Ser pai

Nunca quis ser pai. De verdade. Às vezes eu me pergunto por que é que eu fui me casar justamente com alguém que eu sempre soube que queria ser mãe. Mas é aquela coisa, a gente vai lidando com o que consegue controlar, os próprios medos, expectativas, desejos… entidades mutantes… e o negócio é que eu casei, passei num concurso público, me mudei para Porto Alegre e… por que não ser pai? Esse é ciclo tradicional da vida adulta e eu fui me deixando levar.

Eu poderia ter batido o pé. Ela sabia. Tínhamos conversado sobre isso algumas vezes. Eu não me via como pai. Eu, Luisandro, pai? Um colega de universidade, naquela época em que a Gisele estava tentando engravidar, me disse que também não pensava em ter filhos quando era jovem (aliás, coisa muito comum isso de não querer ter filhos entre professores universitários). Só que aconteceu. Depois de ser pai de duas meninas, ele não se arrependia. O sentido era o oposto. Naquela altura da vida, já cinquentão, disse que estaria arrependido se não tivesse sido. Aquilo virou uma chave em mim. Gosto de experiências novas e ao não ser pai eu estaria me privando de emoções que só filhos podem proporcionar.

Pula pra 2022. Sou pai de duas meninas, Gabriela (8) e Sofia (4).

Aparentemente, ser um bom pai nunca foi uma grande questão na arte (no cinema, na literatura). Deus pediu a Abraão pra sacrificar seu filho e ele foi lá sem pestanejar, embora fosse só um teste (Gên., cap. 22). Esse ‘deus pai’ da Bíblia eu dispenso. O mais comum na ficção e na história é os filhos estarem loucos pra tomarem o lugar do pai, ainda mais se houver poder envolvido (Édipo, Rei Lear, César etc.). O Jack Pearson, de “This is us”, é um bom pai, faz tudo pela família e, em vários sentidos, se sacrificou por ela. Talvez porque não exista aí uma questão.  No que eu discordo.

Não acho que seja fácil ser pai. Lembro dum texto do Marcos Piangers que dizia que o principal é estar ali, presente. Crianças são seres que demandam atenção e dão trabalho. Muito. Mais do que a coisa toda de ser pai (colocar alguém no mundo), o que mais me assustava era isso do trampo envolvido: dar banho, trocar de roupa, dar comida, levar pra escola, ajudar na lição, brincar, ter que ver todos os episódios de Ladybug e Princesinha Sofia etc. E o que me pega nem é tanto fazer essas coisas todas, que eu faço (reclamo, mas faço).

O que me afeta muito é que estou deixando de ver minha série pra ver as delas, deixo de ler meu livro para ler uma história para elas dormirem, há um bom tempo não vou ao cinema, e não me lembro da última vez que fui num show para ouvir música ao vivo ou num restaurante sem espaço kids e sem me preocupar se tem também alguma coisa para elas comerem lá. Basicamente a gente deixa de ser a pessoa mais importante da própria vida (frase que vi num seriado cujo nome me escapa agora). E isso assusta um bocado uma alma narcisista e egoísta como a minha. Na real, confesso, o que eu acho difícil é dar carinho.

A gente, bicho homem, não foi ensinado a dar carinho.

Parêntese: tive uns exemplos meio bostas de pai na família. Todos uns cachaceiros, grosseiros. Sabe esses avós grisalhos fofos que brincam com os netos no Natal? Pra mim é ficção. Meu avô materno largou minha avó quando minha mãe e meus tios estavam ali com seus dez anos e pouco, a deixou sem pensão, tirou as filhas meninas da escola e as colocou para trabalhar de domésticas. Baita exemplo. Do avô paterno me lembro vagamente, convivemos pouco. Sem falar que não conheço meu pai biológico…

Mas aí a vida me deu duas filhas meninas. E elas demandam muito carinho. Elas querem colo, querem ir no cangote. Digo que elas não são humanas, são micos que querem viver dependuradas no meu pescoço. Elas choram porque acabou a bateria do tablet, elas choram porque estão com sono e não querem dormir, elas choram porque não querem tomar banho, elas choram porque não querem sair do banho, elas choram porque o cachorro deu uma mordidinha que machucou a mão delas…

Uma voz em mim me diz pra sair correndo, outra pra ir lá dar um tapa na bunda delas, outra pra dar um grito. Pois foi isso tudo que eu vi os homens da minha família fazendo. E talvez tenha que ver um tantinho com essa minha personalidade desajustada também (torcendo aqui pra terapia concertar isso). Decididamente, não quero ser como eles. Mas outra também diz pra ir lá e dar um abraço, pegar no colo e fazer uma coceguinha. Na maioria das vezes, essa é a voz que tem vencido.

___

Trecho do Papo de Segunda dessa semana sobre paternidade (onde se inscreve pra ser amigo desses caras?). Ter um programa de televisão falando dessas questões é sintoma disso tudo que eu falei acima.

Procurando defeitos

Isso de ser linguista e escritor vai tirando da gente uma certa ingenuidade em relação à linguagem. Não posso mais falar e escrever com a liberdade daqueles que simplesmente jogam os chinelos a um canto e entram na quadra de terra batida pra bater uma bola.

Mas isso não é coisa só minha (nem poderia ser, né?). Nas redes sociais o povo é habilíssimo nesse escrutínio. O que me lembra daqueles caras que acham defeitos mínimos em cenas de cinema. (Haja tempo!) A literatura ainda se salva porque ela é feita de recortes, e o que fica de fora, muitas vezes, importa bem pouco.

Li no início do mês, Diário da Queda (Companhia das Letras, 2011), de Michel Laub. Me impressionei que ele falasse tão pouco, quase nada da mãe. Das mães da família em geral. Excluindo o amigo sem mãe, o narrador certamente tem uma e ela quase não aparece na narrativa. O foco está na relação entre os homens da família e tal. Entendo. Claro que entendo. Mas significa, não? Fiquei com a impressão de que a mãe dele era um ser passivo na relação dele com o pai, especialmente nos momentos decisivos dessa relação.

Em Better Caul Saul, uma complicação chave da segunda temporada é a adulteração de alguns documentos promovidas por Jimmy para ferrar seu irmão Chuck. Chuck tem uma intolerância à eletricidade. Vive às escuras, sem eletrônicos de qualquer espécie por perto. Por isso fiquei surpreso quando Chuck diz num episódio depois que seu suposto erro aparece que ele tem certeza de que digitou corretamente os documentos. Como assim ele “digitou”?

Muita gente se surpreende com os rolês das crianças em Stranger Things? Cadê os pais? Por que estão na rua até tarde? Crescer num subúrbio americano deve ter lá suas vantagens, mas crescer numa cidadezinha do interior do meio-oeste (que pra mim não tem nada de oeste, só meio mesmo) tem outras, como poder ir e vir de bicicleta pra todos os cantos e a cidade ter apenas um punhado de policiais. Essa foi a minha infância em União da Vitória. Eu e meu irmão mais novo apenas falávamos para nossos pais que estávamos saindo para ir na casa de algum amigo ou jogar bola na praça do bairro. Eles não se davam ao trabalho de ir lá conferir, claro. E muitas e muitas vezes íamos para outros lugares.

Por isso evito ler resenhas e críticas de filmes e livros antes de tomar contato com eles. Cruzei só de relance com o título de uma resenha do livro novo do C. Tezza, Beatriz e o poeta, e o título falava em ‘personagens ruins’. E agora, ao ler o livro, tenho achado o personagem do Gabriel, o poeta, um completo porre. Verborrágico, metido, até um bom tanto inverossímil (ninguém fala daquele jeito). É o Luisandro quem está achando isso mesmo ou minha leitura foi enviesada pelo que li?

Filme:

Deserto particular (HBO). A premissa é muito boa. Um oficial da PM é afastado após um ato intempestivo de violência durante uma instrução de soldados. Daniel, o personagem principal, cuida do pai, que tem Alzheimer, com quem mora, e que é PM aposentado. O personagem tem várias nuances e vamos sendo apresentado a elas aos poucos. Ele parece ser um macho tóxico por todos os caracteres que associamos a sujeitos que são militares, além de ele ter um biotipo fortão, calado e não reagir muito bem quando a irmã lhe conta que está namorando uma mulher. Isso tudo a gente descobre nos primeiros minutos do filme. A intriga começa a ficar interessante quando Daniel decide ir atrás da baiana de Sobradinho com quem vem trocando mensagens pelo Whatsapp. Não sabemos muito bem o que motiva a viagem, além do fato de ela ter parado de lhe responder. É apenas a paixão que o move ou é a vontade de simplesmente sair de Curitiba e se afastar dos problemas (o processo disciplinar, o pai… ). Chegando lá, ele procura Sara e aos poucos vai descobrindo que ela não é muito bem quem ele esperava. Li resenhas elogiosas, outras nem tanto. Para mim é nota 6. Os diálogos são bons, o enredo é bom, mas tem algo ali que não me agradou, como a mudança de perspectiva. O filme começa centrado em Daniel e num certo ponto passa a tratar mais da Sara.

Vendendo o próprio peixe

Não tenho talento para vendedor. Assumo. E vender o que fiz… aí a conversa fica ainda mais difícil.

Recentemente a escritora Aline Bei ficou nacionalmente conhecida por fazer propaganda de seus livros nas suas redes sociais, inclusive enviando mensagens para as pessoas anunciando a publicação. Seu livro, O Peso do Pássaro Morto, virou um best-seller e ela assinou um contrato com a Companhia das Letras. Claro, a qualidade do livro ajudou, mas como ela diz na reportagem, quem publica por editora pequena tem que fazer uma divulgação mais de porta em porta mesmo, já que não conta com a estrutura de divulgação e distribuição das grandes editoras

Me sinto como a Vanessa Guedes, meio sem jeito de pedir que as pessoas me leiam. “Tenho mais vergonha de compartilhar meus textos pelas redes sociais do que de ficar pelada em público, diz ela.

Eu também me sinto exposto. Embora não sejam meus sentimentos que estejam sendo oferecidos ali, para o escrutínio do público, temo um pouco que meus textos sejam lidos dessa forma (talvez porque eu leia um pouco desse jeito?). Além disso, vivo num meio em que muita gente escreve muito bem, tenho amigos que são referências nas suas áreas e às vezes me sinto o Obina querendo ser parceiro de ataque no time do Messi.

É um sentimento contraditório, porque ao mesmo tempo em que escrevo por escrever (escrevo em primeira instância para mim mesmo, escrevo o que eu gostaria de ler), também gostaria muito de que me lessem e compartilhassem suas impressões do livro e que ele alcance novos leitores. Entendo que mesmo a crítica negativa é boa, pois quer dizer que alguém se deu ao trabalho de ler o texto e ficou mexido o suficiente para escrever sobre ele. Eu ficaria lisonjeado se aparecesse uma resenha na Folha destruindo um livro meu.

Talvez por isso eu não goste de fazer autoficção. Já fiz, confesso timidamente. Mas tá escondido, o meu “romance de formação”.

Todo esse preâmbulo foi pra dizer que tenho dois livros publicados que estão em promoção por esses dias. Então, corram lá e aproveitem:

Como uma língua funciona (Mercado de Letras)

Verde, amarelo e vermelho (Kotter)

Um “car movie”

Vi no final de semana o filme Japonês “Drive my car”. Estou chamando de “car movie” porque em boa parte do filme o carro é o cenário para os diálogos ou mesmo para a exploração de grandes planos em que apenas vemos os personagens se deslocando por estradas. E venho aqui escrever sobre porque ele continua ressonando em mim. Esse é o poder da arte, não? A obra fica falando conosco mesmo depois que paramos de contemplá-la.

Kafuku é um diretor e ator que foi convidado para dirigir uma peça no festival de teatro de Hiroshima. Lá, descobre que terá uma motorista particular que irá conduzir seu carro. No princípio ele resiste, pois tem um método particular: gosta de ouvir o texto da peça que está ensaiando enquanto dirige. Nesse processo, as vidas de Kafuku e Misaki, a jovem motorista, vão se tocar e se aproximar naturalmente.

Kafuku perdeu há pouco tempo sua esposa, vítima de uma parada respiratória. Eles tinham um ritual. Durante o sexo, Oto gostava de contar histórias para o marido. Misaki, a motorista, também tem um luto recente: perdeu a mãe num deslizamento de terra que soterrou a casa em que viviam.

Há todo um entrelace de histórias no filme, de pessoas que lidam, trabalham com a palavra: o ator/diretor, os atores, a falecida Oto que era roteirista, o texto de Tchekov, “Tio Vânia”, sendo lido no carro, no ensaio da peça. E o que faz a motorista ali? Ela dirige calada, para que Kafuku escute o texto no carro, mas não terá ela também algo a contar? Não temos todos? Não é a palavra a ferramenta para lidarmos com nossos sentimentos?

Há uma série de detalhes. O jovem ator que teve um caso com Oto é escalado para interpretar Tio Vânia (que na peça de Tchekhov é um cinquentão, eu acho). Os atores passam dias a fio apenas lendo e lendo a peça e cada um lendo o texto na sua língua: japonês, mandarim, língua de sinais coreana. Tio Vânia é sobre o envelhecimento, sobre o desejo, mas seria também sobre a incomunicabilidade? Como “funciona” essa peça em que cada um fala uma língua? Na apresentação vemos um telão com legendas, mas há quem veja nisso que o que importa seria apenas a emoção veiculada, não o conteúdo (eu tenho cá minhas dúvidas). Os atores se sentem um pouco incomodados com o processo do diretor, de início, mas aos poucos vão aceitando melhor a sua condução. O jovem ator em certo momento perguntará ao diretor por que ele mesmo não interpreta Tio Vânia, já que tem idade adequada para o papel.

Há uma cena linda em que Misaki leva Kafuku num centro de reciclagem, mas é tudo muito limpo, com um ar industrial futurista (muito vidro e aço, praticamente sem cor), à beira-mar. Ali ela lhe conta a sua história.

Nota final: depois do filme resolvi reler o “Tio Vânia”. E também estou muito curioso para ler Murakami, o escritor japonês cujos contos inspiraram o roteiro do filme.

Livro novo

Quem nunca sentiu, pelo menos uma vez, aquela estranha sensação de ser personagem da própria vida? Quem nunca se perguntou qual é o seu papel nesse teatro? Talvez o protagonista de “Verde Amarelo Vermelho” não seja de fato um personagem. Talvez ele seja o leitor de
nossa história (o leitor, aliás, sempre me pareceu um tipo estranho de personagem). Talvez sejamos nós os atores. Ele nos mostra o quanto somos fictícios. O que não significa que vivamos de mentira, mas que atuamos sempre nesse espetáculo que é a realidade. Somos o Maurício interpretando nossa novela cotidiana. Mas, simples como ele, nem percebemos que, no nosso drama, somos sempre – e por direito – o personagem principal.

Caio Ricardo Bona Moreira

Disponível no site da editora Kotter: https://kotter.com.br/loja/verde-amarelo-vermelho-luisandro-mendes-de-souza/ (preço com desconto)

Disponível também na Amazon

Notas de leituras: Canto enforcado em vento

Rodrigo T. Gonçalves. Canto enforcado em vento. Curitiba: Kotter, 2020.

Nesse ano da peste, uma das poucas felicidades foi ler a produção dos amigos, como a do Caio, que comentei na semana passada. O livro de poemas do Rodrigo Gonçalves também foi uma dessas obras.

E aqui me lanço numa outra tentativa de entender conscientemente a sua poética, embora seja um esforço ingênuo e certamente não escaparei de dizer coisas óbvias. Tenho lido a obra poética de Wally Salomão (Toda poesia, Companhia das Letras) e me pego sem categorias para analisar sua poética, pois há muito não leio sobre teoria da poesia. [ O me segura que vou dar um troço é o quê? Poesia, diário, prosa poética, cadernos do cárcere?

De formas que aqui é um leitor de poesia escrevendo.

[Mas precisa teoria pra fruir poesia? Eu diria que não.]

O prefácio já traz uma chave para a leitura dos poemas. Lúcia Diniz fala em “poética da dissolução”. Embora eu deixe para ler os prefácios ou textos críticos depois de ler os livros, para não influenciar minha leitura, eu vi muitas coisas que ela viu. [O que me deu um alívio por não estar lendo “errado”.]

Não sei se eu usaria essa palavra para definir ou classificar ou achar um conjunto ou uma lógica na poesia do Rodrigo, embora ele mesmo use essa palavra na pág. 65: “e a dissolução leva tudo de volta/lava tudo pro novo ser”. De qualquer forma, ela também traz conceitos que giram por esse mesmo campo semântico: destruir, desfazer, descriação. Pra mim, é um livro sobre mudanças, embora esteja no bojo da “destruição” a ideia de mudanças de estados. Não dá pra separar uma coisa da outra.

O segundo poema da primeira parte começa com a palavra krisis, e traz versos como: “enquanto o espaço interno oprime-se em constante/esforço em se conter/em força sem substância, cor ou peso ou substância que se esforça contra/as bordas orlas/decisão”.

Vejo, em vários momentos dessa primeira parte, um eu-lírico lutando, mudando e se descobrindo, daí que outra palavra chave da poética é o “ser”: “se não tivessem inventado o ser/mas é”, diz ele na pág. 37. Outro indício dessa preocupação é o poema duplo, que na sua segunda parte traz versos como: “se esse espectro/ao não caber/pouco/- pouco/some/se sou eu”. Ou na parte VI: “O que te importa o que somos se você/é nada além de mim”.

O primeiro poema da segunda parte traz a palavra novo quatro vezes. E talvez a divisão em dois do livro busque capturar esses dois momentos: a destruição e a novidade. Num dos poemas dessa parte lemos, na pág. 103: “propõem-se fins/e enquanto esboço/fins eu viro chuva”. (de novo: algo acaba para que o novo surja). Desnecessário falar do simbolismo da chuva, da água ou mesmo do vento no título e dessa imagem que me custa capturar: o que nos indica essa aparente contradição, ou essa forca intangível? E no poema dessa mesma página vemos o ser a interrogar-se: “e o que resta de nós?/música/e um punhado de histórias?”

Claro que um autor que trabalha com literatura clássica não deixa de transparecer isso eventualmente nos seus versos. O livro mesmo é dedicado à Odisseia, e aqui e ali lemos nomes ligados ao panteão dos mitos e deuses gregos, bem como à filosofia ou à poesia latina: Apolo, Andrômaca, Glauce, uma epígrafe de Platão, um verso de Virgílio…

Mas há também menções a artistas contemporâneos, como às bandas Arcade Fire e Silver Jews. O que é mais um indício dessa articulação entre o velho e o novo. Embora, no plano da arte, não vejo destruição, mas retroalimentação.

A arte vive se refazendo, embora o verso livre tenha implodido a escanção do verso tradicional para surgir como possibilidade de expressão da poesia; embora menos musical, na sua exploração dos ritmos, mas música e poesia, mesmo assim. (Basta ver quantos poemas em verso livre de Wally Salomão foram musicados maravilhosamente ou quantas canções de Caetano exploram recursos do verso livre e da poesia concreta).

* * *

Assinei a newsletter da Aline Valek. Gostei bastante. Tem várias dicas legais, embora um pouco extensa. Comprei o último livro dela, Cidades afundam em dias normais. Espero conseguir chegar nele logo.

Aliás, acho bem legal esse formato. Já assino a do Daniel Galera, que infelizmente faz tempo que não manda nada.

Outro blogue que conheci recentemente é o da Camila Suzuki. Super recomendo.

Duas indicações

Entrei de cabeça na escrita de um livro de divulgação científica. Já redigi 70% do que planejei, por isso essa semana (e a próxima provavelmente também) não vou conseguir escrever nada novo.

Por isso vou só dar duas dicas essa semana:

– Para me inspirar e buscar ideias, tenho lido alguns livros de divulgação em língua inglesa. Reli o Linguistics: a very short introduction, de P. H. Matthews (Oxford, 2003). É um livro bem básico e trata de alguns temas gerais, como o que é a linguagem, como ela evoluiu na espécie, porque as línguas apresentam variações dialetais, com capítulos também sobre as famílias linguísticas e a relação entre linguagem e o cérebro. Ele tem vasta exemplificação e inúmeras ilustrações e não traz muitos termos técnicos.

– Li nos últimos dias um romance que me causou uma impressão incrível. A vegetariana, da escritora coreana Han Kang (Todavia, 2018), conta a história de Yeonghye. A protagonista acorda um dia e decide parar de comer carne. Mas não se engane, embora essa decisão afete a vida de várias pessoas, não é um livro sobre uma mulher que decide se tornar vegetariana. É muito mais. O livro tem três capítulos e cada um deles é narrado por um personagem que tem sua vida afetada pela decisão de Yeonghye. O primeiro é seu marido, o segundo seu cunhado e a terceiro é a sua irmã. Todos são infelizes nos seus relacionamentos e levam vidas sem graça. O marido é o primeiro a iniciar o relato e ele acaba não suportando a súbita mudança de hábito da mulher e pede o divórcio, pois ao mesmo tempo em que para de comer carne, ela perde todo interesse por ele ou por qualquer outra coisa. Me pareceu que ‘vegetariana’ tem mais a ver com o desejo da protagonista de virar um vegetal, como se cansada da sua humanidade vazia de tudo (sentido, amor, afeto). O momento mais bonito do romance é o segundo capítulo, quando o cunhado se aproveita da fragilidade emocional dela para convencê-la a posar nua para um vídeo seu. O capítulo final relata o suplício por que ela passa no hospício, no qual foi internada pela irmã, que começa a se perguntar qual é o seu papel no seu destino, pois vê Yeonghye parar de comer e ir definhando aos poucos

Notas

35

– Tenho me concentrado na escrita de um livrinho de divulgação de linguística, pensado para o público em geral, mas especialmente para o ensino médio. As introduções à linguística que circulam pelo país me soam todas entediantes e escritas para o universitário. O diletante não passaria do segundo parágrafo das nossas introduções mais vendidas. Minha ideia é contar um pouco da história da linguística e falar um pouco de suas áreas duras hoje, encarando a linguagem como um objeto científico. Vamos ver como me saio.

– Por conta disso vou dar um tempinho na ficção. Nas últimas semanas submergi na revisão de um romance que eu queria muito finalizar e acho que dei o meu melhor. Mudei o final, que não me satisfazia. E acho que agora estou um pouco mais feliz com ele, embora ainda não totalmente. Tem partes que eu gosto muito e outras nem tanto. Não sei ainda como tirar isso da gaveta. Acho que vai ser pela Amazon mesmo. Mandei a proposta para uma editora em 2015 e não fui respondido. Daí desanimei. Talvez devesse tentar de novo.

– Eu tinha começado um diário e meio que larguei mão. Minha última entrada foi em 25/05. Talvez porque a gente tenha vindo para a casa da minha sogra no interior, acho que eu saí um pouco do meu lugar, do que eu pensava para o diário, embora minha rotina tenha mudado pouco: escrevo pela manhã, leio à tarde e/ou ajudo a Gabriela com as tarefas da escola. Me exercito dia sim, dois não, dois sim, um não e assim vai. Embora fosse um diário, seria um diário ficcional, em que eu já previa que ia desistir dele algum momento.

– Estou relendo Memórias Póstumas. Eu já estava com vontade de reler desde o ano passado. Gosto muito do Machado e a prosa dele sempre me contamina de um jeito positivo. A argúcia, o olhar, a fluidez da prosa, a precisão com que faz comparações e alusões… sem falar na imaginação. O realismo foi a melhor coisa que lhe aconteceu, embora ele seja um autor que tem um apreço não desprezível pela fantasia e pelo absurdo (vide o alienista, o espelho etc.), a própria filosofia do Quincas Borba, que já aparece no Memórias, tem algo de absurdo. Não sei se entendi direito o que o Schwarz tinha em mente com a expressão ‘ideias fora do lugar’, mas o Quincas é um pouco isso, acho, o cara que bebe da filosofia europeia, quer criar algo próprio e o que sai é uma maçaroca. Deu nisso daí que vemos hoje: o brasileiro nacionalista se abraça na bandeira norte-americana e de Israel, que nos desprezam. Vai entender! Fora que é um livro que prova que não é preciso enredo nenhum pra se ter um livro bom: são as memórias de um morto, memórias de um cara que não fez patavina que preste na vida. Tem algum acontecimento de vulto? Alguma aventura? O próximo que a gente chega duma cena emocionante é quando o marido da Virgília aparece de surpresa na casinha onde os amantes se encontravam, obrigando Brás a se esconder.

– Revi Sonhos do Kurosawa (1990). O segmento sobre o van Gogh é ainda um dos meus favoritos. O último também. Como ele aproveita os espaços e as cores da natureza! E pensar que o medo dele era a energia nuclear!

– Antes que eu me esqueça. Dêem uma força. O livro tá baratíssimo ou pode ser lido de graça no Unlimited.

Escrevendo ficção

Aproveitando o confinamento para limpar os meus arquivos digitais, resolvi tirar da gaveta algumas coisas. Reli alguns textos e ainda gosto deles. Como já tem um tanto de bobagem escrita (e mal escrita, em muitos casos) com meu nome por aí. Umas a mais, umas a menos não farão diferença.

Uma dessas coisas é um romance, que comecei a esboçar durante a oficina do Assis Brasil em 2013 e que escrevi em 2014. Voltei a ela em alguns momentos em 2015 e 2016. Até agora não me satisfaço ainda com o final. Essa é uma dificuldade que eu sinto. Não consigo gostar dos meus finais. Mesmo tendo sido a narrativa mais cerebral. Talvez falte um pouco de imaginação a ela, por isso o final não me agrada ainda. Não sei. Estou revisando o texto, polindo aqui e ali e matutando um final melhor.

A história é centrada em Maurício, um taxista de seus vinte e poucos anos que largou a escola e sonha em ser árbitro de futebol. Mas pra isso ele precisa antes terminar o ensino médio e enfrentar outros pequenos desafios que a vida vai colocar diante dele, bem como fazer algumas escolhas. É bem realista e tento situar a história ali por 2011, 2012. Tem uma certa euforia pelo sucesso econômico do país. E ele está vendo os amigos e pessoas da família melhorando de vida e ele não consegue.

De qualquer forma, aqui vai um trecho.

__________

Priscila insinuava a mão para dentro das suas calças e pedia para que ele pagasse um Keep Cooler pra ela, sua a bebida favorita. “Gostei de ti”, se insinuou. E antes mesmo de ela terminar a sua bebida e ele a sua cerveja, foram para o quarto.

Uma hora depois, ele saía com o telefone dela salvo no celular. Ricardo, àquela altura, rodopiava no meio do salão com a sua loira no cangote, ao som de um sucesso sertanejo que tocava na jukebox.

Não deveria ter ligado. E ela não deveria ter parado de lhe cobrar. Em que momento tinha passado do papel de cliente fiel para o de amante? Foi no momento em que ela disse para ele guardar o dinheiro. Era a primeira vez que se deixava gozar com um cliente. Um segredo, dizia ela, que as velhas cafetinas ensinavam, para não se apaixonarem. Não beijar na boca de língua, nem gozar. Nunca.

Era com esse tipo de mulher que ele estava fadado a ficar? Se considerava meio dela. “Não se sinta na obrigação de me ligar. Gosto de ficar contigo. Não quero que tu largue a família por mim”. Ele se admirou depois, ao pensar com cuidado nesse moralismo esquisito. Ganhava a vida como prostituta, mas não queria desmanchar casamentos. O que tinha começado como uma escapadinha virou um encontro regular, pelo menos duas vezes por mês. Priscila o admirava. “Nunca conheci ninguém que fosse juiz de futebol”, disse certa vez, “saí com um jogador do Grêmio que apareceu lá na boate uma vez, reserva, nunca jogava. Foi embora pra Europa, eu acho, um tempo depois”. Não lembrava o nome dele. Não era famoso. Ela contava que não teve condições de estudar porque engravidou cedo e precisou trabalhar para sustentar a filha, cujo pai não assumiu a criança e tempo depois foi embora da cidade.

“A Janete passa o dia todo naquele sofá vendo televisão, fazendo as unhas, na internet”, ele compartilhava. “Eu queria uma mulher que me empurrasse pra frente. Parece que ela me segura parado no tempo”. Sentia serem confidentes.

Em outubro do ano anterior a esposa tinha surgido com a ideia de irem pra praia no final do ano. Ele achou que era brincadeira. “Com que dinheiro?”. “Damos um jeito”, ela respondeu. O que significava que ele teria que dar um jeito. “Tu me prometeu, se lembra?”. Ele não lembrava. Todo mundo iria para a praia. Só eles ficariam na cidade.

“Todo ano é a mesma coisa, só a gente derretendo nesse inferno”. Ele perguntou quem iria. Ela listou nomes de parentes seus. “Poderíamos ficar no teu primo, no Campeche. A casa não é do teu padrinho mesmo?”. Era um primo que não via fazia uns cinco anos. Não se sentia confortável de entrar em contato apenas para ficar na casa dele para ir à praia. Nunca ligou pro cara pra saber como ele estava. E agora aquela?

Janete tanto insistiu que ele ligou.

Claro, tudo bem, eram benvindos. O problema seria conseguir o dinheiro. Fez jornadas de doze horas em alguns dias. Se saiu ridiculamente nas provas que fez, deixou de entregar trabalhos, reprovou por faltas em duas disciplinas. Dezembro chegou e o dinheiro ainda era pouco. Se obrigou a ceder aos convites de Ricardo e foi à noite de carteado no bar do Alemão.

A jogatina acontecia numa sala escondida nos fundos. Entrava-se por uma porta que dava para uma cozinha e dela para a sala de jogos. Ali rolava cacheta, pôquer, canastra. Tudo à dinheiro. E também tinha máquinas caça-níquel. Ganhou uns trocados. Era sorte de principiante, Ricardo brincava. Não importava. Tinha ganhado dois mil reais em duas noites. Dinheiro suficiente para pagar alguns picolés para a filha e um biquíni novo para a mulher… e passar uma noite no motel com Priscila.

Quatro cervejas depois pediu um espumante. Quando se deparou no outro dia com o gasto de quinhentos reais foi que a consciência lhe foi comprimida. Assim como  o dinheiro veio, foi-se. Algum pequeno mecanismo se desligava dentro dele quando bebia, como se o amanhã fosse só um lugar distante que nunca visitaria, como se o dinheiro que tinha no bolso naquele momento fosse um tipo de dinheiro que iria se evaporar antes do amanhecer e que precisava ser gasto naquele preciso instante.

No dia seguinte, mesmo depois do banho, sentia o perfume da amante nas roupas, nas mãos, debaixo das unhas, no carro. Evitava o olhar de Janete em casa, como se ela fosse descobrir neles o seu crime e lhe acusar: “De quem é esse cheiro na tua camisa?”. Ele não teria alternativa senão confessar tudo. No culto pedia perdão, tentando diminuir o peso na consciência, mas o vazio no bolso o incomodava. Incomodava mais do que saber que tinha traído a mulher. Boca-aberta! Por que fazia aquilo com ele mesmo?

Depois da ceia de Natal na casa dos sogros partiram para Florianópolis. Pensou no pai durante o jantar. Ligou. Ninguém atendeu. Torceu para que ele estivesse com Daiane e não em um boteco qualquer do bairro. Passaram sete dias felizes. Com o calor úmido das noites da ilha, seus corpos se redescobriram nas madrugadas silenciosas da casa.

Tudo ficaria bem dali em diante. “Eu falei que daria certo?”, ela lhe disse enquanto a BR101 se estendia à sua frente no caminho de volta para casa.

A pilha de contas na caixa do correio os trouxe de volta das férias. Se obrigou a atrasar luz e água para poder pagar o cartão de crédito. Dobrou a jornada de trabalho para colocar em dia as contas, até que veio fevereiro e as aulas recomeçaram. Tudo de novo?

E não sabia ele, ainda, que das férias Janete trazia um filho na barriga.

_____