Falando de língua nos tempos do Youtube

Me impressiona que depois de tudo que a gente aprendeu sobre o texto/discurso e o funcionamento da língua na sociedade ainda surgem canais que utilizam as novas tecnologias de relação pessoal ou entretenimento (Youtube, Facebook, Twitter, Instagram) para falar de língua usando a caduca forma da gramática tradicional: a unidade de análise é sempre a palavra, a explicação auto contida (é assim porque é assim), e os fenômenos não ultrapassam os limites do certo/errado e aspectos tradicionais: ortografia, pontuação, regência, concordância, colocação de pronomes etc.

Além disso, por que ainda se fala dessas coisas? Por que alguém que passou 12, 13 anos na escola ainda precisa que alguém explique para ele a diferença entre mais/mas? Nessa altura da vida eu acho que um estudante já devia estar cansado de ouvir falar disso. Ontem, no Fantástico, vários professores falaram sobre a redação do ENEM. As dicas eram as tradicionais. Os critérios de avaliação mudaram, mas a cabeça do professor não. As dicas se resumiam em: cuidado com a gramática (entendida como aquela lista do final do primeiro parágrafo).

Supondo que as pessoas que se dedicam a esse trabalho são bem intencionadas, aprenderam na universidade que a língua vai além da palavra e da oração, que precisamos superar o velho ensino normativista com outras estratégias de ensino de gramática, que os usos linguísticos não podem ser avaliados pela régua do certo/errado etc. (perdoem essa subordinada gigantesca), tenho duas teorias pra explicar esse fenômeno: i) é o que dá pra fazer nesses recursos; b) é o mais fácil.

Se quero dar dicas para as pessoas escreverem melhor e divulgar isso através das redes sociais, posso gravar um vídeo curto (vídeos longos são chatos e acabam virando aulas), ou produzir um meme (uma imagem com texto). O que é mais prático de discutir numa foto para colocar no Instagram, a diferença entre os porquês ou a estrutura da relativa introduzida por preposição? Falar da diferença entre mas/mais ou de problemas de paralelismo semântico/sintático?

Falar de problemas textuais demanda tempo e espaço. Eu diria que é impossível mesmo falar disso numa imagem ou num vídeo de 30seg.

É mais fácil falar da palavra, embora eu creia que é uma facilidade enganadora. Explicar que mas é substituível por porém, e é conjunção adversativa, enquanto o mais é substituível por menos e é advérbio de comparação é uma explicação rápida e adequada. Mas seria efetiva? Isto é, depois de ouvir essa explicação o sujeito que a aprendeu (supondo que tenha aprendido) vai saber utilizá-la para avaliar a sua própria escrita? Eu acho que não, se ao longo da vida escolar o indivíduo não entendeu a escrita como um processo de organização de ideias, que precisa passar por vários estágios de formulação, reformulação e reescrita. Entendo que no vestibular ou num concurso público ele vai ter tempo para fazer apenas uma versão, reler, melhorar o que der pra melhorar nesse curto espaço de tempo, e passar a limpo a versão final.

Se ele foi apresentado a estratégias de autocorreção, de reescrita, de reformulação, de leitura do próprio texto, de estratégias argumentativas, de organização do parágrafo e do texto, e assim por diante, esse processo vai ser simples e indolor. Escrever, para esse estudante, não é preencher as 20 linhas o mais rápido possível para se livrar logo da tarefa, cuidando para não confundir o mas/mais ou errar a grafia do porquê.

Esse tipo de pedagogia da escrita, de culto ao “não erre mais”, “evite isso ou aquilo”, não vê o uso da língua do ponto de vista do seu papel interacional. O uso da língua escrita é só uma tarefa burocrática que o aluno precisa cumprir para chegar em algum lugar: na próxima série, na universidade, no emprego público etc. Não escrevo porque tenho algo a dizer, escrevo para me livrar da tarefa. Assim, a visão que se cria da escrita fica confinada à higienização do texto. Escrever bem é colocar pontos, vírgulas e acentos no lugar, não confundir o por que com o porque ou assento com acento etc. Não é “de varde” que estudar português  é um saco mesmo.

Um exemplo de dicas que supõe que a redação é encher linguiça: https://www.youtube.com/watch?v=rdf2AZ2Ss2c

Um exemplo, do mesmo canal, que dá dicas boas, embora as textuais de fato sejam poucas (como o uso dos textos motivadores; evitar generalizações, evitar clichês e ditados populares etc.): https://www.youtube.com/watch?v=Md5ymGUwZ2s

Malditos professores de humanas

Não sei de onde se tira essa visão que se tem dos cursos de humanas como centros doutrinadores de esquerda, e como consequência, da formação de professores que irão repetir a lenga-lenga de que o capital é a raiz de todos os males do globo. É o discurso pronto que repete o autor dessa matéria publicada da Folha. Segundo ele, a mesmice nas redações do ENEM é fruto dessa práxis que fornece aos alunos modelos prontos de pensamento, ou visão de mundo.

Estudos sobre redação no vestibular do início dos anos 80 já apontavam isso (como o de Alcir Pécora, por exemplo, o clássico “Problemas de redação na escola”). Na maioria dos textos analisados pelo autor (o corpus era constituído por redações do vestibular da Unicamp, e imagino que pobre sequer cogitava prestar essa seleção naqueles anos) os textos abusavam de clichês e buscavam dar uma lição de moral no interlocutor, muito mais do que defenderem um ponto específico do tema de redação.

Haquira Osakabe, em um texto chamado “Considerações sobre o acesso ao mundo da escrita”, fala justamente do papel ideológico que o acesso à escrita coloca para as classes menos favorecidas. Ler e escrever, historicamente, sempre foi um privilégio das classes mais altas. Portanto, alfabetizar os pobres surge como uma necessidade de tornar o proletariado mais produtivo ao invés de fornecer a essa classe condições para ascender socialmente (mas é esse o papo, não?), ou ter acesso a um universo diferente daquele que apenas a oralidade proporciona (é isso que dizemos a eles, os alunos, também). Nesse sentido, o papel da escola, ao monitorar e fornecer as leituras para as crianças e jovens é justamente ‘doutrinar’ o indivíduo para o mercado de trabalho, ou ‘tranquilizá-lo’, como diz Osakabe. Agora, na medida em que a classe que assume o giz e a palavra deixa de ser a classe média, e passa a ser uma classe constituída por um contingente de sujeitos que toma o lugar deixado por sujeitos de classes mais altas, creio que é natural que o discurso contra o sistema seja mais saliente. Afinal, a escola deve fornecer condições para que o aluno saia dela e seja capaz de lutar contra tudo que está lá fora. Tranquilizá-lo, torná-lo simplesmente mais um indivíduo na massa, seria outra forma de doutrinação. Mas será que é isso mesmo que acontece? Eu duvido muito. Outra tese de Osakabe: ao se apropriar da escrita, o indivíduo entra num universo que lhe disponibiliza uma leitura do mundo já formulada. E é nisso que penso quando vejo o comentário do autor do texto na Folha.

Ninguém verá criatividade em redações de vestibular. Simplesmente porque a escola construiu historicamente o gênero ‘redação’ justo para matar qualquer saliência de criatividade ou espírito questionador. É muito mais simples o aluno ficar dentro do esquema previsível, não aparecer no texto, não deixar o ‘eu’ aflorar linguisticamente, colocando-se detrás de uma terceira pessoa falsamente objetiva, do que mostrar-se. É mais seguro. Por que é isso que a escola e a sociedade lhe ensinaram.[1] Ele tem medo de ser avaliado não apenas pelo ‘como’ (a gramática do seu texto) mas também pelo ‘o quê’. Nesse sentido, o indivíduo tenta construir no seu discurso uma imagem positiva (ou politicamente correta, se preferir), afinal, ele vai ser avaliado pelo que diz, não por quem ele de fato é. Portanto, emitir uma opinião que vá de encontro ao consenso (a publicidade é enganosa e manipuladora, por ex., seja ela infantil ou não) é uma estratégia de construção do seu ‘ethos’ discursivo, de mostrar uma imagem de autor que se acredita que será bem recebida e avaliada pelo leitor. Mesmo quando um polemista usa a estratégia de agredir o adversário no debate (como certo grupo de colunistas de direita faz) ele está construindo uma imagem que agrada ao seu leitor, o leitor que espera que ele faça isso, agrida o grupo adversário moralmente. Mas no caso de uma redação de vestibular ou concurso público, o leitor imediato da redação é o avaliador, e é para esse interlocutor que se escreve, não para a sociedade, ou para um grupo dentro dela.

A escola não ensina lucro, livre-iniciativa, bla-bla-blá, lamenta. E precisa? Olha o que acontece com a sociedade em tempos de crise? Provavelmente o autor do texto não teve uma mãe que precisou pintar panos de prato, fazer salgados ou qualquer outro tipo de trabalho manual caseiro para complementar a renda porque o pai estava desempregado, e tinha uma formação profissional tão especializada que ele não tinha outra oportunidade de trabalho senão aquela na qual ele permaneceu durante toda a sua vida. Em tempo de crise o pobre se vira. Faz um bico, vai vender Avon de porta em porta para os vizinhos, vai vender pastel na porta de fábricas etc. Se isso não é livre iniciativa, eu não sei o que é. Ou livre iniciativa é só a start-up que o mauricinho inicia com o dinheiro que o pai deu ou com o empréstimo que fez no banco dando como garantia algum bem da família? Não precisa ensinar o que é lucro. Luxo, conforto, um carro melhor, uma casa melhor, todo mundo quer. E isso não há doutrinação marxista que mate.

A publicidade não funciona, diz ele – só a marxista, logo, publicitários deveriam tomar aulas de persuasão com professores de história, digo eu. Vejam as vendas do McDonald’s, que só caem, diz ele (talvez as pessoas tenham se dado conta que por detrás da publicidade toda existe uma merda de um produto). Como não funciona? Vá a uma escola pública, veja o que os alunos rabiscam nas carteiras, nos cadernos: logotipos de marcas de roupa! Um guri da sétima série, muito antes de ter uma banda favorita, ou um time do coração, já desenha o símbolo da Nike, da Adidas, da Volcom e de qualquer outra marca. Mas o guri que chega ao final do processo, que foi doutrinado ao longo do ensino médio, não é burro. Ele sabe que pra conseguir comprar um tênis da Adidas, pra conseguir entrar na boate da moda, ele precisa de grana, ele precisa ter um bom emprego (ou entrar pro crime). E pra chegar lá, ele precisa passar por um vestibular, ou por um ENEM, e passar por essa seleção envolve dizer o que o patrão quer ouvir.

[1] Vejam essa coleção de dicas que o UOL dá. Entre elas: “copie textos”, como uma forma de exercício; outra: dê preferência para a terceira pessoa do singular ou a primeira do plural.

Sobre as redações do ENEM

charge-enem-2Em outros tempos eu me surpreenderia com a celeuma que se criou em torno da correção das redações do ENEM. Hoje penso que não se poderia esperar nada diferente. A imprensa, pelo menos uma parte significativa dela, tem pecado em fornecer ao espectador uma opinião mais balizada sobre os fatos. Veja-se o caso da tragédia em Santa Maria. Nas notícias sobre o caso, o tom geral é “quem vai pra cadeia?”. No final, o que veremos, provavelmente é um pequeno retrato do jeitinho brasileiro de fazer as coisas. Em cidades pequenas todo mundo se conhece, todo mundo tem um amigo em alguma posição de poder que pode falar com outro alguém para afrouxar regras e liberar licenças, mesmo que irregularidades existam. O bom e velho “não dá nada.” Não veremos uma reflexão mais séria sobre as causas e formas de evitar esse tipo de coisa no futuro.

Não tem como esperar que os jornalistas entrevistem alguém que dê uma opinião mais gabaritada. A postura do Marcos Bagno, só dificulta isso, por exemplo. Sua arrogância só pesa contra a academia. Provavelmente ele é o linguista mais conhecido do país. Deveria mostrar mais simpatia. Não sair esbravejando que os jornalistas da Globo são imbecis e que deveriam ser os livros dele. Mesmo o Sírio Possenti (que possui um blog no portal do Terra), por vezes assume uma postura irônica. O artigo que ele escreveu sobre o assunto é uma exceção, eu diria, no seu tom costumeiro. Qual é a imagem que se passa da academia com essa atitude? De qualquer forma, a matéria sensata que saiu no G1 ninguém menciona.

Há duas questões que envolvem a correção das redações: a) houve erro, claro, em dar nota máxima para redações que apresentaram erros ortográficos; b) não há como zerar as redações que fugiram parcialmente do tema. Tentarei explicar essas duas coisas.

É claro que uma redação que apresente erro de ortografia não deveria receber nota máxima. Agora, foi um erro apenas, ou dois? O texto como um todo, como ele se apresenta? Considerando-se os outros critérios, como ele seria avaliado. Essa reportagem não diz isso. O máximo de especificidade que se lê é “uma redação apresenta dois erros de concordância”. Suponha que o problema fosse apenas esse. Que nota a redação tiraria se os pontos tivessem sido descontados? Digamos que 950 de 1000 possíveis? Como o ENEM é uma avaliação nacional, não sei até que ponto ela gera uma classificação e um ordenamento dos “candidatos” (candidatos a quê?), então minúcias não fazem diferença. Pelo menos não a diferença que fazem em um vestibular padrão em que décimos são fundamentais para classificar candidatos muito bem preparados para cursos com concorrência alta. Do meu ponto de vista a reação foi exagerada. Em quantas redações isso aconteceu? Zero vírgula tantos porcento de milhões de redações…

Agora o problema (b): as redações deveriam de fato ter sido zeradas? Segundo essa reportagem, que muito bem detalha o processo da correção, não. A fuga do tema é parcial. Se os sujeitos queriam mesmo ter zerado a prova e mostrado que os corretores não leem a prova, deveriam ser escrito apenas a receita de miojo ou apenas o hino do Palmeiras. Do modo como escreveram, o corretor irá avaliar como fuga parcial. Dará a nota mínima para o domínio do tema, para quesitos de coesão e coerência e estruturação do texto. Os corretores partem do princípio que ninguém que participa do processo está ali de brincadeira, portanto avaliam a redação da forma mais séria possível, considerando dificuldades eventuais que as pessoas possuam no trato com a linguagem escrita. O sistema seria falho se o sujeito tivesse escrito apenas a receita do miojo e tivesse tirado nota 700-800 por exemplo, o que mostraria que a nota foi aleatória.

Um parêntese: As pessoas não entendem que vestibulares existem apenas porque a demanda é maior do que a oferta. Se nos vestibulares se desse zero para toda redação que apresenta fuga parcial do tema, cursos com concorrência pequena não conseguiriam fechar turmas. O vestibular é essencialmente um processo classificatório. A conclusão do Ensino Médio habilita qualquer um a entrar em um curso universitário. Fazer vestibular para cursos que tem concorrência de 1-1, ou menor que isso é uma perda de tempo e desperdício de dinheiro.

As charges que se produziram, as reações dos jornalistas e opinionados por aí são naturais; procuradores enraivecidos moverão ações contra o MEC. Todos estão no seu direito. Nenhum sistema de correção ou avaliação é 100% seguro, pois existe sempre o elemento humano, imprevisível. Nos escandalizamos com vendas de vagas em vestibulares de medicina. Ninguém falou em punir aqueles que compraram as vagas (gente de poder aquisitivo alto, claro), apenas aqueles que fraudam o processo. Pagar por uma vaga em uma universidade não é fraudar o processo também? Já o erro humano, ou a ingenuidade de algum corretor, que acreditou não ter problema em dar nota máxima para uma redação que apresentasse apenas um ou dois erros de ortografia, é natural e sempre irá acontecer. Nossa tendência natural de generalizações irá concluir que todos os corretores são imbecis e o processo todo de avaliação é uma bosta. Um assassino que saia de um julgamento declarado inocente nos dará a impressão que todo o sistema judiciário é uma piada. Simplesmente esquecemos de todos os outros 99% dos casos em que ele funciona e condena assassinos. O objetivo dos “candidatos” que tentaram mostrar que a avaliação é falha não foi bem sucedido, como tentam mostrar certas reportagens. Na verdade, o que essa pequena experiência nos mostra é justamente o oposto. Que os critérios, por mais que o elemento de subjetividade seja inevitável, foram bem aplicados e as redações foram avaliadas com cuidado.