Começos

Todo começo de semestre uma sensação já familiar me assalta. Sinto que não sei mais dar aula e que vou ter que aprender de novo a planejar um semestre, organizar leituras, exercícios, datas de avaliações, que atividades são interessantes para ajudar os alunos a compreender e a assimilar os conceitos etc… Síndrome do impostor? Sei lá. Já estou há 12 anos nessa indústria vital e vai ver que a explicação seja mais simples. É só a ansiedade dos recomeços: novos alunos, novos textos para se falar de velhas questões sobre a linguagem…

Sinto essa sensação também quando vou escrever ficção. Preciso retomar anotações, dicas de escritores, manuais… como se cria um personagem, o que é um enredo, como criar pontos de vista… e assim vai. É cansativo.

Mas logo que entro de cabeça, é como andar de bicicleta de novo depois de meses sem andar. Não dá pra esquecer nem que a gente queira.

Dica de leitura: texto muito interessante sobre a voz na nossa cabeça que “lê” os textos quando fazemos leitura em silêncio.

Uma série:

A diretora (2021). Sandra Oh vive uma professora do departamento de literatura de uma universidade fictícia que é alçada ao posto de chefe e precisa lidar com os problemas dos professores, alunos e da administração. Nesse meio tempo tem que lidar com a filha, o pai, e a relação com um colega que é acusado de ser nazista após fazer o famoso gesto durante uma aula.

Sextou

Os dois últimos dias foram relativamente improdutivos. Escrevi bem pouco. Estou atrasado na preparação da minha aula de segunda-feira pela manhã.

Isso quer dizer que eu acho que não vou conseguir bater minha meta pessoal que concluir uma primeira versão de um manuscrito sobre adjetivos graduais e orações comparativas até o final do mês. Se eu não conseguir, tudo bem também, porque é um trabalho mais pessoal. Queria encerrar logo isso pra partir de uma vez pra outro projeto (esse sim mais sério, com prazo de entrega, aceito pela editora e com parceiro pra me cobrar)

É uma tentativa de colocar tudo que eu sei sobre o tema no papel. Mas na medida em que tenho feito algumas leituras e releituras novas ideias surgem e vou vendo que preciso reorganizar algumas coisas e outras é preciso deixar mais claro e dentro do espírito do livro como um todo (um livro de introdução).

Eu gosto de deixar minhas aulas prontas já ali por terça ou quarta e se for preciso ou dou uma revisada na sexta-feira. Esse é o lado ruim de dar aula na segunda, pois pra não ter que preparar aula sábado e domingo eu gosto de deixar tudo pronto com antecedência. Mas lá vou eu ter que finalizar a aula amanhã, e talvez no domingo, pois também quero corrigir o exercício da semana (senão, qual é o propósito do exercício se ele se distancia muito no tempo, né?).

Escrevendo ficção

Aproveitando o confinamento para limpar os meus arquivos digitais, resolvi tirar da gaveta algumas coisas. Reli alguns textos e ainda gosto deles. Como já tem um tanto de bobagem escrita (e mal escrita, em muitos casos) com meu nome por aí. Umas a mais, umas a menos não farão diferença.

Uma dessas coisas é um romance, que comecei a esboçar durante a oficina do Assis Brasil em 2013 e que escrevi em 2014. Voltei a ela em alguns momentos em 2015 e 2016. Até agora não me satisfaço ainda com o final. Essa é uma dificuldade que eu sinto. Não consigo gostar dos meus finais. Mesmo tendo sido a narrativa mais cerebral. Talvez falte um pouco de imaginação a ela, por isso o final não me agrada ainda. Não sei. Estou revisando o texto, polindo aqui e ali e matutando um final melhor.

A história é centrada em Maurício, um taxista de seus vinte e poucos anos que largou a escola e sonha em ser árbitro de futebol. Mas pra isso ele precisa antes terminar o ensino médio e enfrentar outros pequenos desafios que a vida vai colocar diante dele, bem como fazer algumas escolhas. É bem realista e tento situar a história ali por 2011, 2012. Tem uma certa euforia pelo sucesso econômico do país. E ele está vendo os amigos e pessoas da família melhorando de vida e ele não consegue.

De qualquer forma, aqui vai um trecho.

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Priscila insinuava a mão para dentro das suas calças e pedia para que ele pagasse um Keep Cooler pra ela, sua a bebida favorita. “Gostei de ti”, se insinuou. E antes mesmo de ela terminar a sua bebida e ele a sua cerveja, foram para o quarto.

Uma hora depois, ele saía com o telefone dela salvo no celular. Ricardo, àquela altura, rodopiava no meio do salão com a sua loira no cangote, ao som de um sucesso sertanejo que tocava na jukebox.

Não deveria ter ligado. E ela não deveria ter parado de lhe cobrar. Em que momento tinha passado do papel de cliente fiel para o de amante? Foi no momento em que ela disse para ele guardar o dinheiro. Era a primeira vez que se deixava gozar com um cliente. Um segredo, dizia ela, que as velhas cafetinas ensinavam, para não se apaixonarem. Não beijar na boca de língua, nem gozar. Nunca.

Era com esse tipo de mulher que ele estava fadado a ficar? Se considerava meio dela. “Não se sinta na obrigação de me ligar. Gosto de ficar contigo. Não quero que tu largue a família por mim”. Ele se admirou depois, ao pensar com cuidado nesse moralismo esquisito. Ganhava a vida como prostituta, mas não queria desmanchar casamentos. O que tinha começado como uma escapadinha virou um encontro regular, pelo menos duas vezes por mês. Priscila o admirava. “Nunca conheci ninguém que fosse juiz de futebol”, disse certa vez, “saí com um jogador do Grêmio que apareceu lá na boate uma vez, reserva, nunca jogava. Foi embora pra Europa, eu acho, um tempo depois”. Não lembrava o nome dele. Não era famoso. Ela contava que não teve condições de estudar porque engravidou cedo e precisou trabalhar para sustentar a filha, cujo pai não assumiu a criança e tempo depois foi embora da cidade.

“A Janete passa o dia todo naquele sofá vendo televisão, fazendo as unhas, na internet”, ele compartilhava. “Eu queria uma mulher que me empurrasse pra frente. Parece que ela me segura parado no tempo”. Sentia serem confidentes.

Em outubro do ano anterior a esposa tinha surgido com a ideia de irem pra praia no final do ano. Ele achou que era brincadeira. “Com que dinheiro?”. “Damos um jeito”, ela respondeu. O que significava que ele teria que dar um jeito. “Tu me prometeu, se lembra?”. Ele não lembrava. Todo mundo iria para a praia. Só eles ficariam na cidade.

“Todo ano é a mesma coisa, só a gente derretendo nesse inferno”. Ele perguntou quem iria. Ela listou nomes de parentes seus. “Poderíamos ficar no teu primo, no Campeche. A casa não é do teu padrinho mesmo?”. Era um primo que não via fazia uns cinco anos. Não se sentia confortável de entrar em contato apenas para ficar na casa dele para ir à praia. Nunca ligou pro cara pra saber como ele estava. E agora aquela?

Janete tanto insistiu que ele ligou.

Claro, tudo bem, eram benvindos. O problema seria conseguir o dinheiro. Fez jornadas de doze horas em alguns dias. Se saiu ridiculamente nas provas que fez, deixou de entregar trabalhos, reprovou por faltas em duas disciplinas. Dezembro chegou e o dinheiro ainda era pouco. Se obrigou a ceder aos convites de Ricardo e foi à noite de carteado no bar do Alemão.

A jogatina acontecia numa sala escondida nos fundos. Entrava-se por uma porta que dava para uma cozinha e dela para a sala de jogos. Ali rolava cacheta, pôquer, canastra. Tudo à dinheiro. E também tinha máquinas caça-níquel. Ganhou uns trocados. Era sorte de principiante, Ricardo brincava. Não importava. Tinha ganhado dois mil reais em duas noites. Dinheiro suficiente para pagar alguns picolés para a filha e um biquíni novo para a mulher… e passar uma noite no motel com Priscila.

Quatro cervejas depois pediu um espumante. Quando se deparou no outro dia com o gasto de quinhentos reais foi que a consciência lhe foi comprimida. Assim como  o dinheiro veio, foi-se. Algum pequeno mecanismo se desligava dentro dele quando bebia, como se o amanhã fosse só um lugar distante que nunca visitaria, como se o dinheiro que tinha no bolso naquele momento fosse um tipo de dinheiro que iria se evaporar antes do amanhecer e que precisava ser gasto naquele preciso instante.

No dia seguinte, mesmo depois do banho, sentia o perfume da amante nas roupas, nas mãos, debaixo das unhas, no carro. Evitava o olhar de Janete em casa, como se ela fosse descobrir neles o seu crime e lhe acusar: “De quem é esse cheiro na tua camisa?”. Ele não teria alternativa senão confessar tudo. No culto pedia perdão, tentando diminuir o peso na consciência, mas o vazio no bolso o incomodava. Incomodava mais do que saber que tinha traído a mulher. Boca-aberta! Por que fazia aquilo com ele mesmo?

Depois da ceia de Natal na casa dos sogros partiram para Florianópolis. Pensou no pai durante o jantar. Ligou. Ninguém atendeu. Torceu para que ele estivesse com Daiane e não em um boteco qualquer do bairro. Passaram sete dias felizes. Com o calor úmido das noites da ilha, seus corpos se redescobriram nas madrugadas silenciosas da casa.

Tudo ficaria bem dali em diante. “Eu falei que daria certo?”, ela lhe disse enquanto a BR101 se estendia à sua frente no caminho de volta para casa.

A pilha de contas na caixa do correio os trouxe de volta das férias. Se obrigou a atrasar luz e água para poder pagar o cartão de crédito. Dobrou a jornada de trabalho para colocar em dia as contas, até que veio fevereiro e as aulas recomeçaram. Tudo de novo?

E não sabia ele, ainda, que das férias Janete trazia um filho na barriga.

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Graciliano e a oralidade na escrita

Um trechinho inicial de São Bernado, de Graciliano Ramos (Record, 1997, 67. ed.):

O narrador, Paulo Honório, começa o livro contando justamente os percalços na escrita do próprio romance que se põe a narrar. Homem simples, auto-didata, ele tem o desafio de lutar com a escrita e os próprios sentimentos, duas coisas, me parece, estranhas a um homem que só respondeu com brutalidade aos desafios da vida.

“O resultado foi um desastre. Quinze dias depois do nosso primeiro encontro, o redator do Cruzeiro apresentou-me dois capítulos datilografados, tão cheios de besteiras que me zanguei:

– Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!

Azevedo Gondim apagou o sorriso, engoliu em seco, apanhou os cacos da sua pequenina vaidade e replicou amuado que um artista não pode escrever como fala.

– Não pode? perguntei com assombro. E por quê?

Azevedo Gondim respondeu que não pode porque não pode.

– Foi assim que sempre se fez. A literatura é a literatura seu Paulo. A gente discute, briga, trata de negócios naturalmente, mas arranjar palavras com tinta é outra coisa. Se eu fosse escrever como falo, ninguém me lia.” (p. 7)

Disciplina

Como a maioria das crianças nesse país eu queria ser jogador de futebol. Mas não que eu tivesse algum talento pro troço. Nunca tive. Era sempre um dos últimos a ser escolhido pra um dos times na aula de educação física. Então, por que eu sonhava que podia um dia entrar num Maracanã lotado e ouvir as pessoas gritando o meu nome? Até hoje eu não sei o que se passava na cabeça do guri de 10 anos que eu era quando tive essa ideia.

Daí que a melhor iniciativa que eu tive foi aos 11 anos entrar numa recém inaugurada ‘sala com livros’ (chamar de biblioteca aquela sala com meia dúzia de prateleiras de livros seria um exagero) da Escola Básica Alberico Azevedo pra pegar um livro emprestado. Também lembro de na 6a. série ter feito algumas pesquisas sobre peixes e anfíbios, o que me levou a uma peregrinação pelas melhores bibliotecas da cidade, duas, a do Colégio São Miguel e a biblioteca municipal de São Miguel do Oeste (elas tinham enciclopédias, a ‘biblioteca’ da minha escola não). Não sei que influência isso teve em mim. Só sei que eu sou uma pessoa que gosta de bibliotecas e que é curiosa. (Vai ver naquele dia de aula vaga, ao invés de ficar vendo os colegas jogar bola, porque ninguém tinha me escolhido pro time, eu tenha resolvido ir na biblioteca da escola ver o que tinha lá pra fazer).

Vai ver foi por isso também que virei linguista. Aliei duas qualidades que eu tenho: a curiosidade e o gosto pela leitura (talvez dê pra colocar ainda nesse balaio o meu ceticismo). Não sei se são qualidades “naturais”, minha personalidade, ou se foram características que eu adquiri ao longo da vida. Nenhum dos meus irmãos é assim, embora tenhamos tido relativamente a mesma criação e estudado nas mesmas escolas. (Será que eu me tornaria um acadêmico em qualquer área que eu tivesse escolhido pra estudar?).

Apesar disso eu acho que tenho um defeito que me atazana: tenho dificuldade pra terminar as coisas, pra perseverar. É como se algumas coisas me dessem um cansaço e de repente o negócio me enche o saco. Quem vê meu currículo acadêmico dirá que eu estou mentindo. Como assim, se você fez dois TCCs, uma monografia de especialização, um mestrado, um doutorado, escreveu artigos, capítulos de livros, relatórios e projetos de pesquisa? É que em algum momento eu desisti daqueles textos. Tenho certeza de que eles seriam bem melhores se eu tivesse me dedicado um tantinho mais a eles. E é esse “tantinho” que separa a excelência do normal (sendo bem, mas bem gentil comigo mesmo). Vai ver ninguém me incentivou a buscar a excelência.

Aí eu me pergunto. Por que eu não consegui desenvolver uma disciplina mais rígida de estudos, supondo que esse seja o remédio que teria possibilitado eu me dedicar com mais afinco aos meus textos? A excelência está nos detalhes. A organização do pensamento que a escrita proporciona pode produzir coisas maravilhosas. Se minha memória não falha, as melhores ideias que tive surgiram após longos momentos de trato com o texto. Claro que algumas surgiram num insight antes de dormir, outras numa caminhada ao final da tarde, mas a maioria (e olha que não dá uma mão, eu acho, se é que eu tive alguma boa ideia nessa minha curta carreira de linguista e escritor) foram em momentos em que eu estava tentando colocar no papel o que estava na minha cabeça (e nas anotações em cadernos e bloquinhos que carrego comigo desde os 17 anos). Ou seja, as melhores ideias me surgiram enquanto eu estava escrevendo. Logo, trabalhar no texto não apenas faz o texto surgir, mas também possibilita que a gente descubra e entenda coisas que não entenderia se apenas ficasse sentado na frente do computador em estado de contemplação esperando os insights surgirem como se ditados por um espírito superior.

Hoje eu acho que estou mais disciplinado do que eu era há dez anos. Se eu tivesse aos 20 a disciplina que tenho hoje para escrever tenho certeza que teria escrito coisas mais interessantes e terminado algum livro de ficção antes dos 30 (eu não sabia como terminar as histórias, muitas delas, por isso as abandonava; vai ver eu achava que tinha “talento”, que não precisava estudar como se faz literatura). Na escrita acadêmica é mais fácil chegar em algum lugar, mesmo que esse lugar seja provisório.

E de novo o questionamento: por que eu sou assim? Por que o prazer do estudo, da leitura, a curiosidade, características que me fizeram ser relativamente bem sucedido no que faço, não contribuíram para que eu fosse mais disciplinado para escrever? Veja, o meu ponto não é a escrita primeira, o jorro, a necessidade de se expressar… Isso nunca me faltou (graças às musas!). Nem pra fazer linguística, nem pra escrever ficção. Nunca me faltou assunto (o que é um problema também, porque me disperso).

Vai ver alguém me disse que eu tinha “talento”, e por algum traço de malandragem do meu caráter (como o Manoel de Barros, também tenho cacoete pra vadio), eu achei que o talento fosse o suficiente. Bastava ele, e eu chegaria em algum lugar. Voltando à metáfora do futebol, provavelmente o Romário é um “natural”, assim como Clarice Lispector era (olha a idade que ela tinha quando escreveu Perto do coração selvagem!, que na minha modesta opinião é um livro muito bom). Eles não precisavam “treinar”, pra eles bastava entrar em campo. Clarice com certeza era alguém que podia dizer de boca cheia “toca pra mim, que eu resolvo”, e até os 45min. do segundo tempo ela resolveria o jogo. Claro, com isso não quero dizer que ela não trabalhasse seus textos com a necessária dedicação que o fazer literário exige. (Olhando, quantitativamente, a produção dela, a gente pode concluir com certeza que ela treinava pra burro). Pondo isso de outra forma: um nó cego pode reescrever um conto seu umas vinte vezes que jamais vai estar no nível de uma Clarice Lispector. Ou, um Leandro Damião nunca será um Romário, mesmo que treine 8 horas por dia, 7 dias por semana.

Talvez um Faraco, um Ilari, sejam capazes de escrever de primeira versão com a clareza e a fluidez que só eles têm (o que eu duvido muito). Mas a maioria de nós, eu inclusive, precisamos domar as nossas ideias, dominá-las como uma bola lançada pelo zagueiro, que a gente sabe que provavelmente será difícil matar no peito do pé, com a elegância que o Neymar e o Messi tem… que provavelmente mataremos na canela, que ela vai espanar e que teremos que sair correndo de-atrás antes que ela se perca.

Porque, no final das contas, a escrita acadêmica, profissional ou literária é uma luta solitária. Talvez “luta” não seja a melhor expressão (desculpa aí, Drummond). Talvez a escrita seja um jogo de um cara só, em que o adversário não é a televisão, o rádio, a internet, os filhos (ou qualquer outra distração), é a tua vontade de levantar dali, o teu próprio julgamento: está bom porque eu acho que está bom, ou está bom porque eu cansei de trabalhar nisso? Poderia ficar melhor? (Alguns escritores falam que desistem do texto quando percebem que nada do que fizerem poderá melhorar o texto). Hemingway dizia que todo escritor precisa ter uma espécie de detector de bobagem. Acho que eu não fui capaz de desenvolver um. Quem sabe um dia eu consiga. Afinal, também é preciso achar um meio termo, algum tipo de parâmetro entre o texto que te deixa feliz (legal, consegui escrever) e o que te decepciona (puta merda, como eu escrevi esse bostaço!?). Vai ver eu me satisfaça com pouco, e esse seja o problema também.

Alguns escritores e gurus da escrita criativa sugerem que a gente deixe o texto descansar uns dias. Outros falam da importância de um leitor particular, alguém que posse dar pitacos pra além de comentários vagos como gostei, ou tá muito bom. Já achei um leitor pros meus textos acadêmicos, me falta um, ou dois, pra minha literatura.

Armado de um detector de bobagem, mais a disciplina necessária para escrever, quem sabe um dia eu consiga escrever alguma coisa que preste. Felizmente, diferentemente do futebol, pra escrever não precisa de preparo físico. O Luís A. Fischer usa o conto do Kafka, Um artista da Fome, como uma metáfora pra isso que eu quero dizer: escrever como aquele cara jejuava.

“Talvez o texto ideal, no sentido dessa pequena filosofia, seja como o jejum do personagem do conto “Um artista da fome”, de Franz Kafka: escrever como aquele cara precisava jejuar, com aquela gana, se possível sem jamais parar (mas ao mesmo tempo sabendo que há um limite para o jejum, a morte). Jejuar, escrever, não para agradar, mas para atingir o ponto máximo de sua verdade pessoal, mesmo que ao custo da vida, isso é um ideal que vale a pena” (Fischer, ler e escrever. In: Filosofia mínima. Arquipélago, 2011).

Só que pra atingir aquele nível de excelência no jejum é preciso mais que o impulso, mais que vontade. Vai ver seja preciso um algo mais (a gana?) que poucos de nós temos. E todo dia eu me pergunto isso: se eu me dedicasse um tantinho mais, seria um linguista melhor? Poderia ser um escritor melhor? Não sei. Só sei que o que me move é a crença de que posso melhorar (mesmo que eu não venha a ser um Romário ou um Suarez).

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Por mais que eu tenha categorizado esse post como ‘crônica’ no fundo tá com cara de ensaio montagueano. Não me preocupei muito com estrutura, fui mais pro depoimento pessoal mesmo, usando um registro coloquial.

Rocha Lima e as qualidades da boa prosa

No capítulo XXXI de sua Gramática Normativa, Rocha Lima nos presenteia com dicas de escrita, listando as “qualidades da boa prosa”: correção, concisão, clareza, precisão, naturalidade, originalidade, nobreza e harmonia. Pois é, nada que a falta de uma boa teoria de texto/discurso não pudesse ser preenchida com o saber empírico e assistemático.

Antes de falar de correção, ele dá uma cutucada nos modernistas: “É vezo moderno – moderno e elegante – pregar o desamor da tradição gramatical. Dilapidada metodicamente por certa corrente literária deste inquieto século XX, vai a língua portuguesa decaindo, em algaravia bárbara, ao nível de caçanje miserável.” (p. 501)

(É irônico esse ‘moderno e elegante’ entre travessões, como se o adjetivo ‘elegante’ qualificasse uma moda, e como todas as modas, passageira?)

Ao entrar no tema da correção, que foi o que me chamou a atenção, lemos o seguinte, no trecho em que ele discute como as qualidades podem entrar em conflito. Neste caso, para ele, a precisão (a busca pela palavra exata) não pode colidir com a nobreza: “[…] se estivermos, por exemplo, procurando reproduzir, num romance, um diálogo entre personagens ignorantes, não nos será lícito, por amor da nobreza, fazê-las falar sem o pitoresco expressivo da sua linguagem inculta. Isto sem descer, é claro, a torpezas verbais indignas de fixação escrita. Seria confundir ‘linguagem inculta’ com o baixo ‘calão’ dos homens vis.”

Isso dizia o Rocha Lima já lá em 1962. Reforço: ‘torpezas verbais indignas de fixação escrita’. Ele deve ter tido um troço ao ler Macunaíma.

Ando lendo

João do Rio (A alma encantadora das ruas, Companhia das Letras, 2008) entendia das coisas.

” A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam.” (p. 29)

“A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros.” (p. 29)

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Lobo Antunes (via E. Vila-Matas, O mal de Montano, Cosac Naif, 2005) sobre escrever:

“…é como se drogar, começa-se por puro prazer, e acaba-se organizando a vida como os drogados, em torno do vício. E esta é a minha vida. Até quando sofro o vivo como um desdobramento: o homem está sofrendo, e o escritor está pensando em como aproveitar este sofrimento para seu trabalho”. (p. 199)

Estou bêbado desse livro.

Escreva, Luisandro, escreva

Matei o outro blogue que eu havia criado, o “um conto por semana”. Fi-lo com o objetivo de disciplinar a minha escrita, pelo menos no sentido de escrever com regularidade, e se for diariamente, melhor.

Acabei de ler o “A preparação do romance, vol. II” de R. Barthes. Li, ainda o estou deglutindo, e provavelmente voltarei a ele em algum momento, porque não fiz anotações. Simplesmente fui “devorando” o livro. A ideia toda desse volume e do anterior é a proposta da escrita de um romance, e a partir disso Barthes se propõe a comentar o que os escritores dizem sobre essa tarefa. Muita gente quer escrever, mas poucos conseguem levar a cabo o trabalho. O que há de especial naqueles que conseguem. Eu diria que além de talento, é a disciplina. Como o jogador de futebol que se acha bom de bola e não treina. Talvez ele seja um best-seller (daqueles de encher estádio), mas não vai entrar pra história como gênio, certamente. Para o escritor, a disciplina envolve a dedicação, o pensamento focado, e por vezes a abnegação, deixar de lado as coisas mundanas (o trato com as coisas do cotidiano) a favor da literatura. Ele cita Kafka, Flaubert, Balzac, entre outros, que quando não estavam escrevendo, só sabiam pensar nisso, como uma espécie de obsessão. O que pra mim só revela esse mágica que há por detrás da escrita literária, o sujeito se apaixonar por um personagem e querer investigá-lo. Pelo menos é o que eu tenho em mente enquanto escrevo. Alguns querem imitar Joyce ou Guimarães Rosa. Eu prefiro imitar Machado, embora o texto, a palavra seja importante pra mim também, embora só depois que comecei a oficina do Assis Brasil eu tenha começado a ser mais cuidadoso com o texto.

Enfim, o fato é que consegui escrever uma novela de 137 páginas, e uma coletânea de contos de 90 em seis meses, e acho que vou juntar mais 100 páginas de contos até o final do ano, ao mesmo tempo em que estou planejando uma novela que pretendo escrever no mês de janeiro do próximo ano. Além disso, no primeiro semestre, traduzi umas 200 páginas. Cento e poucas delas do Science of Language, uma entrevista que o James McGilvray fez com Noam Chomsky sobre vários temas ligados a linguagem e neurociência, que vai sair pela editora da UNESP – a tradução é em conjunto com meus colegas de UFRGS, Gabriel Othero e Sérgio Menuzzi. Ou seja, acho que escrevi um bocado esse ano (até agora, pelo menos).

Mixórdia

Estava eu me dirigindo para casa, ontem, por volta das dez horas, quando me dei conta de que o Facebook está matando minha peridiocidade de publicações no blogue. Antes do Facebook eu escrevia por aqui muito mais, e também visita os blogues das pessoas. Hoje não consigo ler nada além de uma meia-dúzia de blogues aos quais sou fiel, minha lista de blogues favoritos é grande; só que não consigo acompanhar todos (falando nisso, preciso atualizar o menu de links aqui do lado).

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Um experimento: sou professor de uma disciplina de produção textual acadêmica, e gostaria de deixar todas a atividades da disciplina opcionais (presença nas aulas obrigatória), mas a entrega das tarefas é opcional. Somente o trabalho final, um artigo/ensaio (mínimo 6 no máximo 15 pág.) seria obrigatório. Me dariam a conta provavelmente, pois aposto que a maioria não faria nada o semestre todo, iria entregar um artigo meia-boca e iria reprovar.

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Tenho uma tese: acho que todo professor de português, no fundo, sabe como deve ensinar a escrita. Só que fazer o aluno re-escrever o texto várias vezes, dá um puta trabalho. Ensinar gramática é mais fácil e dá pra fazer prova objetiva.

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Por que o título ‘mixórdia’? Porque é uma palavra legal, oras!

O tal ‘erro de português’

São famosas as reportagens da Veja sobre os deslizes que os usuários do português brasileiro cometem (se presidentes da república, FHC que o diga, e candidatos a altos cargos tropeçam na própria língua, quem dirá o povo, coitado). Há também uma infinidade de reportagens e textos em blogues e sites dando dicas para evitar as ‘armadilhas’ da língua. Durante o programa Agora é Tarde, apresentado por Danilo Gentili, Neto afirmou que ‘fala errado’, inclusive citou que já falou ‘mais maior’ ao vivo e Danilo também expressou sua insegurança com o idioma, embora não tenha citado nenhuma ‘gafe’. Fotos de placas com grafia errada viraram virais (felizmente não recebo mais essas coisas), e se o leitor estiver curioso, o site Kibeloco frequentemente publica uma seleção dessas fotos (clique aqui).  Não é pra rir dessas coisas (tá, tem umas bem engraçadas), deveríamos ter duas reações: pena, porque a pessoa não teve as oportunidades que muitos de nós tivemos e se ela vende caipira na praia ou corta cabelo e pinto não é porque ela prefere isso a estar no seu lugar sentadão ali na cadeira de praia; segunda, vergonha, pois um sujeito escrever as palavras de forma incorreta revela que sua intimidade com a palavra escrita é pequena, e que ele não se deu ao trabalho de ir ao dicionário, o que fica pior se a pessoa não perceber que escreveu errado (numa sociedade como a nossa pouco íntima com os livros isso é comum).
Há duas modalidades de erros bastante perseguidas, e em geral os metidos a gramáticos pela internet afora os confundem e são mais realistas que o rei, isto é, se metem a legislar o idioma, ou simplesmente copiam as dicas de outros gramatiqueiros. Carlos Alberto Faraco, em seu livro “Norma Culta Brasileira” chamou esse fenômeno de ‘norma curta’. Que modalidades são essas? A escrita e a fala. A visão estreita dos fatos da língua dirá que fala e escrita se opõem, quando na verdade essas duas modalidades de uso da língua estão num contínuo gradativo. Há usos da escrita que estão próximos da fala (bilhetes, cartas pessoais, bate-papos online) assim como há usos da fala que estão próximos do escrito, ou se baseiam no escrito (peças de teatro, novelas de televisão, conferências, palestras…). Essa é uma primeira distinção que precisamos fazer quando falamos de ‘erro de português’. Feito isso, vou tentar definir melhor cada um dos dois.

O erro de português na escrita. Podemos aqui fazer duas divisões bem gerais. Há erros de convenção (ortografia e pontuação) e erros que são reflexos da fala (escrever ‘poriso’ ou ‘agente’, por exemplo). Os erros de convenção são os mais comuns e que se resolvem facilmente com uma busca ao dicionário, já aprender pontuação é algo bem mais complexo, porque pontuar corretamente envolve compreender rudimentarmente noções da estrutura da oração (sujeito, predicado, aposto, vocativo, adjunto…), afinal de contas, se o vocativo, precisa vir separado por vírgula, de nada adianta você saber isso se não sabe o que é um vocativo, nem consegue reconhecer um quando o encontra, né, amigo? A escrita é uma convenção e como tal é natural que existam palavras que por um motivo ou outro não se escrevem como se falam, uma característica que não é só do português, e sim de todas as línguas. Há casos que poderiam ser resolvidos, como os quatro ‘porquês’, que é coisa de gramático, invenção, não precisa ser assim; da mesma forma o acento grave ‘`’, que marca crase (um fenômeno fonológico, não um acento), se ele fosse abolido, ninguém sentiria falta (talvez os gramatiqueiros, que perderiam mais um tema bizarro pra vender livros). Desnecessário dizer que todo mundo que usa a escrita como ferramenta de trabalho (advogados, publicitários, funcionários públicos, etc.) precisa saber escrever com correção. Fazer um cursinho de redação resolve? Na boa, não jogue dinheiro fora. Compre um bom dicionário (Houaiss e Aurélio ainda são os melhores) e uma boa gramática (Bechara ou Cunha & Cintra) na dúvida consulte-os ou pesquise na internet, pelo menos em dois lugares e jamais confie em blogues cujos autores não são professores reconhecidos, vá em sites maiores como o UOL Educação ou a Revista Nova Escola.
O erro de português na fala. Aqui as coisas se complicam. Primeiro porque tem muita coisa em jogo, preconceitos principalmente. Antes de entrarmos nas teorias vamos aos fatos (‘fato’ aqui é no sentido científico, uma tsunami é um fato, se isso é a ira de zeus castingando pecadores, ou resultado de tremores de terra sub-oceânicos (com ou sem hífen?), já estamos no reino das teorias). Fato 1: não se fala como se escreve (em língua nenhuma); fato 2: as línguas variam (isto é, não são faladas uniformemente por todos os falantes). A grande sensação geral de desconforto com a própria fala que o brasileiro sofre (vide Neto e Gentili) se deve a uma tradição que remonta ao século XIX, do professor de português tentar “corrigir” a fala do aluno, e de basear essa correção no padrão escrito (durante o século XX grande parte da evasão escolar foi fruto dessa pedagogia equivocada, a escola nunca aceitou o diferente, sempre o repeliu). Essa correção acontecia, e se duvidar ainda acontece, porque as línguas mudam e variam. A variação, a existência de duas formas na gramática da língua que cumprem a mesma função (estou sendo grotesco aqui, claro), nem sempre indica mudança, porque para a mudança ocorrer outros fatores entram em jogo, como a adoção da nova forma pelos falantes da língua (como a substituição do ‘tu’ pelo ‘você’ em 90% do território brasileiro). Veja que ninguém corrige outra pessoa caso o fulano diga ‘o agente de saúde esteve aqui’ ou ‘a gente somos inútil’ (como na música do Ultraje). Repare que se pronuncia as duas expressões igualmente ‘a gente’ e ‘agente’, enquanto um acompanha artigo ‘O agente especial Fox Mulder’, não faria sentido dizer ou escrever ‘o/a gente vamos jogar bola.’, tanto não faz sentido que ninguém faz isso. Esse exemplo é interessante, pois ilustra um caso de variação no português. Tem duas opções aqui: ‘a gente somos’ ou ‘a gente é’. O ingênuo pergunta: qual é o correto? Alguém com bom senso, e que teve um bom professor de português, perguntaria: quando se usa um e quando se usa outro? ‘a gente’ está na boca do povo e veio pra ficar, os gramáticos gostando ou não. A variação pode indicar que esse termo ainda está em processo de acomodação no sistema, daí a possibilidade da dupla concordância, pois mesmo sendo singular, é ‘A gente’, não ‘as gentes’ como se lê em textos antigos, esse termo está substituindo o ‘nós’, pronome de primeira pessoa do plural, daí que a ocorrência de ‘a gente somos’ pode estar relacionada ao fato do termo denotar ‘mais de um’ e não reflete ignorância do usuário. Ao lado disso, concorre um enfraquecimento geral do sistema morfológico de desinências de pessoa e número na língua falada, repare nos gaúchos e cariocas falando, os brasileiros que ainda usam o ‘tu’, até na novela os personagens já falam ‘tu tá’. Errado? Não, esse é o português brasileiro atual, se conformem. Tudo bem falar ‘a gente fomos’, então? Infelizmente, não. Daí é que entra o preconceito e as regras de bom comportamento nos salões do reino. Espera-se que pessoas educadas e finas não falem coisas como ‘a gente somos’, afinal isso é língua de caipira, doméstica e pobre (sério, tinha gramático que falava essas coisas). Quando os linguistas afirmam que não existe ‘erro de português’ é no sentido científico, porque os linguistas veem a língua como um fenômeno natural (assim, como andamos sobre duas pernas, temos dois braços, aprendemos a falar naturalmente, sem instrução, se tudo correr bem no nosso crescimento biológico). Acontece que a língua é também um fenômeno cultural, é o que nos define como humanos, é o que possibilita a organização social, a troca de experiências e conhecimento. Assim, não é de se espantar que a sociedade valorize aquela variedade da língua que usam os doutos e letrados. A pedagogia do ensino de língua portuguesa no século XXI busca justamente fazer com que o aluno que chega na escola falando a ‘gente somos’ aprenda que existem outras formas de se dizer a mesma coisa, como ‘a gente é’ ou ‘nós somos’. A escolha entre uma forma e outra tem a ver com a modalidade, se escrita ou se falada (fica melhor num texto formal ‘nós somos’, enquanto fica melhor num bilhete, numa conversa de boteco ‘a gente é/somos’), com as intenções daquele que fala. Ou vai dizer que músicas como Comida dos Titãs (‘a gente não quer só comida…”) ou Inútil do Ultraje (“Inútil, a gente somos inútil”) teriam a graça que tem se tivessem sido escritas como “nós não queremos só comida” e “nós somos inúteis”? A celeuma em torno do livro que ‘ensina errado’ só aconteceu porque imprensa e ‘intelectuais’ possuem um olhar estreito sobre os fatos da língua.
Vou deixar o tema dos legisladores de plantão pra próxima semana. Mas se o tema interessar, leia “norma culta brasileira” de Carlos Alberto Faraco, vai ser no mínimo esclarecedor. Ou espere até sexta-que-vem.