O esporte favorito do professor é reclamar de aluno

Essa semana um professor universitário rateou no Twitter que os alunos não leem os textos das aulas. O tuíte rendeu um pequeno bafafá. Para ele, é difícil entender esse comportamento, já que, em tese, esses alunos estão num curso que escolheram.

Como é costume meu, lá vou eu falar da minha experiência na coisa. É o que consigo oferecer.

Fiz graduação numa época difícil, fim dos anos 1990, início dos 2000. Eu não tinha grana para comprar os livros de inglês e sempre me faltava para tirar cópias dos textos. A biblioteca da FAFIUV na época era ridícula de pequena e também não tinha material para todos os alunos. Lembro de que comprei apenas os Fundamentos da Linguística contemporânea, do Edward Lopes naquele primeiro ano. Foi o que deu pra fazer. A professora de sociologia passava uma carga grande de leituras e não li a metade, até onde me lembro. Mas outras disciplinas eram mais tranquilas, como a Teoria Literária, que não tinha lá muita leitura teórica. Ou vai ver eu não tinha grana pro xerox mesmo e me virava assistindo as aulas, fazendo anotações ou emprestando o texto do povo.

Claro, aos poucos fui comprando outras coisas, como uma gramática, um bom dicionário de inglês… e ao final do curso eu tinha um pequeno acervo. Pequeno mesmo.

Como professor eu gosto de dar leitura pra moçada, mas ao mesmo tempo tenho consciência de que o público do curso de Letras é, na sua maioria, um povo que também trabalha, mora longe, vive com grana contada etc. As disciplinas que eu leciono são mais ‘técnicas’, digamos assim, o que me permite assumir ali um livro texto e não ficar entupindo eles de referências. A vantagem dos livros-texto é que eles apresentam o conteúdo básico e essencial da área. Quando quero discutir algo a mais coloco como referência complementar e sugestão de leitura. Hoje temos a vantagem de digitalizar os textos, assim ninguém mais precisa ficar gastando com fotocópia. Sem contar que o preço dos livros não é tão caro assim e as editoras volta-e-meia fazem promoções.

Perguntei aos meus alunos se eles conseguiam vencer a carga de leitura das disciplinas que estavam cursando. Ninguém disse que conseguia. Se nas minhas disciplinas imagino ali um conteúdo por volta de 15-20 páginas/aula, certamente tem professores que pedem mais. Muito mais. Não os julgo. Também adoraria usar o manual do Saeed (Semantics, Blackwell) com 500 páginas.

No mundo ideal, nossos alunos se dedicariam exclusivamente ao estudo em sala de aula durante 20h por semana, o que sobraria outras 20h para leitura e outras atividades. Pesquisas mostram que 61,8% dos alunos de instituições privadas trabalham, enquanto nas instituições públicas o percentual de alunos que trabalham é de 40,3% (Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/mapa-do-ensino-superior-aponta-para-maioria-feminina-e-branca).

Que os alunos não leiam não me surpreende. Acho até que eles tentam (tá, eu sou um bom moço que acredita ainda na boa disposição dos jovens para o aprendizado). Mas é aquela coisa, tem dias em que o que o aluno quer é maratonar o livro que está lendo por prazer (risos) e talvez a nossa aula seja aquela aula porre que o aluno vai só porque é obrigatória mesmo.

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Documentário: O silêncio dos homens (Youtube). Vi semana passada. Documentário extremamente necessário. Tenho pensado muito sobre masculinidade tóxica (também porque tenho lido muitas mulheres, sempre gostei de lê-las, a propósito) e a dificuldade dos homens em falar dos seus sentimentos é só mais uma faceta dessa cultura masculina heteronormativa que só faz mal a todo mundo.

Dario. (Caio R. Bona Moreira, Humana). O livro faz parte da coleção Biografemas. Além dos traços típicos da biografia, o livro é o relato de uma jornada pessoal. Dario Velloso foi objeto da tese de doutorado de Caio e nesse relato curto o autor se volta para a busca pelo escritor enquanto personagem, tocando em vários aspectos da vida do biografado, um dos grandes nomes da poesia curitibana simbolista e grande personalidade da capital paranaense no início do séc. XX.

Amanhã! Certeza!

Eu não sei lidar bem com prazos. Às vezes me pego fazendo promessas que sei que têm um alto grau de não cumpribilidade (me faltou uma palavra melhor aqui). Mas o negócio é que a minha vida profissional gira em torno de prazos. Não é como se eu pudesse deixar pra semana que vem a aula que eu tenho que dar hoje. Não tenho esse luxo.

Às vezes a gente enrola um pouco. Posso deixar pra corrigir as provas e tarefas dos alunos uma outra hora qualquer. Mas sei que quanto mais eu demoro pra sentar e corrigir, mais eu sei que vou demorar pra entregar as notas. Isso é ruim pro processo de aprendizagem e para mim, pois as coisas podem acumular. Por isso desde que iniciei minha vida de professor universitário, entrego correção de provas e trabalhos o mais rápido possível.

Uma vez os alunos me aplaudiram porque entreguei a correção de uma avaliação na semana seguinte da prova. Eu era o único professor do departamento que fazia aquilo. Achei lindo aquele gesto espontâneo deles, que mostra que para o aluno também é importante ter um retorno tão logo quanto possível.

Eu entendo muito pouco desse negócio de dar aula. Mas se eu for dar uma dica é essa: senta a bunda na cadeira e corrija os trabalhos da turma tudo de uma vez. Não deixe acumular.

Na vida acadêmica toda semana tem um prazo vencendo. É o prazo do parecer do artigo, é o prazo para envio do resumo para apresentar a pesquisa numa conferência, é o prazo para submeter um projeto novo ou o relatório do que está finalizando… a universidade também gira em torno de prazos, relatórios, pareceres, projetos…

E esse é um bom requisito para se dar bem nessa vida: se disciplinar para entregar as coisas no prazo. Uma professora minha da faculdade dizia que se você pedisse algo para uma pessoa muito ocupada, ela daria um jeito e te entregaria a tarefa; já uma pessoa desocupada demoraria mais tempo para te entregar o mesmo trabalho. Claro, como toda generalização, pode ter lá as suas exceções. Mas é batata! Meus colegas mais ocupados me parecem os mais produtivos e sempre dão um jeito. (por que será?)

Vejo que muitos alunos tem dificuldades para lidar com prazos. Sempre por volta de um terço das turmas não consegue entregar atividades no prazo, mesmo que eu estabeleça uma penalidade para quem entregar atrasado (desconto 2 pontos quando o atraso passa de uma semana).

E agora com as atividades online esse problema parece se agravar. Sinto que muitos ainda não entenderam a importância de ler o que tem de ser lido para a semana e entregar as tarefas dentro do prazo. Se já não faziam isso nas aulas presenciais, por que fariam agora, dentro de um sistema relativamente novo para a maioria?

A escola tem um pouco de culpa nisso. Em toda minha vida escolar, só recordo de um professor destacar o estudo em casa, a releitura, e recomendar que chegássemos em casa em tentássemos refazer os exercícios sozinhos. Quando fiz isso eu fui muito bem em Física. Depois que parei eu tomei na cabeça e não sei como não reprovei no terceiro ano do Ensino Médio.

Às vezes eu acho que o brasileiro parece seguir uma regra geral de que as coisas podem ser feitas um pouco depois, que os prazos serão relaxados. Uma vez esqueci de fazer o pedido de bolsa de IC. Fiquei muito chateado na hora, mas felizmente eu depois descobri que eu não poderia mesmo participar do edital, o que me deixou mais tranquilo. Mas o ocorrido me mostrou a importância de ficar atento aos prazos e não deixar para o último dia.

Venci (se é que eu venci mesmo) na vida acadêmica porque eu consegui entregar os trabalhos que eu precisava entregar nos prazos. Uma vez eu tomei uma invertida bem polida de um professor na pós. Não lembro o que ele falou exatamente, mas ele me deixou tão sem jeito por estar pedindo mais prazo para entregar o exercício que eu acabei desistindo da disciplina por me dar conta de que tinha me matriculado em mais cursos do que daria conta num semestre.

Eu devia ter feito só duas disciplinas naquele semestre, e inventei de fazer três, mesmo trabalhando 20 horas. Me enrolei todo, acumulei leituras, não vencia mais fazer os exercícios. Aquele semestre foi um desastre na minha vida em vários sentidos. Não sei como consegui tocar em frente o doutorado. Pensei seriamente em fazer outra coisa da vida. Eu sempre tinha me achado um bom aluno e ter que cancelar uma cadeira por não dar conta das leituras e exercícios me fez muito mal. Eu me sentia um incompetente, incapaz de fazer aquilo a que tinha me proposto. Vai ver porque era só o primeiro semestre do doutorado e eu pensei que seria bom dar mais uma chance pra mim mesmo. Foi uma boa decisão, mas até hoje eu não me perdoo por essa escolha equivocada. Eu devia ter me dedicado mais e dado um jeito de ter concluído aquela disciplina. Até porque eu não consegui mais fazê-la de novo e até hoje eu acho que é uma lacuna na minha formação. Tentei várias vezes estudar aquele conteúdo sozinho e sinto sempre que perdi a oportunidade de ter concluído uma disciplina com um sujeito que é referência no país na área dele.

O que universidade pública fez por mim

Pra começo de conversa, sou professor universitário e é claro que falo dessa posição. Mas também sou um servidor público, um cidadão e um pai de família. Também falo desse lugar. Talvez seja óbvio afirmar isso, mas creio que não (considerano a época em que estamos). Se ocupo alguns desses lugares hoje é porque a sociedade me permitiu que eu enfrentasse os obstáculos que minha condição social me impôs armado não apenas do meu esforço, mas de oportunidades. Posso me considerar um sujeito de sorte, como diz a canção do Belchior, pois consegui muitas coisas que colegas meus de escola e vizinhos da rua não conseguiram. Por isso tenho desconfiança da noção de meritocracia. É óbvio que o esforço individual é importante para se conseguir qualquer coisa na vida, mas ele de nada vale se a sociedade não dá oportunidades ao indivíduo.

Fiz todo meu ensino básico em escola pública e comecei a trabalhar cedo, aos 12 anos. Aos 16 já tinha carteira assinada e CPF. Como muitos adolescentes da minha escola, estudava pela manhã e tinha um emprego à tarde. Além de ser office boy, eu fazia de tudo um pouco numa tipografia do bairro. Eu gostava pra burro da profissão. E com o tempo eu dominava quase todos os processos dentro da gráfica: compor com tipos móveis, cortar papel, imprimir, acabamento etc. Se eu não tivesse entrado na faculdade, acho que teria seguido com essa profissão o resto da vida, como meu pai. E como tenho um tio que tem gráfica, então muita gente da família em algum momento da vida trabalhou pra ele. Quando minha família me pôs trabalhar com ele não era apenas uma questão de necessidade: eu estaria aprendendo uma profissão.

Em abril de 1998 eu mudei de emprego. A firma em que eu trabalhava estava quebrando e surgiu uma oportunidade em outra. Não pensei duas vezes. Só que o novo patrão queria que eu trabalhasse o dia inteiro, o que fiz a partir de julho, quando vieram as férias. Assim, eu terminaria o ensino médio estudando à noite. Só que numa segunda do início de setembro chegamos para trabalhar e a firma estava fechada. Esperamos uns instantes até que chegou alguém para nos avisar: o dono tinha fugido. Eu tinha mudado de turno por conta do serviço, e agora eu estava desempregado e não tinha recebido integralmente pelos quatro meses trabalhados.

Passei aqueles três meses finais do ano estudando durante o dia. Acho que foi só por isso que passei no vestibular. À noite, eles estavam um bimestre atrasados no conteúdo. Coisas que os professores estavam passando em setembro eu tinha visto em junho pela manhã. E o que eles ensinavam eu estava estudando sozinho.

Eu não tinha muita dimensão do que significava ter ingressado numa faculdade pública. Eu tinha 17 anos (faço aniversário em julho), lia tudo que me dava vontade, e como estava desempregado, podia passar o dia lendo. Pelo menos até meados de agosto, quando consegui um emprego numa gráfica e o tempo para ler ficou mais curto. No segundo ano eu prestei o serviço militar. No terceiro eu consegui um emprego como caixa numa rede de farmácias. Trabalhava de madrugada e dormia durante o dia. Felizmente, o gerente era gente boa e deixava eu ler durante o expediente. Afinal, não tinha muita coisa pra se fazer da 1h da madrugada até as 6h, período em que o movimento ficava bem fraco. Passei os dois últimos anos da faculdade nesse emprego e mais um ano depois de formado até passar no mestrado.

Deixava de dormir para fazer estágios e trabalhos. Dormia nas aulas às vezes (dormir durante o dia não é a mesma coisa) por puro cansaço. Uma coisa de que eu sempre gostei era a tal da aula: ler coisas e conversar sobre elas com pessoas inteligentes e interessadas foi a experiência mais legal da graduação. Tinha muita aula chata, tinha muito professor que só enrolava, mas quando as aulas eram legais, eu me engajava. Eu tinha fama de inteligente, mas eu não era um bom aluno. Não tirava notas muito altas, pois nas disciplinas que me interessavam pouco eu fazia só o essencial.

Nos dois últimos anos comecei a me interessar em participar de projetos, grupos de estudos… eu queria estudar mais do que eu via sala de aula. Mas não tinha nada disso lá, pois os professores a maioria dos professores não se dedicavam exclusivamente à faculdade. Na Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória (FAFIUV) não tinha bolsa para nada: iniciação científica, monitoria? A gente nem sabia o que era isso. Só fui descobrir que tinha gente que ganhava uma grana para fazer pesquisa num congresso de que participei no segundo ano. Congresso em que fiz um minicurso de Análise do Discurso e comecei a pensar mais a sério sobre me aprofundar em linguística. Alguns professores perceberam meu espírito científico e me incentivaram a buscar um mestrado. Pesquisei, pensei, e escolhi a Universidade Federal de Santa Catarina. Não passei na primeira vez. Na segunda tentativa passei em segundo lugar e consegui bolsa. Era o meu sonho. Eu ia finalmente passar o dia estudando e ainda iria ganhar um dinheiro para fazer isso. Se não fosse pela bolsa, eu jamais teria conseguido fazer o mestrado.

Às vezes faço um exercício de contrafactualidade: como teria sido minha vida se eu não tivesse cursado uma faculdade pública. Sempre gostei muito de estudar. Não sei se teria sido feliz num emprego no comércio ou no setor gráfico. Não sei. Talvez tivesse me acomodado, casado e seguido a vida, trabalhando para pagar as contas, sofrendo com desemprego em épocas de crise como a maioria dos brasileiros. Provavelmente eu teria feito uma faculdade qualquer paga, como muitos em naquela região do sul do Paraná e planalto norte catarinense (administração, contábeis?). Cheguei a fazer o concurso para a Escola de Sargentos das Armas (ESA) durante o período em que prestei o serviço militar. Acho que foi meio por inércia. Muitos colegas fizeram e arrisquei também. Não passei. A vida sabe o que faz com a gente, pois eu não nasci para aquela vida. Tenho profunda desconfiança do papel da autoridade e sou questionador. Não gosto de seguir regras. A burocracia e a papelada do dia a dia na universidade me causam um enfado pesadíssimo. Que outro destino teria um filho de trabalhadores de classe média baixa? Meu pai foi gráfico a maior parte da vida e se aposentou nessa profissão. Minha mãe trabalhou como doméstica por muitos anos até virar balconista no comércio, profissão que exerceu até morrer.

A pós-graduação foi uma experiência transformadora em vários aspectos. Ganhar um salário para estudar era inimaginável para quem apenas cinco anos atrás tinha entrado na faculdade. Em 2004 eu era um guri de 22 anos vindo do interior que ganhava um salário para estudar. Muito poucos eram como eu. A imensa maioria tinha feito iniciação científica ou pelo menos estudado na UFSC e conhecia de perto como funcionava a pesquisa na área, pois tiveram professores na graduação que eram pesquisadores, portanto sabiam dos seus projetos e interesses.

Minha meta era terminar o mestrado e voltar para o interior para trabalhar na faculdade onde eu tinha estudado. Era o máximo que eu poderia almejar, eu supunha. Agora eu estava no meio de um monte de gente muito inteligente e estudiosa. Eu não me destacava mais, eu era mais um. Embora a graduação tenha me fornecido conhecimentos para entrar no mestrado, eu sentia que sempre estava correndo atrás, buscando preencher lacunas na minha formação. E essa sensação era brutal quando eu ia para congressos e conhecia gente de outras instituições, como USP, Unicamp, UFPR, UFRJ, UFMG… aquelas pessoas eram muito (mas muito!) inteligentes. Fui um pouco sortudo, eu acho, por ter conhecido e feito amizade com tantos feras, gente que hoje ocupa lugares importantes em universidades no Brasil e até no exterior. Isso tudo foi estimulante.

Tive que aprender a abordagem teórica da minha pesquisa ao mesmo tempo em que a desenvolvia. Era a primeira vez que eu me via precisando estudar com afinco. Embora, hoje, eu perceba que poderia ter me dedicado muito mais. Aqueles 2 anos passaram muito rápido, minha orientadora me estimulou a prestar o doutorado. Passei em terceiro, mas as bolsas de doutorado eram escassas.

Naquele primeiro ano de doutorado trabalhei como professor na rede pública estadual em Florianópolis. 20h semanais. Eu tinha pouco tempo para estudar. Pensei em desistir do doutorado, prestar concurso para qualquer coisa que me desse um sustento, pois eu não conseguia me dedicar plenamente às disciplinas. Tive que abandonar uma disciplina na filosofia porque não conseguia assistir as aulas e fazer as leituras, que embora não fossem numerosas, exigiam tempo e releituras. Em poucas semanas eu já estava atrasado na leitura, não acompanhava mais as discussões e os exercícios ficaram incompreensíveis. Me senti um fracassado: comecei a questionar o meu talento para a linguística formal. Eu era burro demais para aquilo.

Eu nunca tinha sido excepcional na vida (mesmo tendo fama de inteligente na escola e na faculdade). Embora eu tivesse conseguido ter A em todas as disciplinas do mestrado, não escrevi uma dissertação fora de série. No doutorado as exigências eram mais altas, e eu começava a duvidar se eu seria capaz de fazer uma contribuição significativa para o campo, embora minha orientadora dissesse que meu projeto era promissor. Eu discutia questões semânticas de orações comparativas em português que eram pouco discutidas na literatura, usando uma abordagem do significado que o modela usando ferramentas da lógica. Poucas pessoas fazem isso no Brasil. Logo, a chance de eu conseguir dizer alguma coisa que ninguém ainda tinha dito era grande. Mesmo assim… fui levando, já que não sou muito bom em tomar decisões rapidamente. Se eu puder, adio ao máximo. O ano passou e em dezembro consegui bolsa para terminar o doutorado. Acho que teria desistido sem a bolsa. Pelo menos adiado ou tentado o doutorado em outro lugar.

Em 2008 consegui uma bolsa para fazer um ano do doutorado no exterior. Pude passar um ano em uma das dez melhores universidades do mundo, a Universidade de Chicago. Tive acesso a tudo que os alunos de lá tem: bibliotecas, aulas, professores, laboratórios. E o mais importante: um orientador que me dava atenção. São inúmeros os relatos de gente que faz esses programas e fica abandonado. Eu participei de grupos de estudo, de pesquisa, assisti aulas (embora não fizesse as avaliações), conversava quase semanalmente com meu orientador, conversava com gente interessada em linguística e conheci pessoalmente muitos pesquisadores importantes da minha área. Tinha acesso a qualquer texto de que eu precisasse. Praticamente tudo que eu queria ler a biblioteca tinha ou tinha os meios para conseguir (acesso a bases de dados de teses digitalizadas, por exemplo). Isso me deu outra visão sobre a vida universitária e a pós-graduação em particular. Na UFSC o trabalho era um pouco solitário e ali eu sentia uma visão de trabalho em conjunto, de colaboração. Escrevi metade da minha tese lá. Tínhamos um grupo de estudo em 2004, que capengou um tempo e esmoreceu. Quando eu voltei em 2009 ajudei a reanimar o grupo de estudos com minha orientadora (que conhecia gente na filosofia), o marido dela na época e os orientandos deles na graduação e na pós. O grupo está firme e forte até hoje.

Nesse segundo semestre terminei a minha tese, prestei alguns concursos (reprovei nos 3 que prestei), fiz estágio de docência, participei de congressos. No começo de 2010 defendi. Minha tese tinha vários probleminhas, mas foi aprovada. Não foi o melhor que eu poderia fazer, mas foi o que eu consegui fazer. Sempre tenho essa sensação em relação às coisas que eu faço: poderia ser melhor se eu tivesse me dedicado um tantinho mais. Só que os prazos e a vida atropelam a gente, sabe? (É uma desculpa esfarrapada, tô ligado.) Minha tese poderia ser bem melhor se eu tivesse conseguido ver algumas coisas que eu só vi dois anos depois. E que só vi porque eu consegui nesse período continuar pensando sobre o tema da minha tese. Mas se grandes referências da área não fizeram grandes contribuições nas suas teses, quem era eu pra fazer? E isso que fazer contribuição na minha área é oferecer uma denotação formal nova para uma expressão linguística. É algo aparentemente simples, mas não trivial.

Eu tinha 28 anos e era doutor. Eu já tinha conseguido uma bolsa de recém-doutor do CNPq para fazer pós-doutorado na USP. Eu deveria ter ido, mas por razões pessoais acabei ficando em Florianópolis e trabalhei como professor substituto na UFSC naquele primeiro semestre. Também por essa época prestei concurso na UFPR e passei em terceiro. Tinha duas vagas. Aquilo me animou. Meu desempenho nas provas foi muito próximo de gente mais experiente e só não fiquei melhor colocado porque era recém-doutor. Em agosto voltei para União da Vitória para trabalhar como substituto na FAFI, onde ficaria os próximos dois anos, até ser aprovado em concurso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em março de 2012, onde estou até hoje.

Hoje sou funcionário público, professor universitário e linguista. Defender a universidade significa não apenas defender o meu ganha-pão. Me vejo como um trabalhador como outro qualquer. Claro, eu tenho alguns privilégios que outras profissões (e mesmo professores da educação básica) não têm: dois períodos de recesso por ano, 45 dias de férias, não preciso bater ponto, estabilidade no emprego. Ninguém hoje, consegue chegar a um lugar desses sem bolsa, sem incentivo público. Contando graduação, mestrado e doutorado, foram 10 anos da minha vida dedicados aos estudos.

Minha carreira começou quando eu tinha 28 anos (Apesar de eu já ter cinco anos de carteira assinada até entrar no mestrado). Muita gente nessa idade já está casada, com filhos e pagando o financiamento da casa própria. Escolher a carreira universitária significa abdicar de pelo menos uns 6 anos da vida profissional. Isso se o sujeito não passar ainda mais uns anos entre bolsas de recém-doutor e contratos precários de substituto que podem durar de 6 meses a 2 anos, até conseguir um emprego fixo passando num concurso. Ninguém vê isso. No exterior não é muito diferente. Em muitos lugares leva-se 5 anos para se fazer um doutorado e muitos passam ainda uns 2 ou 4 anos de bolsa de pós-doutorado em bolsa de pós-doutorado até conseguirem um emprego fixo.

Na letra fria dos números pode ter sido dinheiro que o governo jogou fora. Para que mais um doutor em linguística? Hoje eu faço parte de um conjunto de professores que formam outros professores e profissionais do texto e da palavra (professores de português e línguas estrangeiras, revisores, tradutores, editores etc.). A grana que a sociedade brasileira investiu em mim retorna para a sociedade todos os dias quando eu saio de casa para ir na universidade dar aula, orientar minhas bolsistas de iniciação científica ou desenvolver outras atividades necessárias para o andamento da universidade. Essa grana se reverte no conhecimento que eu produzo escrevendo, traduzindo e colaborando como parecerista na atividade de publicação de vários periódicos pelo país, na avaliação de teses de dissertações de outras universidades. Esse conhecimento faz diferença? Vai acabar com a fome no país? Vai melhorar os índices de leitura e escrita? Vai acabar com os problemas do sistema tributário? Talvez não acabe com problemas práticos. Talvez, se eu for um bom professor, eu seja capaz de formar bons professores, que irão formar cidadãos que serão profissionais melhores do que os pais deles foram. E mesmo que não sejam professores, talvez essas pessoas se tornem policiais ou burocratas mais humanos.

Em 1999, quando eu entrei na faculdade, eu tive apenas duas professoras que eram mestres. Todo o restante do corpo docente era especialista, e um ou outro ali se dedicava exclusivamente ao ensino superior. Quando eu retornei para lá em 2010, além de mim, tinha mais dois doutores formados e dois doutorandos. Todo o restante do corpo docente era mestre e tinha só duas especialistas. Creio que hoje a formação do corpo docente deve ter subido mais um pouco ainda. E, além disso, muitos lá podem agora se dedicar somente ensinar, pesquisar e a fazer extensão. Tenho certeza de que essa formação e o tempo de dedicação exclusiva contribuem para que eles formem profissionais melhores e estabeleçam projetos em parcerias com escolas, garantindo oportunidades de formação continuada para os professores da região.

Assim como o investimento público mudou a minha vida, ele muda a vida de cada um que passa pela universidade e consegue passar pelas peneiras que ela impõe. As universidades são ambientes extremamente competitivos e meritocráticos, não se enganem. Para progredir na carreira somos avaliados semestralmente pelos alunos e pelas atividades que exercemos (em pesquisa, ensino e extensão). Para ter bolsa de iniciação científica o professor precisa de produção escrita constante. Esse critério é mais duro ainda na pós-graduação. Para dar aulas no mestrado e doutorado, e eventualmente orientar mestrandos e doutorandos, é preciso publicar pelo menos 2 artigos por ano. Isso é o mínimo. Isso quer dizer que a cada 6 meses preciso de um texto novo saindo do forno e aprovado para publicação.

Por isso me assusta quando o ministro da educação fala que “temos doutores demais” ou que temos que formar engenheiros e veterinários. Claro que temos que formar engenheiros e veterinários, como temos que formar professores de todas as matérias e pedagogos. Deixar de investir na educação superior significa jogar fora anos de investimento na formação profissional dos brasileiros. Não sei se hoje podemos dizer que estamos bem abastecidos de doutores. Os concursos nas universidades estão cada vez mais concorridos, o que significa que estejamos num teto (embora eu creia que o sistema acabe absorvendo essas pessoas de uma forma ou outra). Mas cortar os investimentos significa acabar com o sonho de muitos talentos que desejam estudar e pesquisar, significa deixar de dar oportunidade para que a inovação aconteça, seja em que área for.

Linguística para quem?

A gente lê por alguns motivos: para aprender com o texto, para tirar dele uma informação e por passatempo, prazer. O livro do Gabriel de Ávila Othero, ‘Mitos de Linguagem’ (Parábola, 2017) devia ser lido por prazer. Mas, a minha experiência me diz que os capítulos do livro serão copiados, lidos e discutidos nos cursos de Letras (talvez em outros, quem sabe) por esse país afora. É muito pouco para um livro dessa natureza, ele deveria pular os muros da universidade e ser lido nas escolas e por curiosos em geral.

Tem altos debates em congressos e publicações especializadas querendo entender por que os linguistas são tão pouco ouvidos ou consultados em debates sobre linguagem na sociedade. A razão, na minha modesta opinião, é que só se escreve introdução à linguística para servir de manual para aluno de Letras (é uma produção bibliográfica pra auto-consumo). Ninguém escreve pra ser lido por professores ou leigos em geral. (Tem poucos, muito poucos na academia que tentam fazer isso). Claro, sempre tem que vá dizer: peraí, meu, quem é que tá interessado em saber sobre pressuposição a não ser aqueles que estudam pressuposição? O problema não é escrever linguística para consumo próprio (apenas para alimentar a indústria do livro que só circula na universidade), o problema é escrever só com esse objetivo.

Voltando ao livro, o barato dele é tocar em temas que a gente não encontra facilmente em outras publicações introdutórias por aí. O livro está organizado em torno de 10 mitos, isto é, concepções equivocadas que os leigos possuem sobre a linguagem. O primeiro capítulo discute o mito “as mulheres falam demais”.

Esse mito é interessante, pois se conecta com o momento em que vivemos em que se discute tanto o papel da mulher e as violências que sofrem. A interrupção (já me peguei fazendo isso), a explicação (masplaining), ou dar mais atenção ao que os meninos falam (como professor num curso em que a maioria é mulher, é difícil diagnosticar isso, mas pode ser que aconteça). Esse tipo de discussão é importante por mostrar atitudes que temos que (nós homens) somos incapazes de perceber que são violências dissimuladas – a ministra do supremo Carmen Lúcia reclamou disso semanas atrás.

Tem outros mitos legais debatidos: ‘a gramática do português não tem lógica’; ‘ninguém fala o português correto’; ‘a língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo’; ‘a ortografia do português é cheia de exceções’; ‘todo mundo tem sotaque, menos eu’. Esses capítulos tratam especificamente de questões relacionadas com a nossa língua. Eu gostei particularmente do capítulo que envolve a lógica (ou a falta dela) da gramática. Os exemplos de definições problemáticas são bem ilustrativos dessa percepção. Um dos problemas é que a gramática escolar ainda se vale de uma metalinguagem que nos foi legada por gregos e romanos. Todos estamos de acordo que coisas como ‘pronomes’ existem em nossa língua. A questão é que definir a classe como ‘a palavra que substitui o nome’ talvez não seja a melhor definição; e que talvez nem tudo que esteja dentro da classe seja pronome.

Como disse o Mattoso Câmara Jr., as línguas humanas tem uma lógica diversa da lógica ordinária. E é tarefa do linguista descobrir essa lógica. Claro, vai ver a gente ainda não descobriu a lógica do funcionamento de algumas regras do português, e tem outras, claro, que são pura invencionice de gramático, como a discussão sobre os porquês, no capítulo que trata da ortografia.

O capítulo é muito bom, discutindo dois aspectos que explicam porque falamos as palavras de um jeito e escrevemos de outro: a fonologia e a etimologia. Nossa escrita é uma tentativa de representar os sons, e ao mesmo tempo quer preservar a herança lexical latina. Não dá pra respeitar 100% as duas coisas. Claro, ele ainda podia ter citado o fato de que no caso português, o Vocabulário Ortográfico elaborado pela Academia Brasileira de Letras é um guia para a grafia das palavras, e que o Acordo tem mais de político que de linguístico. Logo, tem um baita grau de arbitrariedade na decisão sobre a grafia de uma palavra.

Um segundo grupo de textos debate mitos relacionados com conhecimento linguístico geral: ‘a língua dos índios é rudimentar’; por que é difícil aprender uma língua estrangeira depois de adulto; a comunicação animal; a eficácia de tradutores automáticos. Gabriel mostra com detalhes como o mito envolvendo as línguas indígenas é infundado. Não vou entrar nos outros capítulos para não me alongar muito. Acho que os assuntos deles já mostram que são interessantes.

Carlos Alberto Faraco, na conferência de abertura do Congresso da Abralin em março deste ano na UFF, em Niterói, falou justamente da relação entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento popular. O papel da ciência é de esclarecer o debate público e político (na medida em que decisões políticas baseadas em argumentos racionais trazem melhorias para a sociedade como um todo). No caso da linguística, livros como os do Gabriel cumprem um papel importante nesse diálogo. Ele é escrito para apresentar de maneira didática questões e resultados de pesquisas que dificilmente estariam acessíveis para um público mais amplo, mesmo para estudantes de Letras.

 

O ensino de português na escola e na universidade

Sempre sinto uma dose de culpa quando vejo essas reportagens que mostram alunos recém-saídos do ensino médio (EM) ou graduandos se dando mal em redações, ditados, entrevistas ou atividades que requerem o uso da língua portuguesa (LP), afinal, parte do meu trabalho como professor universitário é formar professores. Claro que o português é o centro de tudo e há três causas para o fracasso do ensino público: a) despreparo do professor; b) estrutura escolar (currículo equivocado, espaço físico, bibliotecas, etc.); c) cultural: nossa sociedade não valoriza as atividades de leitura e escrita como um bem a ser cultivado, o discurso é bonito, mas na prática ainda lemos menos livros per capita do que a Argentina. Não quero falar disso exatamente, mas há uma ligação entre esse problema e o que eu faço: ensinar LP para calouros. A pergunta inevitável é: por que precisamos ensinar LP para quem sai do EM de onde deveria sair sabendo tudo que é preciso saber para seguir a vida profissional? Não é uma forma de “consertar” ou “amenizar” o fracasso do ensino de português nas nossas escolas? Eu diria que sim e que não. Vejamos os dois lados.

Sim, estamos consertando o ensino fracassado. Primeiro devemos ter em mente qual o objetivo do ensino de LP nas escolas. Lendo os documentos oficiais (os parâmetros curriculares), o leitor vai encontrar expressões bonitas como “cidadania”, “formação integral do indivíduo”, “preparação para o mercado de trabalho”, etc., tudo isso é algaravia pra dizer que o objetivo da escola é formar cidadãos capazes de utilizar a leitura, a escrita, e a fala em situações sociais com competência. Afinal, não escrevemos, não lemos e não falamos em todas as situações sociais da mesma forma. O fato é que mudamos a organização da nossa produção linguística, quer estejamos no trabalho, quer estejamos em casa, quer estejamos com amigos.  Ensinar LP na universidade seria então ensinar o que o cidadão deveria ter aprendido no EM e não aprendeu, coisas como ortografia, pontuação, expressar-se oralmente sem usar gírias (que nada mais é do que mostrar para o aluno que se precisa mudar a forma como se fala dependendo da situação, uma tarefa fácil, mas poucos professores fazem isso) e efetuando todas as concordâncias, tarefa impossível de se realizar, se a pessoa não mergulha no uso culto do português (escrito e oral: não basta ler e ouvir, é preciso pensar e analisar o que se lê e o que se ouve). O que chamamos de “português” não deveria ser um conjunto de “conteúdos”, mas um conjunto de competências que os jovens deveriam adquirir, de posse delas (ler, escrever, falar, ouvir) ele deveria ser capaz de se sair bem em qualquer carreira que escolhesse: de instalador de telefone da Oi, até engenheiro mecatrônico ou atendente de teleatendimento.

Não, tem coisas que não precisam ser ensinadas no ensino médio e deveriam ser ensinadas na universidade. Para quem não sabe, o ensino de LP na universidade busca essencialmente refinar as capacidade de leitura e escrita dos calouros. Isso acontece através de atividades de escrita e leitura que trabalham com os gêneros textuais que circulam, preferencialmente, na academia: resumos, resenha, fichamento, relatório, projetos, artigo, ensaio, etc. Para um aluno que conclui o ensino médio e não vai entrar na universidade esses gêneros não são importantes, e portanto, não precisam ser ensinados na escola. Será? Eu diria que as duas premissas estão erradas:  a) a necessidade de refinar as habilidades de leitura e escrita; b) a universidade precisar ensinar os gêneros que utiliza. Há várias formas de resumos circulando na nossa sociedade, tais como sinopses de filmes que lemos em jornais e sites, na quarta capa dos livros ou na orelha sempre temos uma breve descrição do enredo, no começo ou no final dos artigos científicos, projetos e monografias temos um resumo (teses e dissertações são monografias também, só cumprem funções diferentes e se exigem padrões qualitativos diferentes também aos autores delas), que cumpre a mesma função em todos esses lugares: apresentar o conteúdo ao leitor e seduzi-lo a ler a obra. O professor de português universitário dirá: tá, cara pálida, e artigo científico? Não existe em outro lugar além das revistas acadêmicas. Ledo engano, existe sim. Se o professor lesse revistas como a Scientific American de vez em quando saberia, ou mesmo grandes jornais nacionais, que ocasionalmente publicam ensaios de cientistas. Chamados de “artigos de divulgação” esses textos possuem basicamente a mesma estrutura dos artigos acadêmicos, embora em linguagem mais acessível, e sem a profundidade de discussão que se exige dos textos que são submetidos aos periódicos acadêmicos. Se esses textos fossem lidos e estudados na escola: nas aulas de física, química, biologia, e mesmo língua portuguesa ou história, quando o aluno chegasse na universidade seria um leitor e escritor competente. Professores de física, química ou matemática que dizem que não se precisa saber ler e escrever para ser um físico, químico ou um matemático são estelionatários e deveriam ser demitidos. Só pra citar dois importantes físicos do século XX, Einstein e Feynman possuíam um grande apreço pela escrita e pela popularização da ciência. Assim, o meu argumento essencialmente é: não se ensinam os gêneros da academia na escola porque não se ensina ciência na escola. Todo mundo já deve ter feito aquele experimento de cultivar um grão de feijão no algodão. O professor provavelmente pede um relatório(!), que nada mais é do que um narração que descreve dia a dia o que aconteceu com a semente, as transformações pelas quais ela vai passando ao longo dos dias, desde que bem cuidada e aguada. Isso não difere em nada de um pesquisador da Embrapa que está estudando novas sementes de soja para aumentar a produtividade e fazer a semente resistente às pragas. E por que no ensino médio não se fazem experimentos? Lembro que as escolas em que eu estudei possuíam laboratórios fantásticos, cheios de pipetas, tubos de ensaio e outros vidros de formatos diferentes que não sei nomear, no Colégio Estadual Túlio de França (União da Vitória-PR) tem até um esqueleto (espero que ainda esteja lá), não é qualquer escola pública que tem o privilégio de ter a estrutura que aquela escola tinha, mas porque a gente ia pro laboratório como se fôssemos fazer uma excursão a um museu, em que não tínhamos o direito de tocar em nada, passar em linha pelo microscópio e olhar rapidamente o que tinha na lâmina, meramente um exercício de curiosidade (o sangue é assim?!).

Mas por que então não se ensina o português nas escolas se utilizando desses gêneros? Por uma série de razões: a) currículos equivocados: a perspectiva conteudista e vestibuleira torna o EM uma grande apresentação de períodos literários e redação dissertativa, a redação do vestibular e dos concursos, que é importante claro, mas que deveria ser um subproduto, não um objetivo final do ensino (qual a diferença entre o ensino público e o privado? Há muitas, mas a principal é cultural, meninas de classes humildes saem da escola para virar balconistas, e meninas de classe média saem da escola privada para virarem psicólogas, farmacêuticas, fonoaudiólogas, etc., os professores sabem disso, e fazem a sua parte para que esse destino se cumpra); b) professores mal-preparados: infelizmente muitos professores dos cursos de letras parecem ter orgulho de dizer que não fazem ciência (não sei o que fazem na academia então) e essa desvinculação entre o fazer científico e o fazer pedagógico (o tipo de ideia que colocam na cabeça dos graduandos e futuros professores de português) faz com que tenhamos propostas pedagógicas mirabolantes desligadas da realidade; c) se tivéssemos uma política séria de ensino de língua ela estaria inexoravelmente vinculada a uma perspectiva interdisciplinar: professores da área de exatas e biológicas (matemática, física, biologia) e de humanas (geografia, história, filosofia, etc.) deveriam estar engajados em um projeto escolar de se trabalhar com textos acadêmicos de divulgação: hoje, felizmente, temos revistas como a História, a Filosofia, a Scientific American, a Galileu que são destinadas ao grande público; d) como consequência de (c), projetos de pesquisa interdisciplinares que tivessem como requisitos relatos escritos, em conjunto, o professor de português e o professor de biologia ou história, poderiam desenvolver projetos de escrita em que o biólogo ou o historiador fornece o mote da escrita e o professor de português auxilia os alunos no “como” escrever, possivelmente tornando esse resultado depois público, na forma de escrita de livros, exposição dos trabalhos aos pais, feira de ciências da escola, escrita coletiva de um artigo de divulgação a ser enviado para o jornal da cidade, etc. As alternativas são muitas, falta o quê então: vontade, estímulo, compromisso, gestão eficiente, formação adequada, etc. Como o personagem Walter White de Breaking Bad, o professor de física, química ou biologia das nossas escolas é alguém que não se deu bem na iniciativa privada e virou professor para não passar fome, muito poucos escolhem o magistério como primeira opção (é só comparar o salário de um químico na iniciativa privada com o salário de um professor com graduação para saber o porquê).

Educação científica em língua portuguesa, é possível?

Creio que uma das grandes dificuldades dos alunos de letras em lidar com a linguística se deve pela falta de preparo científico na educação escolar. É famosa a afirmação de Richard Feynman sobre o ensino brasileiro de física, quando ele cá esteve, nos idos dos anos 70, se não me engano. Para ele não se ensina a pensar cientificamente nas escolas. E me incomoda demais quando os alunos estão somente preocupados com o que vai cair na prova e não em compreender o que eu estou dizendo, como se o objetivo do ensino fosse incorporar noções e conceitos para dali um mês se dar bem na prova e depois deletar essa informação da memória.

Chomsky (nas Manágua Lectures) nos fala que o ensino só atinge resultados duradouros se os alunos são estimulados a se interessarem pelo conteúdo. Para ele pouca diferença faz o método do ensino, contando que o aluno se sinta curioso sobre aquilo. Ambas as afirmações colocam o peso no professor e no planejamento do conteúdo. Só irá fazer sentido para o aluno se ele se interessar seriamente pela matéria. Enquanto nossos alunos aprenderem para a prova a situação da nossa educação escolar continuará como está, e formar cientistas será sempre um efeito colateral. Temos cientistas porque algumas pessoas são curiosas por natureza, não porque foram propriamente estimuladas a pensar cientificamente. De outra forma, os cursos de mestrado e doutorado estariam cheios, e não com vagas ociosas porque os candidatos não conseguem ser aprovados nos testes de admissão. Isso é fruto de um ensino regular e universitário que privilegia o conteúdo e não o desenvolvimento de habilidades de reflexão e síntese. Quando vejo alunos grifando páginas inteiras de um texto, ou fazendo citações do tamanho de um parágrafo, me preocupo com esse tipo de habilidade, que aparentemente não foi desenvolvida, e o desafio está justamente em fazer isso.

Quando se trata de língua a coisa complica. Primeiro porque precisamos combater toda uma tradição de ensino que fala de língua em termos de certo e errado. Segundo porque essa mesma tradição não fez os alunos pensarem criticamente sobre isso, nem sobre as classificações que a tradicação gramatical propõe, que no fundo, são apenas teorias. Que as orações comparativas na língua portuguesa são subordinadas adverbiais é uma teoria, facilmente contestável ou demonstrável através da razão e de bons argumentos. As orações comparativas são como as baleias, seres que nadam, vivem na água, mas não são peixes. Há quem defenda que elas são orações coordenadas (correlativas, uma classe pouco discutida, sequer apresentada em nossas gramáticas), há ainda quem diga que tem um pouco dos dois, coordenação e subordinação. Quando se trata de fonética e fonologia o negócio complica ainda mais porque os alunos demoram pra conseguir desligar a associação entre escrita e som. A fonte dos dados fonéticos não é a escrita, é o som, a produção falada dos falantes. Falar em fonologia então complica ainda mais, porque a fonologia vai tratar de coisas ainda mais abstratas, que são os fonemas, unidades distintivas (como o /p/ e o /b/). Por isso, quando o Possenti falou em um programa, algum tempo atrás, que discutia o internetês, que a escrita de ‘não’ como ‘naum’ era evidência de uma análise bastante sofisticada do sistema fonológico do português, pouca gente entendeu. Assim como muito alfabetizador não deve saber porque a criança escreve ‘muinto’. Se vocês não sabem eu explico. J. M. Câmara Jr., principal linguista nacional, defendia que as vogais nasais na língua portuguesa são a união de um fonema vocálico oral, mais um arquifonema nasal /N/ (os fonemas são representados entre barras). Veja que o /N/ é uma entidade abstrata, uma construção teórica. Supondo que ela existe o que aconteceria? acontece o que vimos acima com o ‘muinto’, e provavelmente uma criança que aprendeu a escrever ‘som’ irá escrever também ‘lam’ para ‘lã’. Na hipótese do Câmara Jr. sempre depois de uma vogal nasal temos um arquifonema e não uma consoante nasal [m] ou [n] (os elementos entre colchetes são fones, unidades atestadas na fala, não letras). Repare que isso é apenas uma teoria, não um fato. As coisas podem não funcionar, assim. Essa explicação é hipotética no sentido de que pode ser refutada, ou podemos encontrar mais evidências para confirmá-la. Só que quando os alunos não sabem o que é uma ‘teoria’, um ‘fato’ e uma ‘hipótese’ ou mesmo um ‘argumento’, fica muito mais difícil o trabalho, porque ao mesmo tempo em que é preciso fazê-los compreender análises complexas temos que introduzir fundamentos de ciência, como o conceito de ‘premissa’, por exemplo (daí eu me pergunto o que eles tem aprendido nas aulas de filosofia).