num daqueles programas matinais. Ele preferia que estivesse passando desenho. A televisão estava presa muito alta na parede, senão poderia mudar o canal e achar um em que estivesse passando algum desenho. No outro canto da rodoviária um grupo de índios dormia no chão, enrolados em trapos e abrigados do vento pelos cestos e balaios que faziam para vender.
A meio-dia dirigiu-se para a área de embarque. Havia espaço para quatro ônibus estacionarem ao mesmo tempo, mas não havia nenhum ainda. Sentou-se num banco que havia por ali. Pegou uma banana, que havia colocado na sua trouxa, caso lhe desse fome, e ficou mastigando com sua dentadura frouxa. Ia perder o almoço. A tia Filomena ia fazer purê de batatas e frango de panela no almoço. Como não sabia disso, ficou se perguntando o que teria em casa para comer. Fazia tempo que não comia uma polenta com molho.
Em casa a tia Filomena pensava que ele estaria andando pela cidade, como sempre fazia. O primo confirmou dizendo que o havia visto com uma sacola por volta das nove horas. Não se preocuparam, pois vivia pela rua e às vezes almoçava na casa de Ernesto, às vezes no Vanin. Até a velha Cida dava almoço pra ele também, quando ele por acaso passasse por lá e a visse tomando chimarrão na varanda ou arrancando os matinhos dos canteiros de flores do jardim. Ele gostava de ajudar a velha e se apoitava por ali durante o dia. Dali a pouco ele apareceria de volta, como sempre fazia. Ninguém considerou por muito tempo o fato de ele estar carregando um saco. Nelson se interrogou sobre o que ele levaria dentro, mas logo pensou noutra coisa e se esqueceu do primo doido.
Os passageiros surgiram assim que o ônibus estacionou.
– Mas que tal? Tu vai pra Porto Alegre também, guri? – Perguntou o seu Inácio, que o conhecia desde que nascera e que estava indo para a capital visitar o neto que tinha nascido.
– Me vou mesmo. Vou arrumar serviço. Trazer dinheiro pra tia.
“Que loucura desse guri”, pensou consigo Inácio e conferiu se a passagem ainda estava no bolso.
Seu Inácio embarcou. O guri ficou observando os passageiros com os olhos de quem estuda. Mais pessoas chegaram e uma fila de dez pessoas formou-se para colocar a bagagem debaixo do ônibus. Eles deixavam a bagagem ali e entravam em outra fila, agora para entrar. Ele só tinha sua trouxa. Viu que pessoas com bolsas pequenas não as colocavam ali embaixo. Elas tinham a identidade e a passagem na mão e dirigiam-se para a segunda fila diretamente. Pegou a sua passagem. A mãe dizia que era para ele sempre andar com a identidade no bolso, porque daí saberiam quem ele era, de onde ele vinha e quem era a mãe dele. O espaço para o nome do pai na identidade estava em branco.
Pela janela ele via os campos que se estendiam para além de onde a vista alcançava; plantações de arroz, gado pastando, árvores solitárias nos descampados, pequenos lagos de espelho azul marinho e muitas outras coisas que ele nunca tinha visto antes e não sabia o nome. A paisagem foi mudando quando a pista dobrou de tamanho, mais carros apareceram e os campos deram lugar a barracões de empresas. No horizonte surgiram os prédios, e as árvores e campos rarearam.
Ele desceu do ônibus e entrou na primeira lanchonete que encontrou na rodoviária.
– Quero trabalhar. – Respondeu, quando a moça que o atendeu perguntou o que ele queria.
– Não temos trabalho aqui, não. – Disse rindo o homem que estava no caixa. – Mas temos pastel, refrigerante, lanches.
– Quero uma torrada, então. – Estava com fome.
Entrou em outros lugares da rodoviária. Ninguém tinha serviço para ele. Alguém estranhou a presença daquele indivíduo pedindo emprego nas lanchonetes da rodoviária e comunicou aos guardas e à assistente social. O guarda foi atrás dele, mas quando o avistou, ele já atingia o outro lado da rua.
No ponto mais alto da passarela olhou para o alto, para a frente, para os lados. Se ali não havia serviço, tudo bem. Numa cidade como aquela, com todos esses lugares por ali, algum deles deveria dar alguma coisa para ele fazer.