Latim em pó

O português que falamos no Brasil, ou o português brasileiro, tem um jeitão diferente do português europeu. Podemos nos perguntar por que ele tem essa “cara”, por que falamos do jeito que falamos, por que é diferente do português d’além mar. A resposta para essa pergunta só pode vir do estudo da História, e da história da própria linguagem, daquelas forças que agem para que as línguas mudem. O livro recém lançado de Caetano Galindo, Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras), narra essa aventura, emprestando o título da obra de outro Caetano, o Veloso, da canção Língua.
Caetano Galindo é professor do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade Federal do Paraná, é escritor e tradutor de James Joyce, Tomas Pynchon, e David Foster Wallace, entre outros escritores. Toda a sua experiência como professor de linguística histórica (e também como artífice da palavra) está no livro. Sua habilidade em explicar (ou descomplicar?), pode ser atestada em cada página em que apresenta grandes teses que mudaram nossa compreensão do funcionamento da linguagem e do próprio português. Esse é o grande mérito dos bons livros de divulgação. Nesse aspecto, ler o livro não é apenas uma experiência de adquirir conhecimento, é também fruir uma história bem contada. Tenho certeza de que para o leigo será um agradável passeio, não apenas pela paisagem, mas também pela sintaxe adorável do guia. Além da introdução e da conclusão, são dezessete capítulos, que passam tão rápido que, quando vemos, já se acabaram. Caetano tem grandes poderes, e sabe usá-los com responsabilidade.
São dezessete porque a história é longa e há vários temas paralelos que acabam se aproximando. Assim, ele opta por começar a viagem partindo não do desembarque da língua nessas terras com Pedro Álvares Cabral e sua turma, mas partindo da história do latim. Uma história que em si poderia ser contada em outro passeio.
Alguns capítulos nos apresentam teses básicas da linguística, como a constatação de que todas as línguas mudam, de que todas variam no espaço e no tempo, de que as línguas podem interferir umas nas outras etc.; também desconstrói uma tese em particular sobre o português, a de que seria uma língua difícil. Os mitos sobre a linguagem em geral e sobre o português em particular são como insetos no campo. Por mais que a gente mate um, em pouco tempo aparece outro que precisará sem combatido da mesma forma. Se nem a astronomia está livre desses retornos (olha o povo da terra redonda por aí fazendo furdunço), quem dirá nós, meros estudiosos da linguagem que todos os anos precisamos convencer os calouros dos cursos de Letras de que não existe língua mais difícil que a outra, que as línguas não se degeneram, que os jovens não estão matando a bela língua do Padre Antônio Vieira e que hoje em dia ninguém mais sabe escrever…
Assim, a história começa com os romanos e seu império. Por isso ela demora um pouco para chegar até nós, um dos poucos defeitos do livro. Mas é necessário desenrolar essa cantilena, pois ela ilustra uma constante da história humana, e consequentemente, das línguas: o contato e a troca. Além de terem subjugado e dominado boa parcela do mundo da sua época, os romanos conseguiram a proeza de impor sua língua aos povos dominados, especialmente na Europa.
Como vemos até hoje, quando há comércio e troca cultural, também há troca linguística. Não é preciso ser um otaku pra saber o que é anime, sushi, sashimi, temaki e pra ter visto Jaspion ou Meu vizinho Totoro. Isso que o Japão está lá do outro lado do globo! Imagine o que aconteceu quando os romanos chegaram na península Ibérica ou na Gália? Com o contato, trocamos objetos, costumes, crenças e também as palavras. Essa troca é o que mais nos salta aos olhos, óbvio. Mas uma das grandes questões atuais é como esses contatos influenciam áreas mais profundas da gramática das línguas. Poderia mudar o sistema sonoro, a forma como conjugamos verbos, como colocamos pronomes, como construímos orações?
Aparentemente sim. Mas não pense que os romanos enviaram professores de latim bem treinados e munidos com métodos avançados de ensino de idiomas. Os enviados às províncias eram (geralmente) soldados, colonos e baixos funcionários da máquina imperialista. Ou seja, indivíduos de estratos sociais baixos. E o latim que elas levavam não era o que hoje se chama latim clássico, mas um latim popular, o latim do vulgo, o latim vulgar.
Algo similar ocorreu quando as caravelas de Cabral baixaram a âncora no litoral brasileiro. A história do português por essas bandas vai se confundir inevitavelmente com a nossa história. O contato do português com as línguas dos indígenas e dos africanos escravizados vai mudar a cara do idioma. Caetano aponta em vários momentos que esses contatos não geram consequência apenas no plano do vocabulário (na toponímia e nos nomes da flora e fauna). Essa é uma pergunta interessante que o livro explora: até que ponto o contato do português com as línguas indígenas e africanas foi capaz de mudar o português? Essa nossa tendência a formar sílabas com a estrutura consoante-vogal, eliminando encontros consonantais, seria um indício dessa influência, como nas palavras pneu, que pronunciamos “peneu”? A marcação de concordância nominal apenas no primeiro elemento da expressão, como em os menino, as pessoa seria outro?
Como o autor diz logo de cara, o livro não é uma história aprofundada, mas um passeio pelas etapas históricas de formação da nossa língua. Como o assunto é bom, e o guia experiente, falo com tranquilidade que vale a viagem.

Publicado no Jornal Caiçara, 04/03/2023 (https://jcaicara.com.br/2023/03/04/latim-em-po/)

O trânsito das palavras

Eu estava lendo esse texto sobre alguns vocábulos do dialeto caipira que estão caindo em desuso no interior de São Paulo e percebi que eu conheço todas aquelas palavras. Sou nascido no oeste catarinense e vivi da pré-adolescência até os vinte e dois anos em União da Vitória, no sul do Paraná, que fica numa das rotas usadas por tropeiros.

Os tropeiros saíam do Rio Grande do Sul e iam para São Paulo levar gado e charque e de lá traziam vários itens, inclusive correspondências. As BRs 116 e 153 que ligam o Rio Grande do Sul a São Paulo e Paraná praticamente reproduzem esse caminho. Esse movimento durou até segunda década do século XX, com a ampliação e pleno funcionamento da rede ferroviária no sul do país.

União da Vitória tem uma pronúncia do erre um tanto puxada, um retroflexo. Também é bem fácil encontrar outras marcas do dialeto caipira na fala de moradores mais antigos com baixa escolaridade (‘nóis imo’, ‘nóis fumo’, ‘nóis fazimo’ etc.) – com a ressalva de que muitas características morfossintáticas do caipirês são encontradas amplamente na fala de indivíduos com pouca escolaridade no país todo.

Outro traço é o vocabulário. Das palavras que a pesquisa cita, conheço todas: bucho, lombo, goela, beiço, anca, munheca, viúva (no sentido de ‘terçol’); e suas derivadas: se esgoelar (“gritar muito alto”), desbeiçado (“destruído, mutilado”), desancar (“maltratar”), desmunhecar (“quebrar o pulso metaforicamente, ou seja, virar a mão como os homossexuais fazem”). Me senti um caipira. Pelo relato da pesquisa, entendi que a lista pesquisada envolve somente a lista citada no texto. Não há menção ao fato de que essas palavras são parte do vocabulário de boa parte do sul do país e suponho que essas palavras tenham viajado por essa região no lombo dos tropeiros.

O prazer das palavras, Cláudio Moreno

Confesso que durante minha jornada em Porto Alegre virei fã de Cláudio Moreno (e de outros personagens ilustres das letras gaúchas, como o Assis Brasil, o Luís Augusto Fischer e o Paulo Coimbra Guedes). Eu tinha já há algum tempo o Prazer das palavras vol. 2 (L&PM, 2008) e resolvi ler por esses dias, motivado (um tanto) por estar ministrando a disciplina de Morfologia neste semestre, disciplina em que vez ou outra considerações de etimologia nos assaltam durante a aula.

Os textos sobre etimologia são ótimos e bem fundamentados e sua paixão pelos dicionários é contagiante.

Eventualmente ele escorrega para dogmatismos normatizantes, embora afirme repetidamente (pelo caráter de os textos terem sido originalmente publicados separadamente) que a língua é como um rio, que, mesmo contido pelas margens, segue a marcha inevitável do seu curso natural.

Dou exemplos disso:

“…não tem razão aqueles que insistem em defender a existência de uma ‘língua brasileira’.”

Em um dos textos, Formidável, em que lucidamente explica que o gênero dos substantivos pode mudar com o tempo, o caso analisado é o de grama, que tem sido usado no feminino tanto para se referir à planta quando à unidade de medida (cujo uso tradicional é masculino), Moreno cita um leitor que o critica por subscrever ou aceitar como naturais essas mudanças, que para o leitor não passaria de adesão demagógica. O leitor também teme que Moreno aceite como legítimas formas como nós vai ou menas gente. O professor, então, se defende:

“Com relação a “*menas gente” e o “*nós vai”, deixe de ser exagerado; reconhecer uma hesitação no gênero de certas palavras – fenômeno corriqueiro em nossa língua – não implica aceitar flexões que contrariam as leis intrínsecas do idioma“. (p. 212)

Os asteriscos são do autor. O negrito é meu.

Falando de língua nos tempos do Youtube

Me impressiona que depois de tudo que a gente aprendeu sobre o texto/discurso e o funcionamento da língua na sociedade ainda surgem canais que utilizam as novas tecnologias de relação pessoal ou entretenimento (Youtube, Facebook, Twitter, Instagram) para falar de língua usando a caduca forma da gramática tradicional: a unidade de análise é sempre a palavra, a explicação auto contida (é assim porque é assim), e os fenômenos não ultrapassam os limites do certo/errado e aspectos tradicionais: ortografia, pontuação, regência, concordância, colocação de pronomes etc.

Além disso, por que ainda se fala dessas coisas? Por que alguém que passou 12, 13 anos na escola ainda precisa que alguém explique para ele a diferença entre mais/mas? Nessa altura da vida eu acho que um estudante já devia estar cansado de ouvir falar disso. Ontem, no Fantástico, vários professores falaram sobre a redação do ENEM. As dicas eram as tradicionais. Os critérios de avaliação mudaram, mas a cabeça do professor não. As dicas se resumiam em: cuidado com a gramática (entendida como aquela lista do final do primeiro parágrafo).

Supondo que as pessoas que se dedicam a esse trabalho são bem intencionadas, aprenderam na universidade que a língua vai além da palavra e da oração, que precisamos superar o velho ensino normativista com outras estratégias de ensino de gramática, que os usos linguísticos não podem ser avaliados pela régua do certo/errado etc. (perdoem essa subordinada gigantesca), tenho duas teorias pra explicar esse fenômeno: i) é o que dá pra fazer nesses recursos; b) é o mais fácil.

Se quero dar dicas para as pessoas escreverem melhor e divulgar isso através das redes sociais, posso gravar um vídeo curto (vídeos longos são chatos e acabam virando aulas), ou produzir um meme (uma imagem com texto). O que é mais prático de discutir numa foto para colocar no Instagram, a diferença entre os porquês ou a estrutura da relativa introduzida por preposição? Falar da diferença entre mas/mais ou de problemas de paralelismo semântico/sintático?

Falar de problemas textuais demanda tempo e espaço. Eu diria que é impossível mesmo falar disso numa imagem ou num vídeo de 30seg.

É mais fácil falar da palavra, embora eu creia que é uma facilidade enganadora. Explicar que mas é substituível por porém, e é conjunção adversativa, enquanto o mais é substituível por menos e é advérbio de comparação é uma explicação rápida e adequada. Mas seria efetiva? Isto é, depois de ouvir essa explicação o sujeito que a aprendeu (supondo que tenha aprendido) vai saber utilizá-la para avaliar a sua própria escrita? Eu acho que não, se ao longo da vida escolar o indivíduo não entendeu a escrita como um processo de organização de ideias, que precisa passar por vários estágios de formulação, reformulação e reescrita. Entendo que no vestibular ou num concurso público ele vai ter tempo para fazer apenas uma versão, reler, melhorar o que der pra melhorar nesse curto espaço de tempo, e passar a limpo a versão final.

Se ele foi apresentado a estratégias de autocorreção, de reescrita, de reformulação, de leitura do próprio texto, de estratégias argumentativas, de organização do parágrafo e do texto, e assim por diante, esse processo vai ser simples e indolor. Escrever, para esse estudante, não é preencher as 20 linhas o mais rápido possível para se livrar logo da tarefa, cuidando para não confundir o mas/mais ou errar a grafia do porquê.

Esse tipo de pedagogia da escrita, de culto ao “não erre mais”, “evite isso ou aquilo”, não vê o uso da língua do ponto de vista do seu papel interacional. O uso da língua escrita é só uma tarefa burocrática que o aluno precisa cumprir para chegar em algum lugar: na próxima série, na universidade, no emprego público etc. Não escrevo porque tenho algo a dizer, escrevo para me livrar da tarefa. Assim, a visão que se cria da escrita fica confinada à higienização do texto. Escrever bem é colocar pontos, vírgulas e acentos no lugar, não confundir o por que com o porque ou assento com acento etc. Não é “de varde” que estudar português  é um saco mesmo.

Um exemplo de dicas que supõe que a redação é encher linguiça: https://www.youtube.com/watch?v=rdf2AZ2Ss2c

Um exemplo, do mesmo canal, que dá dicas boas, embora as textuais de fato sejam poucas (como o uso dos textos motivadores; evitar generalizações, evitar clichês e ditados populares etc.): https://www.youtube.com/watch?v=Md5ymGUwZ2s

Quem decide se uma pronúncia existe?

Um dos negócios mais difíceis de colocar na cabeça das pessoas é que não tem um valor intrínseco nas formas linguísticas. Mortadela não é mais correto que mortandela como uma verdade absoluta inquestionável. Depende, essencialmente, do valor que o grupo de falantes da língua dá praquela forma.

“Uma variedade linguística “vale” o que “valem” na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais”. É o que disse o italiano Maurizzio Gnerre em um livrinho clássico chamado Linguagem, escrita e poder (Martins Fontes, 1985). Isso quer dizer que quando temos opções na língua, quando vemos grupos sociais utilizando formas distintas, é inevitável que se atribuam valores sociais àquelas formas. Assim, mortandela não é errada em si mesma, é errada porque um grupo de falantes usa essa forma, e esses falantes normalmente são pouco escolarizados. Mortadela é a forma correta porque é a forma registrada nos dicionários e está associada à escrita, pois é a forma que as classes escolarizadas utilizam.

Na semana passada um médico tentou tirar um sarro de uma paciente que falou peleumonia e raôxis (se você não sabe do que eu estou falando, clica aqui). Por que tem gente que acha engraçado o falar diferente? Por que Framengo, praca e adevogado são pronúncias engraçadas?

Já se falou em preconceito linguístico e preconceito social. Rio dessas formas porque não gosto da classe social que as utiliza, e a fala é uma forma de eu criticar ou manifestar meu desprezo. Posso desprezar outros produtos culturais de uma classe social, como a sua música, a sua dança, sua produção escrita, seu vestuário etc. Falar de sexo numa letra do AC/DC não tem problema, mas num funk tem.

Isso tudo fica um pouco mascarado porque tem toda uma complexa rede de instituições que atuam para criar o que se chama de Norma Padrão. Como qualquer língua humana é intrinsecamente variável, isto é, varia na pronúncia, na forma das palavras, na aplicação das regras, no vocabulário, historicamente se cultiva uma variedade que aos poucos vai se tornando limpa, digamos assim, de regionalismos. As instituições que atuam no cultivo dessa norma são a escola, os gramáticos, os dicionários, a imprensa, os intelectuais, ou seja, a própria sociedade. São esses atores que controlam o que é e o que não é português. E esse controle se baseia principalmente na associação à escrita (se a pronúncia é mais próxima da escrita é mais correta), ou no valor do grupo social que usa a forma. É o caipira que fala poRta (usando o erre retroflexo), ou o colono do interior da região sul que usa o erre fraco (o tepe) onde o resto do Brasil usa o erre forte (o vibrante), em palavras como rato, serra etc.

Assumir que mortandela e peleumonia existem seria o mesmo que dizer que a minha língua vale tanto quanto a dele. Isso quer dizer que já não sou mais tão especial assim, que minha língua não é mais expressiva e clara que a da minha empregada. E esse pensamento assusta algumas pessoas.

Tchau, plural!

Como é que um plural morre? O Leandro Karnal afirmou no Roda Viva nessa segunda-feira que o plural vai desaparecer. Volta e meia algum gramático ou gramatiqueiro desavisado afirma a mesma lorota, pintada com tintas de erudição, como se fosse um profeta anunciando a chegada do desastre. Na verdade a pergunta poderia ser mais ampla: é possível uma língua perder uma categoria gramatical?

A pergunta geral é difícil de responder, mas o que a história das línguas nos mostra é que perder uma propriedade gramatical acarreta, normalmente, que a tarefa exercida por um elemento seja tomada por outro. Um exemplo. Tem pesquisador brasileiro afirmando que o enfraquecimento da concordância verbal está obrigando que pronunciemos o sujeito. Antes tínhamos uma forma verbal para cada pessoa gramatical (eu sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são). Agora o quadro é outro (eu sou, tu/você/ele/a gente é, nós somos, eles são). Reparem que de seis formas o paradigma se reduziu a quatro, pelo menos no português brasileiro culto falado pela população urbana escolarizada*. Qualquer gramática brasileira honesta vai mostrar isso. A conclusão: como antes o verbo permitia identificar o sujeito gramatical, dava pra ocultá-lo, mas como agora não é mais possível, o jeito é expressar o sujeito lexicalmente.

Quando se fala que o plural está desaparecendo, eu acredito que o camarada tem em mente a regra padrão de formação do plural no sintagma nominal (cf. os meninos espertos) em contraste com o plural coloquial (cf. os menino esperto)**. Em um post de meses atrás eu comparei as duas regras como se fossem hipóteses sobre o funcionamento da expressão gramatical do plural no português do Brasil. Olhando para o fenômeno, é fácil perceber que o plural não está sumindo (nenhum linguista diria isso). A língua continua tendo disponível a expressão semântica do número plural, isto é, quero fazer referência a um conjunto de entidades no mundo e a cardinalidade desse conjunto é maior do que 1, ou é maior ou igual a dois (supondo que seja isso que o plural signifique, em termos simplistas). A diferença é que na variedade padrão o plural é marcado morficamente em todos os elementos do sintagma, isto é, em todos os elementos ligados estruturalmente ao substantivo eu vou ter um pedaço desse elemento que vai me dizer, ei, eu estou no plural (os meninos espertos), já na variedade coloquial basta que eu tenha o plural morfológico no primeiro elemento do sintagma, que nenhum falante vai interpretar que os menino esperto designa um e apenas um menino, que é o que o singular definido refere, cf. O menino esperto comeu o brigadeiro antes da gente cantar o parabéns.

Dizer que uma variedade é inexpressiva ou incapaz de sutilezas gramaticais que a outra é capaz (como os gramáticos normalmente afirmam, sem demonstrar, vocês estão ligados, né?) é de uma canalhice e desonestidade intelectual digna de banimento pra Sibéria. A categoria do número está ali, tanto numa variedade quanto na outra. As duas descrevem o mesmo estado de coisas no mundo, isto é, uma frase como Os meninos espertos comeram todos os brigadeiros expressa o mesmo, ou, é verdade exatamente na mesma situação em que Os menino esperto comero os brigadeiro tudo é. Claro, o fato de uma ser a correta e a outra errada tem a ver com fatores históricos, culturais e ideológicos, não linguísticos. Uma é a correta por que é usando ela que se escreveu os Lusíadas, o Viagens da Minha Terra, o Primo Basílio, o Quincas Borba, a Constituição da República, e assim por diante. Tem a ver com o valor que a sociedade dá praquela forma gramatical, não com a sua capacidade maior ou menor de expressar a noção gramatical de plural.

Isso qualquer gramático sabe (mas não conta). Mas isso seria admitir que mesmo variedades não-padrão também são aptas para a expressão cultural e intelectual, o que daí já é avacalhação, né? Dizer que dá pra fazer filosofia e literatura com português de pobre é um negócio que eles não concebem.

*Notem que com verbos regulares e em algumas classes sociais esse paradigma flexional pode se reduzir ainda mais: eu falo, tu/você/ele/a gente/nós/eles fala.

** Tá, o sociolinguista aí mais bem informado que eu pode estar dizendo “plural coloquial” não é a melhor forma de caracterizar o fenômeno. Tá, não é, mas fiquemos com essa denominação para os fins desse texto.

* * *

Nota final. O Karnal também prevê a morte do subjuntivo e da subordinação. A mesma coisa. Uma língua sem subjuntivo seria uma língua sem capacidade de expressar hipótese. Se a língua já tem essa capacidade, porque deixaria de ter? E, de modo geral, será que tem alguma língua humana por aí que fale apenas factualmente? Eu duvido.

Sobre a subordinação o Chomsky já mostrou pra gente que não existe língua humana sem algum tipo de subordinação (não dá pra ter função sintática sem subordinação) – tá, o D. Everett afirmou que o Pirahã seria uma língua sem subordinação, o que já foi contestado por um bocado de gente. Outra viagem na batata é acreditar que uma oração é mais complexa por ser subordinada em relação a outra coordenada.  Complexidade gramatical não indica complexidade cognitiva, ou seja, um pensamento não é mais complexo por ser expresso por uma coordenação, em relação ao mesmo pensamento expresso por uma sentença com subordinação interna. Claro que isso precisaria ser melhor explorado, mas vou parar por aqui, porque esse assunto daria outro texto.

Ah, e o fato de um sujeito inteligente como ele não saber isso só demonstra a incapacidade dos linguistas se fazerem ouvir pela sociedade. Ele desconhece o que seus colegas de universidade pensam e ensinam ali do outro lado da rua.

Colocação pronominal

Por que é que mesmo depois de tanto tempo de escola e leitura as pessoas não usam o português padrão? Isto é, por que é que mesmo depois de aprender as regras do escrever ‘certo’, continuam a escrever o ‘errado’? Essa é uma pergunta que muita gente já se fez, e que está por detrás de um pouco do insucesso do ensino de língua na escola. Se as pessoas saíssem de lá escrevendo com clareza, coesão etc., alguns pronomes mal colocados seria o de menos (mas em geral, os problemas aparecem em blocos cf. Pécora, Problemas de redação).

Vamos partir do melhor dos mundos. Em algum momento na vida de estudante, o aluno foi apresentado a uma regra do tipo: não se usa pronome do caso reto na posição de objeto direto. Ou, talvez o aluno tenha sido apresentado a uma Gramática, como a de Faraco, Moura e Maruxo (Ática, 2012), que traz exemplos de escritores do séc. XX que usam formas retas no lugar das oblíquas.

(1) Se esse homem me ferir ou me matar podem deixar ele ir embora em paz. (Érico Veríssimo).

Os autores da gramática notam que esse uso é uma infração à Norma Padrão, mas que ele está incorporado à literatura. Creio que para afirmarmos que ele está incorporado à literatura precisaríamos de um suporte estatístico. Um gramático mais conservador diria que esses exemplos são poucos, esparsos, e que na maioria dos casos os escritores usam a forma padrão. E isso ainda precisaria ser melhor especificado: estamos falando da representação da fala de um personagem ou da voz do narrador, e esse narrador é uma primeira ou terceira pessoa, e de que origem social?

Mas voltemos à pergunta inicial. Uma das respostas, suponho, é a diferença entre a Norma Culta e a Norma Padrão. Explico: a língua que os usuários cultos utilizam é diferente da língua que esses mesmos usuários cultos professam como ideal. A colocação de pronomes é só apenas uma dessas diferenças.

Vejamos alguns exemplos de oscilação entre o uso das formas tônicas (retas) e das formas átonas (oblíquas) do pronome de terceira pessoa.

O trecho abaixo foi retirado daqui, um conto de Gustavo Machado. O autor

Ver no Medium.com

“Armo uma arapuca pra prender ele. […] O ratão deve estar acostumado a fuçar no lixo dali, fica zanzando sem medo e cai de primeira. Guardo-o num saco de pano. Então, passo a montar a arapuca regularmente e, sempre que consigo apanhá-lo…”

Tenho uma filha de dois anos. E como ela anda viciada em Peppa, tenho visto pelo menos uma hora desse desenho todos os dias. Na maioria dos episódios os objetos diretos pronominais são preenchidos por pronomes tônicos (por todos os personagens). Mas em alguns os pronomes escolhidos são as formas átonas. Pra um ouvido menos atento creio que isso não cause ruído algum. Só que convenhamos, soa bem estranho uma criança de cinco anos (estou supondo que seja essa a idade da Peppa) diga algo como: Vou pegá-la para você. Como comparação, a tradução de Peanuts, na edição completa da L&PM, optou por traduzir sistematicamente os pronomes pelas formas retas. Todos os personagens são crianças (menos o Snoopy e o Woodstock, claro). Logo, soaria bem estranho que essas crianças falassem um português que nem as pessoas adultas falam.

Tá. Admito que a literatura, ou pelo menos alguns autores, talvez ainda tenham um sentimento de ‘preservação do patrimônio linguístico’ (ou algo parecido). Por isso a preocupação em seguir com o ideal de expressão ditado pela gramática tradicional (autores jovens são mais permissivos ao coloquial). Os exemplos de variação nos mostram que os usuários contemporâneos são inseguros nesse uso. Nesse caso específico, a Norma Culta (o uso linguístico dos falantes com ensino superior completo) autoriza o uso de forma tônicas de terceira pessoa como objeto direto; enquanto a Norma Padrão repudia esse uso, privilegiando as formas átonas.

O fato é que o vernáculo dos falantes de português tem uma norma, enquanto o que aprenderam na escola e o que leem nos textos formais é outra norma. Não sei se o que afirmam os autores da Gramática é totalmente correto. Ainda tenho a impressão que o uso das formas padrão é mais frequente que o uso das formas não-padrão na literatura brasileira contemporânea (ou mesmo no jornalismo e na escrita técnica). O que só nos mostra que os usuários da língua não veem esse uso como erro, a menos que estejam com os ouvidos e olhos atentos a ele.

Cadê a nossa boa e velha crônica?

Lendo João do Rio, me pego pensando nessa coisa gostosa que é a crônica, esse texto que tá ali entre o conto e a poesia, entre a realidade e a ficção, entre a hipótese e a certeza. Tivemos Rubem Braga, Sérgio Porto (ou Stanislaw Ponte Preta), Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues (esse lazarento que escrevia de tudo e fazia tudo muito bem), Luis Fernando Veríssimo (o últimos dos grandes cronistas?); sem contar um outro time que atacava de cronista também pra pagar as contas: Drummond, Clarice, Cecília Meireles…

Devo andar lendo as pessoas erradas…

Ou vai ver que o mundo em que a gente vive seja tão maluco ao ponto de a imaginação não ter mais graça, e a graça toda esteja em inventar distopias, fantasias medievais, super-heróis com poderes inusitados e por aí afora. Ou a gente ficou careta? Vai ver que a tragédia grega que Nelson Rodrigues enxergava na violência cotidiana não comove mais ninguém.

* * *

João do Rio (um desses iluminados que sabiam colher da vida a sua graça), numa crônica sobre as tabuletas dos estabelecimentos comerciais do Rio:

“…encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, já pintara ‘vendem-se móveis’ quando o negociante veio a ele:

– Você está maluco ou a mangar comigo!

– Por quê?

– Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se… Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!” (A alma encantadora das ruas, p. 101).

A sabedoria popular que os gramáticos tendem em não ouvir…

Colocação pronominal: ainda o ‘lhe’

Desde a publicação do post sobre o lhe acabei tropeçando em outros usos desse pronome.

O primeiro é interessante por mostrar que esse pronome também é usado como segunda pessoa, e não apenas como terceira, como eu tinha dito.

(1) Era exatamente o que eu procurava! Lhe dou 10 mil cruzeiros por ele! (clica aqui)

Marcos Bagno (Gramática Pedagógica do Português, Brasileiro, Parábola, p. 765) afirma que esse uso de lhe é regionalizado. Talvez fosse esse uso do lhe que o camarada citado no post anterior tinha em mente ao falar do seu uso por um personagem nordestino de novela.

Além disso, encontrei no ‘Gran cabaret demenzial’, de Veronica Stigger (Cosac Naif, 2007) os seguintes usos do pronome. Na medida em que a obra literária exemplifica o uso culto da nossa época, já que, na minha leitura, ela não constrói um narrador que se vale de formas coloquiais.

(2) Quando ela vinha lhe acordar, ele sempre dava-lhe um tremendo susto.” (p. 37)

(3) Rodolfo correu para socorrer Bianca e foi barrado por um dos fios de náilon estendidos no pátio, que lhe rasgou o terno, a camisa e lhe arranhou a pele. (p. 78)

As sentenças em (2) e (3) apresentam quatro usos de lhe. O verbo dar representa o uso canônico. Mas, de acordo com a minha intuição e com o Dicionário Aurélio, acordar, rasgar e arranhar são transitivos diretos. Em arranhar e acordar o objeto é paciente. Em rasgar, apesar de ser TD, o que parece estar sendo pronominalizado é um adjunto adnominal [cf. rasgou o terno dele] e não um objeto beneficiário (o que poderia justificar o uso do pronome pelo viés semântico).

Os dois exemplos que temos abaixo mostram a insegurança dos usuários dessa forma, pois no mesmo texto o verbo penetrar é usado como se tivesse duas regências diferentes. Nos dois casos, o verbo está sendo usado no sentido sexual. E me parece que nesse caso o verbo possui objeto direto.

(3) A vira-lata girava em torno de si revoltada, rosnando enlouquecidamente quando o maldito lhe penetrava por trás. (p. 39)

(4) Emputecido da vida, se lançou contra a baleia-sem-cu e tentou penetrá-la, mas em vão (…). (p. 41)

Colocação pronominal: caso 1

Nesta semana falei de colocação pronominal na aula de sintaxe. Pelas leituras que fiz e por estar com o assunto na cabeça, acabei ficando com os olhos e ouvidos atentos a isso. Foi assim que encontrei o caso abaixo (tem outro, que vai ficar pra um próximo post).

Apareceu na minha timeline no Twitter a seguinte frase, uma resposta da Claro Brasil a um consumidor reclamando do serviço. “Conta pra gente por DM o que está acontecendo, ok?! Queremos lhe ajudar!” Há algumas coisas interessantes no segmento todo, mas vou focalizar apenas no pronome. Talvez ele passe despercebido para a maioria dos falantes. Mas ele é um típico caso de uso inadequado do pronome lhe (pelo menos se levarmos à risca os gramáticos normativos). Essa forma oblíqua do pronome de terceira pessoa deveria ocorrer apenas para substituir objetos indiretos. Paguei a dívida ao João/Paguei-lhe a dívida (exemplo de Cegalla, 1985). A forma que o pronome de terceira pessoa assume como objeto direto é o (e suas variantes no/lo e respectivas flexões de gênero e número – nunca entendi porque se listam as variações flexionais). O problema é que tal forma do pronome de terceira pessoa já não existe mais no português vernacular, isto é, não é português brasileiro coloquial, e isso em todas as classes sociais e rincões pelo menos é a minha impressão. Talvez lá nos corredores da ABL ainda se escute um o bem empregado. Pra aprendermos o uso de o temos que ir pra escola.

Antenor Nascentes (Letras, v. 11, 1960, clica aqui) já nos anos 60 comentava o que chamou de lheismo: a tendência de se regularizar o sistema de pronomes oblíquos com o lhe tomando o lugar de o. Notem as outras pessoas, primeira e segunda, possuem apenas uma forma para o acusativo e para o dativo: me e te. Segundo ele, essa tendência se manifestou no espanhol e não era novidade na sua época. Escritores do séc. XVI usavam alguns verbos com dupla colocação. Podia-se ler no Camões Este que socorrer-lhe não queria (Lusíadas), ou em Camilo Já tinha poucos amigos que o socorressem (Serões…). No início do séc. XIX, Francisco de Morais, em ‘Epítome da gramática portuguesa’, apontava como erro as colocações eu lhe amo, eu lhe adoro, no lugar de eu o amo, eu o adoro. Se o leitor se interessar por mais exemplos, leia o texto todo. Ele tem exemplos de Machado de Assis a Guimarães Rosa.

Vejam que a explicação para o uso de lhe no lugar de o vinha de uma analogia com o aconteceu no espanhol. Talvez ele não tenha se dado conta que o que também poderia estar interferindo era a baixa frequência do uso da forma acusativa do pronome. Com o seu desaparecimento, imagino, aí já sou eu hipotetizando (e como sempre digo, alguém mais esperto já deve ter dito isso antes e melhor que eu em algum lugar), que o lhe vem conferir formalidade a uma estrutura que normalmente seria preenchida por um pronome reto: ele (e suas variantes). Como a polícia gramatical está sempre em cima desse uso (não se usa pronome do caso reto na posição de objeto), o preenchimento por lhe é o que soa mais ‘certo’ para aqueles que não dominam o uso da forma acusativa o.

Tem gente que fica irritada com esse uso (clica aqui). O autor (ou autora) do texto atribui a disseminação do lhe pelo fato de ele ser característica de fala de uma personagem nordestina da novela das oito na época, Senhora do Destino (interpretada por Suzana Vieira). Não há motivo para destempero.

Eu jogo no time do Antenor Nascentes: “Até hoje os nossos gramáticos se tem recusado a admitir êste fato da língua. A quem conhece a mentalidade retrógrada e ultraconservadora dos gramáticos o fato não parece estranho. Os que, respeitando embora os ditames razoáveis da gramática, olham para a evolução natural da língua e aceitam os fatos consumados contra os quais é inútil lutar, pensam de outro modo e admitem lhe como objeto direto. Eu pertenço a êste número”.

Pois é, Antenor, mais de 50 anos depois e ainda nossos gramáticos ainda dizem que isso é errado. Mas é só explicar pra moçada o que está acontecendo que tá tudo certo. Erar é umano. Ainda mais quando há uma lacuna considerável entre o que falamos e o que devemos utilizar em situações monitoradas (principalmente de escrita).

N.B.: Dos gramáticos que consultei, Cegalla, Cunha & Cintra, Faraco, Moura e Maruxo, nenhum faz menção ao uso de lhe como objeto direto (pelo menos se os li corretamente ou procurei nos lugares certos).