Pra começo de conversa, sou professor universitário e é claro que falo dessa posição. Mas também sou um servidor público, um cidadão e um pai de família. Também falo desse lugar. Talvez seja óbvio afirmar isso, mas creio que não (considerano a época em que estamos). Se ocupo alguns desses lugares hoje é porque a sociedade me permitiu que eu enfrentasse os obstáculos que minha condição social me impôs armado não apenas do meu esforço, mas de oportunidades. Posso me considerar um sujeito de sorte, como diz a canção do Belchior, pois consegui muitas coisas que colegas meus de escola e vizinhos da rua não conseguiram. Por isso tenho desconfiança da noção de meritocracia. É óbvio que o esforço individual é importante para se conseguir qualquer coisa na vida, mas ele de nada vale se a sociedade não dá oportunidades ao indivíduo.
Fiz todo meu ensino básico em escola pública e comecei a trabalhar cedo, aos 12 anos. Aos 16 já tinha carteira assinada e CPF. Como muitos adolescentes da minha escola, estudava pela manhã e tinha um emprego à tarde. Além de ser office boy, eu fazia de tudo um pouco numa tipografia do bairro. Eu gostava pra burro da profissão. E com o tempo eu dominava quase todos os processos dentro da gráfica: compor com tipos móveis, cortar papel, imprimir, acabamento etc. Se eu não tivesse entrado na faculdade, acho que teria seguido com essa profissão o resto da vida, como meu pai. E como tenho um tio que tem gráfica, então muita gente da família em algum momento da vida trabalhou pra ele. Quando minha família me pôs trabalhar com ele não era apenas uma questão de necessidade: eu estaria aprendendo uma profissão.
Em abril de 1998 eu mudei de emprego. A firma em que eu trabalhava estava quebrando e surgiu uma oportunidade em outra. Não pensei duas vezes. Só que o novo patrão queria que eu trabalhasse o dia inteiro, o que fiz a partir de julho, quando vieram as férias. Assim, eu terminaria o ensino médio estudando à noite. Só que numa segunda do início de setembro chegamos para trabalhar e a firma estava fechada. Esperamos uns instantes até que chegou alguém para nos avisar: o dono tinha fugido. Eu tinha mudado de turno por conta do serviço, e agora eu estava desempregado e não tinha recebido integralmente pelos quatro meses trabalhados.
Passei aqueles três meses finais do ano estudando durante o dia. Acho que foi só por isso que passei no vestibular. À noite, eles estavam um bimestre atrasados no conteúdo. Coisas que os professores estavam passando em setembro eu tinha visto em junho pela manhã. E o que eles ensinavam eu estava estudando sozinho.
Eu não tinha muita dimensão do que significava ter ingressado numa faculdade pública. Eu tinha 17 anos (faço aniversário em julho), lia tudo que me dava vontade, e como estava desempregado, podia passar o dia lendo. Pelo menos até meados de agosto, quando consegui um emprego numa gráfica e o tempo para ler ficou mais curto. No segundo ano eu prestei o serviço militar. No terceiro eu consegui um emprego como caixa numa rede de farmácias. Trabalhava de madrugada e dormia durante o dia. Felizmente, o gerente era gente boa e deixava eu ler durante o expediente. Afinal, não tinha muita coisa pra se fazer da 1h da madrugada até as 6h, período em que o movimento ficava bem fraco. Passei os dois últimos anos da faculdade nesse emprego e mais um ano depois de formado até passar no mestrado.
Deixava de dormir para fazer estágios e trabalhos. Dormia nas aulas às vezes (dormir durante o dia não é a mesma coisa) por puro cansaço. Uma coisa de que eu sempre gostei era a tal da aula: ler coisas e conversar sobre elas com pessoas inteligentes e interessadas foi a experiência mais legal da graduação. Tinha muita aula chata, tinha muito professor que só enrolava, mas quando as aulas eram legais, eu me engajava. Eu tinha fama de inteligente, mas eu não era um bom aluno. Não tirava notas muito altas, pois nas disciplinas que me interessavam pouco eu fazia só o essencial.
Nos dois últimos anos comecei a me interessar em participar de projetos, grupos de estudos… eu queria estudar mais do que eu via sala de aula. Mas não tinha nada disso lá, pois os professores a maioria dos professores não se dedicavam exclusivamente à faculdade. Na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV) não tinha bolsa para nada: iniciação científica, monitoria? A gente nem sabia o que era isso. Só fui descobrir que tinha gente que ganhava uma grana para fazer pesquisa num congresso de que participei no segundo ano. Congresso em que fiz um minicurso de Análise do Discurso e comecei a pensar mais a sério sobre me aprofundar em linguística. Alguns professores perceberam meu espírito científico e me incentivaram a buscar um mestrado. Pesquisei, pensei, e escolhi a Universidade Federal de Santa Catarina. Não passei na primeira vez. Na segunda tentativa passei em segundo lugar e consegui bolsa. Era o meu sonho. Eu ia finalmente passar o dia estudando e ainda iria ganhar um dinheiro para fazer isso. Se não fosse pela bolsa, eu jamais teria conseguido fazer o mestrado.
Às vezes faço um exercício de contrafactualidade: como teria sido minha vida se eu não tivesse cursado uma faculdade pública. Sempre gostei muito de estudar. Não sei se teria sido feliz num emprego no comércio ou no setor gráfico. Não sei. Talvez tivesse me acomodado, casado e seguido a vida, trabalhando para pagar as contas, sofrendo com desemprego em épocas de crise como a maioria dos brasileiros. Provavelmente eu teria feito uma faculdade qualquer paga, como muitos em naquela região do sul do Paraná e planalto norte catarinense (administração, contábeis?). Cheguei a fazer o concurso para a Escola de Sargentos das Armas (ESA) durante o período em que prestei o serviço militar. Acho que foi meio por inércia. Muitos colegas fizeram e arrisquei também. Não passei. A vida sabe o que faz com a gente, pois eu não nasci para aquela vida. Tenho profunda desconfiança do papel da autoridade e sou questionador. Não gosto de seguir regras. A burocracia e a papelada do dia a dia na universidade me causam um enfado pesadíssimo. Que outro destino teria um filho de trabalhadores de classe média baixa? Meu pai foi gráfico a maior parte da vida e se aposentou nessa profissão. Minha mãe trabalhou como doméstica por muitos anos até virar balconista no comércio, profissão que exerceu até morrer.
A pós-graduação foi uma experiência transformadora em vários aspectos. Ganhar um salário para estudar era inimaginável para quem apenas cinco anos atrás tinha entrado na faculdade. Em 2004 eu era um guri de 22 anos vindo do interior que ganhava um salário para estudar. Muito poucos eram como eu. A imensa maioria tinha feito iniciação científica ou pelo menos estudado na UFSC e conhecia de perto como funcionava a pesquisa na área, pois tiveram professores na graduação que eram pesquisadores, portanto sabiam dos seus projetos e interesses.
Minha meta era terminar o mestrado e voltar para o interior para trabalhar na faculdade onde eu tinha estudado. Era o máximo que eu poderia almejar, eu supunha. Agora eu estava no meio de um monte de gente muito inteligente e estudiosa. Eu não me destacava mais, eu era mais um. Embora a graduação tenha me fornecido conhecimentos para entrar no mestrado, eu sentia que sempre estava correndo atrás, buscando preencher lacunas na minha formação. E essa sensação era brutal quando eu ia para congressos e conhecia gente de outras instituições, como USP, Unicamp, UFPR, UFRJ, UFMG… aquelas pessoas eram muito (mas muito!) inteligentes. Fui um pouco sortudo, eu acho, por ter conhecido e feito amizade com tantos feras, gente que hoje ocupa lugares importantes em universidades no Brasil e até no exterior. Isso tudo foi estimulante.
Tive que aprender a abordagem teórica da minha pesquisa ao mesmo tempo em que a desenvolvia. Era a primeira vez que eu me via precisando estudar com afinco. Embora, hoje, eu perceba que poderia ter me dedicado muito mais. Aqueles 2 anos passaram muito rápido, minha orientadora me estimulou a prestar o doutorado. Passei em terceiro, mas as bolsas de doutorado eram escassas.
Naquele primeiro ano de doutorado trabalhei como professor na rede pública estadual em Florianópolis. 20h semanais. Eu tinha pouco tempo para estudar. Pensei em desistir do doutorado, prestar concurso para qualquer coisa que me desse um sustento, pois eu não conseguia me dedicar plenamente às disciplinas. Tive que abandonar uma disciplina na filosofia porque não conseguia assistir as aulas e fazer as leituras, que embora não fossem numerosas, exigiam tempo e releituras. Em poucas semanas eu já estava atrasado na leitura, não acompanhava mais as discussões e os exercícios ficaram incompreensíveis. Me senti um fracassado: comecei a questionar o meu talento para a linguística formal. Eu era burro demais para aquilo.
Eu nunca tinha sido excepcional na vida (mesmo tendo fama de inteligente na escola e na faculdade). Embora eu tivesse conseguido ter A em todas as disciplinas do mestrado, não escrevi uma dissertação fora de série. No doutorado as exigências eram mais altas, e eu começava a duvidar se eu seria capaz de fazer uma contribuição significativa para o campo, embora minha orientadora dissesse que meu projeto era promissor. Eu discutia questões semânticas de orações comparativas em português que eram pouco discutidas na literatura, usando uma abordagem do significado que o modela usando ferramentas da lógica. Poucas pessoas fazem isso no Brasil. Logo, a chance de eu conseguir dizer alguma coisa que ninguém ainda tinha dito era grande. Mesmo assim… fui levando, já que não sou muito bom em tomar decisões rapidamente. Se eu puder, adio ao máximo. O ano passou e em dezembro consegui bolsa para terminar o doutorado. Acho que teria desistido sem a bolsa. Pelo menos adiado ou tentado o doutorado em outro lugar.
Em 2008 consegui uma bolsa para fazer um ano do doutorado no exterior. Pude passar um ano em uma das dez melhores universidades do mundo, a Universidade de Chicago. Tive acesso a tudo que os alunos de lá tem: bibliotecas, aulas, professores, laboratórios. E o mais importante: um orientador que me dava atenção. São inúmeros os relatos de gente que faz esses programas e fica abandonado. Eu participei de grupos de estudo, de pesquisa, assisti aulas (embora não fizesse as avaliações), conversava quase semanalmente com meu orientador, conversava com gente interessada em linguística e conheci pessoalmente muitos pesquisadores importantes da minha área. Tinha acesso a qualquer texto de que eu precisasse. Praticamente tudo que eu queria ler a biblioteca tinha ou tinha os meios para conseguir (acesso a bases de dados de teses digitalizadas, por exemplo). Isso me deu outra visão sobre a vida universitária e a pós-graduação em particular. Na UFSC o trabalho era um pouco solitário e ali eu sentia uma visão de trabalho em conjunto, de colaboração. Escrevi metade da minha tese lá. Tínhamos um grupo de estudo em 2004, que capengou um tempo e esmoreceu. Quando eu voltei em 2009 ajudei a reanimar o grupo de estudos com minha orientadora (que conhecia gente na filosofia), o marido dela na época e os orientandos deles na graduação e na pós. O grupo está firme e forte até hoje.
Nesse segundo semestre terminei a minha tese, prestei alguns concursos (reprovei nos 3 que prestei), fiz estágio de docência, participei de congressos. No começo de 2010 defendi. Minha tese tinha vários probleminhas, mas foi aprovada. Não foi o melhor que eu poderia fazer, mas foi o que eu consegui fazer. Sempre tenho essa sensação em relação às coisas que eu faço: poderia ser melhor se eu tivesse me dedicado um tantinho mais. Só que os prazos e a vida atropelam a gente, sabe? (É uma desculpa esfarrapada, tô ligado.) Minha tese poderia ser bem melhor se eu tivesse conseguido ver algumas coisas que eu só vi dois anos depois. E que só vi porque eu consegui nesse período continuar pensando sobre o tema da minha tese. Mas se grandes referências da área não fizeram grandes contribuições nas suas teses, quem era eu pra fazer? E isso que fazer contribuição na minha área é oferecer uma denotação formal nova para uma expressão linguística. É algo aparentemente simples, mas não trivial.
Eu tinha 28 anos e era doutor. Eu já tinha conseguido uma bolsa de recém-doutor do CNPq para fazer pós-doutorado na USP. Eu deveria ter ido, mas por razões pessoais acabei ficando em Florianópolis e trabalhei como professor substituto na UFSC naquele primeiro semestre. Também por essa época prestei concurso na UFPR e passei em terceiro. Tinha duas vagas. Aquilo me animou. Meu desempenho nas provas foi muito próximo de gente mais experiente e só não fiquei melhor colocado porque era recém-doutor. Em agosto voltei para União da Vitória para trabalhar como substituto na FAFI, onde ficaria os próximos dois anos, até ser aprovado em concurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em março de 2012, onde estou até hoje.
Hoje sou funcionário público, professor universitário e linguista. Defender a universidade significa não apenas defender o meu ganha-pão. Me vejo como um trabalhador como outro qualquer. Claro, eu tenho alguns privilégios que outras profissões (e mesmo professores da educação básica) não têm: dois períodos de recesso por ano, 45 dias de férias, não preciso bater ponto, estabilidade no emprego. Ninguém hoje, consegue chegar a um lugar desses sem bolsa, sem incentivo público. Contando graduação, mestrado e doutorado, foram 10 anos da minha vida dedicados aos estudos.
Minha carreira começou quando eu tinha 28 anos (Apesar de eu já ter cinco anos de carteira assinada até entrar no mestrado). Muita gente nessa idade já está casada, com filhos e pagando o financiamento da casa própria. Escolher a carreira universitária significa abdicar de pelo menos uns 6 anos da vida profissional. Isso se o sujeito não passar ainda mais uns anos entre bolsas de recém-doutor e contratos precários de substituto que podem durar de 6 meses a 2 anos, até conseguir um emprego fixo passando num concurso. Ninguém vê isso. No exterior não é muito diferente. Em muitos lugares leva-se 5 anos para se fazer um doutorado e muitos passam ainda uns 2 ou 4 anos de bolsa de pós-doutorado em bolsa de pós-doutorado até conseguirem um emprego fixo.
Na letra fria dos números pode ter sido dinheiro que o governo jogou fora. Para que mais um doutor em linguística? Hoje eu faço parte de um conjunto de professores que formam outros professores e profissionais do texto e da palavra (professores de português e línguas estrangeiras, revisores, tradutores, editores etc.). A grana que a sociedade brasileira investiu em mim retorna para a sociedade todos os dias quando eu saio de casa para ir na universidade dar aula, orientar minhas bolsistas de iniciação científica ou desenvolver outras atividades necessárias para o andamento da universidade. Essa grana se reverte no conhecimento que eu produzo escrevendo, traduzindo e colaborando como parecerista na atividade de publicação de vários periódicos pelo país, na avaliação de teses de dissertações de outras universidades. Esse conhecimento faz diferença? Vai acabar com a fome no país? Vai melhorar os índices de leitura e escrita? Vai acabar com os problemas do sistema tributário? Talvez não acabe com problemas práticos. Talvez, se eu for um bom professor, eu seja capaz de formar bons professores, que irão formar cidadãos que serão profissionais melhores do que os pais deles foram. E mesmo que não sejam professores, talvez essas pessoas se tornem policiais ou burocratas mais humanos.
Em 1999, quando eu entrei na faculdade, eu tive apenas duas professoras que eram mestres. Todo o restante do corpo docente era especialista, e um ou outro ali se dedicava exclusivamente ao ensino superior. Quando eu retornei para lá em 2010, além de mim, tinha mais dois doutores formados e dois doutorandos. Todo o restante do corpo docente era mestre e tinha só duas especialistas. Creio que hoje a formação do corpo docente deve ter subido mais um pouco ainda. E, além disso, muitos lá podem agora se dedicar somente ensinar, pesquisar e a fazer extensão. Tenho certeza de que essa formação e o tempo de dedicação exclusiva contribuem para que eles formem profissionais melhores e estabeleçam projetos em parcerias com escolas, garantindo oportunidades de formação continuada para os professores da região.
Assim como o investimento público mudou a minha vida, ele muda a vida de cada um que passa pela universidade e consegue passar pelas peneiras que ela impõe. As universidades são ambientes extremamente competitivos e meritocráticos, não se enganem. Para progredir na carreira somos avaliados semestralmente pelos alunos e pelas atividades que exercemos (em pesquisa, ensino e extensão). Para ter bolsa de iniciação científica o professor precisa de produção escrita constante. Esse critério é mais duro ainda na pós-graduação. Para dar aulas no mestrado e doutorado, e eventualmente orientar mestrandos e doutorandos, é preciso publicar pelo menos 2 artigos por ano. Isso é o mínimo. Isso quer dizer que a cada 6 meses preciso de um texto novo saindo do forno e aprovado para publicação.
Por isso me assusta quando o ministro da educação fala que “temos doutores demais” ou que temos que formar engenheiros e veterinários. Claro que temos que formar engenheiros e veterinários, como temos que formar professores de todas as matérias e pedagogos. Deixar de investir na educação superior significa jogar fora anos de investimento na formação profissional dos brasileiros. Não sei se hoje podemos dizer que estamos bem abastecidos de doutores. Os concursos nas universidades estão cada vez mais concorridos, o que significa que estejamos num teto (embora eu creia que o sistema acabe absorvendo essas pessoas de uma forma ou outra). Mas cortar os investimentos significa acabar com o sonho de muitos talentos que desejam estudar e pesquisar, significa deixar de dar oportunidade para que a inovação aconteça, seja em que área for.