Como sempre faço, começo reclamando de mim mesmo por não escrever aqui com mais frequência. Fazer o quê? Escrever mais, óbvio. Mas nem sempre dá. A vida se mete no meio, ou é preguiça mesmo. E preguiça é um negócio sério e chato pra burro.
Feito o desabafo a esse mundo de fótons e vácuo, vamos ao que me move a escrever.
Li recentemente duas coisas que colocaram alguns questionamentos. [1] Essa matéria fala sobre conteúdos escolares, coisas que a escola deveria ensinar e não ensina. [2] Essa outra fala sobre um pastor/deputado (nunca sei quem é a pessoa do discurso, de que lugar, no sentido da Análise do Discurso, ele fala) que defende que a escola ensine também a versão judaico-cristã da origem do mundo. Vou fazer um questionamento de princípios: por que a escola precisa ensinar essas coisas? E se não ensinasse, faria falta na vida do sujeito? E quem é o sujeito que queremos que saia da escola?
A primeira matéria aponta o seguinte: “todos concordam que o atual modelo não prepara os jovens para a vida”. E prossegue, citando Camila Pereira, diretora de Políticas Educacionais da Fundação Lemann: “A sociedade espera que os jovens saiam da escola tendo desenvolvido uma série de habilidades, não tendo aprendido apenas uma lista de conteúdos”. Que habilidades são essas? A matéria é pouco clara nesse sentido. Algumas coisas são óbvias: trabalho em equipe, iniciativa, criatividade etc. E é possível ensinar essas coisas? Talvez seja. Claro que a crítica é correta. A escola se preocupa muito com conteúdos. Veja o que acontece nas greves. A crítica é sempre essa: e os conteúdos, como ficam? A sociedade está preocupada com isso, quer uma escola conteudista (mas o gado quer tanta coisa… não sei até que ponto a opinião pública pode ser levada a sério). Talvez estejamos pedindo muito da escola. Talvez o mercado de trabalho esteja pedindo muito da escola.
Se você tem tempo sobrando, dê uma olhada na sugestão de Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares publicados pelo MEC (em 1997!) [3]. Também leia os objetivos do ensino básico, postos logo na apresentação. Entre eles destaco os seguintes: a) “saber utilizar diferentes tipos de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos”; b) “questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação”. Como é que se faz isso? Pergunte-se aos pedagogos. Mas agora, pergunte a qualquer licenciando desse país se eles dão importância a o que os pedagogos dizem? – Vai ver que eles não tem nada a dizer sobre isso, acho. Quando fiz graduação tinham. Li Paulo Freire, mas também lembro de ter aprendido como se apaga um quadro de giz, e que é falta de educação não apagá-lo ao terminar a aula.
Sobre a quantidade de teoria no ensino superior: a história é outra. Na escola básica, o desenvolvimento de habilidades está conjugado com a aprendizagem de conteúdos. Pelo menos deveria ser assim na prática. No ensino superior se espera que os alunos tenham mais independência intelectual. Critica-se que as licenciaturas são bacharelados disfarçados (ouvi isso num congresso). Quem fala isso desconhece o currículo mínimo de uma licenciatura. Os alunos desses cursos possuem uma carga gigantesca de estágios. Há também aulas de prática de ensino, didática, funcionamento da educação, psicologia da educação etc. Não sei mais o que se espera que os professores saiam da universidade sabendo. Se coloca sempre o problema no professor, no tipo de coisa que ele tem que saber, na sua didática etc., enquanto o problema maior está nas condições de trabalho, na desvalorização social da profissão, entre outros fatores. Não há universidade que prepare o professor como lidar com a maioria dos problemas que eles enfrentam no cotidiano: violência, falta de infraestrutura, alunos mal-educados etc. (Olha essa matéria reclamando justamente disso [4]. Porra, véio! O professor tem que ser assistente social também!? Um licenciado em Letras tem que sair da faculdade preparado pra lidar com os problemas sociais da comunidade em que a escola está? Não, né!)
E a outra coisa que querem que a escola ensine: religião. Historicamente a escola sempre ensinou a religião católica, como um braço da igreja. Tem um deputado resgatando um projeto de lei falido que propõe que se ensine criacionismo obrigatoriamente em escolas públicas e privadas. Qual é a lógica por detrás dessa proposta? Não há lógica. Ou melhor, uma lógica enviesada.
O estado laico é coisa de comunista. A religião ensina valores. Se se ensina evolução, tem que se ensinar também o criacionismo. São três argumentos, pelo menos. O primeiro não vou comentar. O segundo toca no que mencionei acima. A sociedade espera que a escola ensine valores que a família não passa mais aos jovens. No fundo, eles reconhecem que a juventude detesta igrejas, e que se elas não vão até elas, então que se ensine obrigatoriamente a religião na escola. Para o sujeito religioso, só há os valores de sua religião. A pessoa sem crença é destituída de moral, já que não há um ‘pai’ que lhe diga o que ela não pode fazer. Nada mais absurdo. No fundo, as pessoas fazem as coisas certas não por medo de irem ao inferno, mas porque sabem que é o certo a se fazer. Temos valores morais e éticos universais. Não há cultura humana que defenda que não se honre pai e mãe, que defenda o roubo, a morte, que estimule a cobiça à mulher do próximo etc. O terceiro argumento é tosco, pois confunde mito com teoria. No fundo a minha vontade era de dizer “porra, véio! Cala a boca. Pare de falar merda!”, mas sou educado e remeto o leitor para o texto linkado abaixo [2] onde consta a defesa da SBPC.
Por mais que no discurso o texto dos PNCs seja de esquerda, no fundo é a lógica do mercado que está por detrás dele também. Espera-se que o aluno seja questionador, reflexivo, pró-ativo, criativo etc. Características que o mercado de trabalho valoriza. Já o que o camarada que propõe o ensino do criacionismo quer é o seguinte: “Uma pessoa com fé, em vez de buscar primeiro uma prefeitura, fazer piquete na frente do parlamento, ela vai pra igreja, dobra o joelho e começa a orar”. É um pensamento tão óbvio e raso que a gente nem precisa entender de Análise do Discurso pra saber o que está por detrás dele. Só basta ser um leitor meia-boca como eu sou. E se você é também (ou melhor leitor que eu) vai entender.
[1] Pesquisa revela insatisfação com excesso de teoria e falta de prática do atual modelo de ensino
[2] Feliciano: se ensinam Darwin, que ensinem Moisés nas escolas