Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.

Escrita, escritor e leitor

Tenho lido a coletânea de pequenas crônicas do Luís Augusto Fischer reunidas em Filosofia Mínima: ler, escrever, ensinar e aprender e me deparei com um trecho (da parte sobre escrever) que gostaria de compartilhar com vocês (embora eu não saiba exatamente quem é meu leitor comum, já que comumente quem passa por aqui e dá um oi são os amigos).

“Talvez o texto ideal, no sentido dessa pequena filosofia, seja como o jejum do personagem do conto “Um artista da fome”, de Franz Kafka: escrever como aquele cara precisava jejuar, com aquela gana, se possível sem jamais parar (mas ao mesmo tempo sabendo que há um limite para o jejum, a morte). Jejuar, escrever, não para agradar, mas para atingir o ponto máximo de sua verdade pessoal, mesmo que ao custo da vida, isso é um ideal que vale a pena.” (p. 138)

Por que eu gostei desse trecho? Provavelmente porque nos últimos seis meses tenho escrito praticamente todo dia (mesmo que umas poucas páginas) e mesmo quando não sento sistematicamente para escrever as histórias habitam em mim e me perturbam. Talvez é isso que tenha me movido a escrever, essa perturbação interior, essa necessidade de comunicação que um simples bate-papo com alguém não satisfaz. E dedicar tempo e energia a isso sistematicamente tem sido muito mais do que aquele mero exercício de sentar e colocar sentimentos e impressões no papel, coisas que eu fazia há 15 anos atrás. Li esses dias um caderno velho de anotações e me deparei comigo mesmo perdido, tendo anotado que estava sem rumo, não sabia que direção dar aos meus textos. Eu recomendava a mim mesmo ler mais teoria literária. (Ri sozinho agora porque lembrei que foi exatamente um livro sobre ensino escolar da escrita que me deu a chave toda, o Da redação à produção textual do Paulo Guedes). Afinal, pelo que entendo, a teoria literária está preocupada com o ‘produto’, digamos assim, de dar uma leitura para o objeto pronto, quando o que o escritor jovem precisa na verdade é entender o ‘processo’, as dinâmicas da construção.

E aproveito o ensejo para corrigir a minha leitura do Autran Dourado, o que fiz no post anterior. Claro que ele fala de enredo. O problema todo do romance é o personagem. Sem personagem não existe ficção; e o enredo é fruto disso, do que o personagem quer, dos seus dilemas, das suas angústias, das suas relações, etc.

A Carpintaria de Autran Dourado

Eu não lembro quando comprei o “Uma poética do romance/Matéria de carpintaria” do Autran Dourado (Difel, 1976). Provavelmente há uns cinco anos atrás. Acho que foi o Caio quem me falou do livro, e do quanto ele gosta de ler poetas e prosadores falando do seu ofício.

Ser um comprador compulsivo de livros tem dessas coisas, de a gente comprar o livro e só ler algum tempo depois. Tem alguns que eu leio logo. Outros precisam esperar pacientes na estante. Já tentei ler duas vezes o Em Busca do Tempo Perdido do Proust, naquela coleção linda de clássicos que a Abril lançou ano passado. Acho que não estou ainda preparado para ler o livro. Com o livro do Autran o mesmo aconteceu. Já tinha tentado ler o livro umas duas vezes, e ele não tinha me pegado. Acontece que comecei a lê-lo faz umas duas semanas e entrei no dito cujo. Essas coisas sempre que dão a sensação de que há livros para os quais precisamos estar prontos para eles, não adianta forçar a barra.

Por vezes penso que perdi uns dez anos da minha vida pensando ser poeta, quando ramblando (rambling) pelos arquivos do computador reparei que nesses dez anos eu sempre escrevi muita prosa também, ao lado dos poemas que eu anotava em cadernos.  Mudei de apartamento na semana passada e encontrei um velho caderno de 2006. Lá me deparei com uma anotação: “O velho emudece após uma ameaça de derrame. Passa cinco anos sem falar. Quando está pela boa abre a boca e diz que fica tudo pra Jandira, a empregada.” Ri sozinho ao ler isso. Por que eu nunca escrevi esse conto?

Por que eu não sabia escrever, esse era o problema. Depois de ter lido o “Da redação à produção textual” do Paulo Guedes, que me abriu os olhos para um bocado de coisas, como a concretude, o mostrar e não contar (o que ele chama de objetividade), e o questionamento: todo texto precisa ser uma espécie de resposta a uma questão, que não precisa estar necessariamente explícita no texto. O exemplo clássico é o Missa do Galo, do Machado de Assis, que começa fabulosamente: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos…” E daí por diante o conto todo é o narrador tentando entender isso. Genial, claro. Ou como a Terceira margem do rio, do Guimarães Rosa, o problema todo surge quando o pai do narrador resolve construir uma canoa, se enfia nela e passa a viver lá no meio do rio ancorado.

Voltando ao livro Autran. O principal problema dele é que pra entender o livro o cara tem que ter lido os livros do autor, senão não dá pra entender bulhufas do que ele diz. Eu não li nada dele, então… (já comprei o Risco do Bordado, que é analisado no capítulo ‘Planta baixa de um livro’, mas ainda não li). Assim, os ensaios de que mais gostei foram o ‘Personagem, composição, estrutura’, onde ele reclama que os críticos parecem não entender nada de personagem, exceção feita a Antônio Cândido, segundo ele o único que parece entender que o personagem na ficção não é e nem tem que ser de carne e osso, o requisito básico é ser coerente com a narrativa, já que a ficção não tem pretensão de ser análise antropológica ou sociológica, segundo ele. ‘Um depoimento pessoal’ também pode ser lido tranquilamente. No texto ele faz uma espécie de análise da sua trajetória literária e o que envolve a criação. O texto começa com uma reflexão entre ser o que ele chama de ‘um bom prosador’ e ser ‘escritor de romances’. O risco todo que se corre é o desejo ou audácia de se querer escrever bem, enquanto ainda o sujeito é incapaz de escrever um romance. Para ele Jorge Amado era um grande romancista, mas não era um bom prosador. Isso me lembrou de algo que o Assis Brasil comentou em uma das aulas: o problema de quem escreve é querer fazer literatura. E é nisso que tenho pensado ultimamente, muito mais em conseguir deixar de pé uma história, com personagens e enredo envolventes do que fazer floreios com a linguagem. Não dá pra querer ser um Picasso se o cara não consegue nem pintar uma paisagem direito, né?

A segunda parte do livro, o Matéria de Carpintaria, envolve uma séria de aulas de ele deu na PUC-RJ como escritor residente em 1974. As aulas todas versam sobre a feitura dos seus livros. O interessante é que ele relaciona as obras com a mitologia grega e principalmente nos conta como bolava o nome dos personagens pensando em significados míticos associados a esses nomes. Batizar um personagem de ‘Maria’, para ele, nunca é algo sem significado. Como disse, não li os seus livros, portanto essa parte do livro só serviu para despertar em mim o desejo de os ler, bem como me deu uma ideia bem interessante de como pensar os nomes dos personagens. Aliás, no Apêndice há um texto chamado ‘O personagem como metáfora’ e outro, que eu achei bastante bom também em que ele discute a questão da língua portuguesa e do problema todo de tomarmos o nosso padrão culto lá no século XIX tendo como base o padrão culto português (não lembro de a literatura linguística citar esse texto).

Provavelmente terei que ler a obra do Autran para poder voltar ao livro e saboreá-lo e apreciá-lo devidamente, mas isso vai demorar um pouco. Outro ponto negativo que vejo no livro é a pouca reflexão sobre a construção dos enredos, algo que eu esperava encontrar, embora todas as referências à mitologia e ao teatro clássicos sejam uma pista nesse sentido. A profusão de dramas humanos que a mitologia grega encerra é uma fonte inesgotável de temas e situações (Nelson Rodrigues que o diga).