Latim em pó

O português que falamos no Brasil, ou o português brasileiro, tem um jeitão diferente do português europeu. Podemos nos perguntar por que ele tem essa “cara”, por que falamos do jeito que falamos, por que é diferente do português d’além mar. A resposta para essa pergunta só pode vir do estudo da História, e da história da própria linguagem, daquelas forças que agem para que as línguas mudem. O livro recém lançado de Caetano Galindo, Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português (Companhia das Letras), narra essa aventura, emprestando o título da obra de outro Caetano, o Veloso, da canção Língua.
Caetano Galindo é professor do Departamento de Linguística e Literatura da Universidade Federal do Paraná, é escritor e tradutor de James Joyce, Tomas Pynchon, e David Foster Wallace, entre outros escritores. Toda a sua experiência como professor de linguística histórica (e também como artífice da palavra) está no livro. Sua habilidade em explicar (ou descomplicar?), pode ser atestada em cada página em que apresenta grandes teses que mudaram nossa compreensão do funcionamento da linguagem e do próprio português. Esse é o grande mérito dos bons livros de divulgação. Nesse aspecto, ler o livro não é apenas uma experiência de adquirir conhecimento, é também fruir uma história bem contada. Tenho certeza de que para o leigo será um agradável passeio, não apenas pela paisagem, mas também pela sintaxe adorável do guia. Além da introdução e da conclusão, são dezessete capítulos, que passam tão rápido que, quando vemos, já se acabaram. Caetano tem grandes poderes, e sabe usá-los com responsabilidade.
São dezessete porque a história é longa e há vários temas paralelos que acabam se aproximando. Assim, ele opta por começar a viagem partindo não do desembarque da língua nessas terras com Pedro Álvares Cabral e sua turma, mas partindo da história do latim. Uma história que em si poderia ser contada em outro passeio.
Alguns capítulos nos apresentam teses básicas da linguística, como a constatação de que todas as línguas mudam, de que todas variam no espaço e no tempo, de que as línguas podem interferir umas nas outras etc.; também desconstrói uma tese em particular sobre o português, a de que seria uma língua difícil. Os mitos sobre a linguagem em geral e sobre o português em particular são como insetos no campo. Por mais que a gente mate um, em pouco tempo aparece outro que precisará sem combatido da mesma forma. Se nem a astronomia está livre desses retornos (olha o povo da terra redonda por aí fazendo furdunço), quem dirá nós, meros estudiosos da linguagem que todos os anos precisamos convencer os calouros dos cursos de Letras de que não existe língua mais difícil que a outra, que as línguas não se degeneram, que os jovens não estão matando a bela língua do Padre Antônio Vieira e que hoje em dia ninguém mais sabe escrever…
Assim, a história começa com os romanos e seu império. Por isso ela demora um pouco para chegar até nós, um dos poucos defeitos do livro. Mas é necessário desenrolar essa cantilena, pois ela ilustra uma constante da história humana, e consequentemente, das línguas: o contato e a troca. Além de terem subjugado e dominado boa parcela do mundo da sua época, os romanos conseguiram a proeza de impor sua língua aos povos dominados, especialmente na Europa.
Como vemos até hoje, quando há comércio e troca cultural, também há troca linguística. Não é preciso ser um otaku pra saber o que é anime, sushi, sashimi, temaki e pra ter visto Jaspion ou Meu vizinho Totoro. Isso que o Japão está lá do outro lado do globo! Imagine o que aconteceu quando os romanos chegaram na península Ibérica ou na Gália? Com o contato, trocamos objetos, costumes, crenças e também as palavras. Essa troca é o que mais nos salta aos olhos, óbvio. Mas uma das grandes questões atuais é como esses contatos influenciam áreas mais profundas da gramática das línguas. Poderia mudar o sistema sonoro, a forma como conjugamos verbos, como colocamos pronomes, como construímos orações?
Aparentemente sim. Mas não pense que os romanos enviaram professores de latim bem treinados e munidos com métodos avançados de ensino de idiomas. Os enviados às províncias eram (geralmente) soldados, colonos e baixos funcionários da máquina imperialista. Ou seja, indivíduos de estratos sociais baixos. E o latim que elas levavam não era o que hoje se chama latim clássico, mas um latim popular, o latim do vulgo, o latim vulgar.
Algo similar ocorreu quando as caravelas de Cabral baixaram a âncora no litoral brasileiro. A história do português por essas bandas vai se confundir inevitavelmente com a nossa história. O contato do português com as línguas dos indígenas e dos africanos escravizados vai mudar a cara do idioma. Caetano aponta em vários momentos que esses contatos não geram consequência apenas no plano do vocabulário (na toponímia e nos nomes da flora e fauna). Essa é uma pergunta interessante que o livro explora: até que ponto o contato do português com as línguas indígenas e africanas foi capaz de mudar o português? Essa nossa tendência a formar sílabas com a estrutura consoante-vogal, eliminando encontros consonantais, seria um indício dessa influência, como nas palavras pneu, que pronunciamos “peneu”? A marcação de concordância nominal apenas no primeiro elemento da expressão, como em os menino, as pessoa seria outro?
Como o autor diz logo de cara, o livro não é uma história aprofundada, mas um passeio pelas etapas históricas de formação da nossa língua. Como o assunto é bom, e o guia experiente, falo com tranquilidade que vale a viagem.

Publicado no Jornal Caiçara, 04/03/2023 (https://jcaicara.com.br/2023/03/04/latim-em-po/)

Por que uma palavra ‘pega’?

Muitas vezes olhamos para a língua como se os indivíduos que as falam tivessem um papel pouco importante na sua mudança histórica. A entidade teórica do ‘falante/ouvinte’ ideal, uma abstração, parece se aproximar muito pouco do feirante, da balconista de loja de calçados, do professor de escola básica ou do profissional que usa a linguagem como ferramenta de trabalho (o jornalista, o influencer, o político, o publicitário, o profissional do livro…).

As línguas mudam em todos os níveis da sua gramática e as mudanças nas palavras são, certamente, um reino especial. Como as palavras já existentes ganham novos significados? Como criamos palavras novas? Essas são duas questões bem interessantes que têm uma dimensão comum: depois de a palavra nova ser cunhada e/ou o significado novo surgir por algum processo (metáfora, metonímia etc.), o que a populariza? Como ela passa a fazer parte do vocabulário comum de uma comunidade?

Profissionais da palavra são fundamentais no processo. Em algum momento, um professor/gramático decidiu que ‘risco de vida’ significava “risco de viver” e não “risco de perder a vida”, como a expressão era usada desde sempre. Isso motivou a criação de ‘risco de morte’, que então passou a ser usada nos telejornais da emissora. Como a Globo é a principal rede de televisão do país, é inegável que esse uso teve influência em outros veículos e na fala da população em geral.

Quando se fala em ‘bloquinho’ a primeira coisa que me vem à cabeça é um bloco de anotações. Agora, de uns tempos pra cá, fala-se em ‘bloquinho’ para se referir a ‘bloco de carnaval’. E, metonimicamente, já se fala em ‘bloquinho’ para designar uma festa de carnaval, sem que necessariamente existam blocos de carnaval na festa. Me pergunto quando o termo começou a se popularizar, pois não tenho lembrança dele sendo usado dessa forma há uns 10 anos, quando eu ainda ia em carnavais e blocos.

Minha intuição estava correta. Uma rápida busca nas estatísticas do Google mostra que ‘bloquinho’ cresce nas notícias a partir de 2017. O termo vai crescendo no uso até 2020, quando estaciona. Em 2021, como não houve carnaval, há poucas ocorrências. E nesse fevereiro já há 64 ocorrências, aproximando-se das 99 de fev/2020.

Claro, a minha pesquisa está limitada às notícias que o Google consegue identificar. Uma pesquisa mais detalhada em corpus poderia delimitar a busca em textos sobre carnaval e avaliar a frequência da palavra ao longo do tempo. Mas notem um aspecto interessante: se a mídia impressa está usando a palavra, é porque ela já está caminhando para se institucionalizar-se, isto é, virar parte do vocabulário da comunidade de falantes. Para se ter um retrato mais concreto dessa expansão, em fevereiro de 2016, na Folha de São Paulo, há apenas 5 usos de ‘bloquinho’ com o sentido geral de “bloco de carnaval”, enquanto em fevereiro de 2020 contei 35 (o último carnaval antes da pandemia).

Notem que no final das contas temos um sistema que se retroalimenta. O uso geral da palavra faz com que a imprensa também a adote, e na medida que a imprensa passa a usar a palavra com o novo sentido, isso lhe dá um selo de “autorização” para circular. O próximo passo é ir parar nos dicionários oficiais.

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Li pouca coisa não acadêmica nos últimos dias. O artigo abaixo me chamou a atenção. Sempre quis ser mais extrovertido. Sempre me senti quase um anormal por não ser tão falante quanto meus irmãos e minha mãe, avó, tios… Nasci numa família de tagarelas e acho que só meu pai, que não era muito de falar, me entendia e não pegava no meu pé por isso. Enfim, se você quiser mudar sua personalidade, parece que tem jeito.

https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/03/how-to-change-your-personality-happiness/621306/

Qual erro de português te irrita mais?

Pra mim nenhum. Mas eu sou suspeito. Sou linguista e fui treinado a ver o erro de português mais como sintoma, do que apenas um desvio do que se considera correto. Aliás, a própria noção de erro é constantemente posta em discussão na academia. Já que o que interessa ao linguista é a linguagem nas suas diversas manifestações, não ficar corrigindo os outros.

Não que a atitude dos falantes em relação a linguagem não interesse. Na verdade interessa pra caramba, tanto que eu estou aqui pensando sobre isso, pois o fato de as pessoas terem reações diversas diante de letras ou sons é um negócio que eu acho admiravelmente curioso.

[No caso da escrita, são só letras, tá ligado? Pra quê todo esse auê?]

A escola deveria ter um pouco esse olhar, pois há erros e erros. Mas, é mais prejudicial do que benéfico simplificar tudo, jogando num mesmo saco coisas que são diferentes, , embora o discurso do certo/errado seja sempre justificado pela sua utilidade pedagógica.

Ortografia

A escrita correta das palavras é um cuidado perene (ou deveria ser). É uma atitude saudável que a gente deveria levar pra vida, como o cultivo de uma boa escrita à mão. A gente trata a escrita do médico como um objeto cultural, mas atender um paciente é o afazer cotidiano desse profissional, e se ele tem que escrever rápido e desleixado porque tem coisa melhor pra ir fazer, então eu acho que entendi tudo errado. Escrever seguindo a ortografia ou escrever manuscrito com uma boa caligrafia são faces de uma mesma moeda: cuidado com o leitor.

[Muita gente por aí destaca o poder da escrita à mão para a memória, por exemplo. Eu sinto que é uma forma de eu manipular mais concretamente os conceitos que preciso assimilar. Semana passada eu estava com dificuldade para entender um texto. Resolvi esquematizar as ideias dele e pronto: ele se abriu como uma castanha difícil de quebrar.]

Quando a escrita é pessoal, tudo bem, escreva como quiser. Mas a escrita pública precisa ser caprichada e cuidada. Eu demorei um pouco a entender esse valor. Um médico que escreve uma receita de qualquer jeito não quer ajudar o paciente, só quer se livrar dele.

Por que um erro irrita?

Não tenho nenhuma resposta pronta pra isso, mas minha hipótese é que é mais uma faceta do preconceito linguístico. Rimos dos erros dos pobres, mas não dos ricos. Os pobres erram tentando acertar, mas os ricos erram (mais) por desleixo ou preguiça. Imagino quantos erros de digitação não aparecem em sentenças e processos judiciais ou note quantos erros não vemos todos os dias nos textos publicados em jornais digitais e blogues, textos publicados no afã de dar a notícia logo, pois vivemos a era da sede de informação (parece que nunca estamos saciados e sempre tem algo acontecendo).

Quando vejo erros de digitação nos meus textos já publicados fico com uma pontinha de embaraço, especialmente na tese e na dissertação, que são textos em que eu deveria ter passado um pente fino ou pago alguém pra revisar. Não tem o que justifique. Especialmente pra alguém da área com acesso a dicionários e recursos tecnológicos.

Ainda o falante e a sua língua

No post de ontem o que eu gostaria mesmo de ter discutido com um pouco mais de vagar era a atitude do Felipe Neto sobre a oração. Esse estranhamento é que eu acho um fenômeno interessantíssimo. É o que o linguista chama de intuição ou de conhecimento “epillinguístico”, essa reflexão consciente que fazemos sobre a língua, mas pensando na estrutura e no sentido das formas da língua.

Talvez um pós-modernista possa olhar para aquele pequeno acontecimento da vida da linguagem e interpretá-lo como um sintoma do descompasso entre as palavras e a gramática, um atrito ou curto-circuito na composicionalidade fregueana (por uma falha no sistema, a soma do todo não resultou na soma do significado das partes e do modo como se combinam). Mas um semanticista de viés lógico, como eu, diria que talvez Felipe estivesse simplesmente equivocado sobre o que as palavras significam ali naquela instância, como uma criança fica chocada quando descobre pela primeira vez a metáfora e se dá conta, deslumbrada, que as palavras não precisam alcançar no mundo sempre aos mesmos referentes, nem mesmo um e apenas um referente. (como assim a gente usa duas negações pra fazer uma negação e não uma afirmação e todo mundo acha normal?)

Se a gente for cavoucar no Twitter vai sair esse tipo de comentário de enxadada. Não é de varde que a Luana de Conto (@apudLuanam) tá se esbaldando de coisas pra comentar.

Para dar mais um exemplo do fenômeno ilustrativo desse estranhamento com a linguagem, a jornalista Renata de Medeiros se questiona se existem as expressões em separado e de fora.

Por que ela se fez (e nos fez) essa pergunta? Podemos supor que o peso da norma padrão é muito forte sobre os jornalistas e escrever corretamente é um requisito básico para o exercício da profissão. Mas note que o raciocínio dela está equivocado numa premissa: por que teria algum problema com as expressões suspeitas simplesmente pela falta de um oposto? Não entendi que tipo de argumento é esse. Ignorando esse aspecto, podemos supor que a questão tenha legitimidade e que é mais um exemplar do estranhamento que mencionei.

O dicionário Houaiss registra as duas locuções sem mais considerações. Provavelmente o uso do adjetivo seja mais comum, Fulano treinou separado do grupo, pois é estrutura ‘normal’ da fala brasileira. Parece que preferimos o adjetivo usado adverbialmente ao advérbio (mas aqui sou eu intuindo, não sei se alguém já fez um estudo sistemático disso), como em Fulano treinou separadamente – mas Fulano treinou separadamente do grupo me soa estranha. [do grupo seria complemento de separado?]

de fora não tem nada de estranho e uma googlada na expressão traz exemplos até de João de Barros, o que demonstra que ela está na língua já tem uns bons séculos. Por que ela supôs que a expressão deveria ficar de fora do uso culto eu não sei. Embora a opção mais curta ficou fora não seja lá sinônima. Posso dizer Fulano ficou com a bunda de fora, mas não Fulano ficou com a bunda fora; por outro lado Fulano ficou de fora da lista de Tite significa a mesma coisa que Fulano ficou fora da lista de Tite.

Duas negações: a intuição e a atitude dos falantes

Todo falante é capaz de usar a língua para falar dela mesmo. É a chamada função metalinguística. É uma capacidade que as crianças desenvolvem ali pelos 6, 7 anos, algumas um pouco mais cedo. Na medida em que ela vai falando mais e interagindo mais com os adultos, ela vai sendo ensinada a prestar atenção ao que diz, a pesar as suas palavras, percebendo que há palavras que não podem ser ditas, há palavras feias e há palavras bonitas.

E nunca mais deixamos de pensar sobre o que falamos, as palavras que usamos e o efeito que elas geram.

Profissionais da palavra, justamente por estarem lidando com ela no dia a dia, certamente estão mais propensos a refletirem sobre o seu instrumento de trabalho.

Felipe Neto se questiona:

“Eu não consigo fazer nada” para ele significa literalmente “eu consigo fazer alguma coisa”. Bom, talvez aí ele tenha usado o sentido de “literal” de modo equivocado. A frase em questão significa, literalmente: “Não existe algo tal que eu seja capaz de fazer esse algo”. Justo o contrário. Por que ela não significa o que Felipe Neto acredita que ela significa? Porque ninguém usou, usa ou jamais vai usar essa oração para descrever uma situação como essa que ele supõe que pudesse ser descrita por esta oração.

Mas ele é um falante nativo, isso indica que sua intuição pode estar equivocada? Não. Eu suponho que ele esteja repetindo algo que leu em algum lugar, porque esse é um fenômeno que volta e meia retorna, como aquelas teorias da conspiração imortais. [Já ouviu falar que as loterias da Caixa são viciadas?] O funcionamento das línguas obedece a uma lógica peculiar, não a uma lógica dedutiva, como a desse raciocínio que supõe que a soma de duas negações forma uma afirmação, como em “é falso que eu não vi a Maria”, que significa, literalmente, que “eu vi a Maria”. Mas veja que eu tive que fazer um volteio pra colocar as duas negações pra gerar uma oração com significado positivo: “é falso que …. não”.

O fenômeno é curioso porque há certas negações que só podem ocorrer sob a influência de outras negações. É o caso de pronomes negativos na posição de objeto em português. “ninguém viu o Felipe” é uma oração bem estruturada, mas “Felipe viu ninguém” não é, enquanto “Felipe não viu ninguém” seria a nossa maneira usual de dizer que “não é o caso que Felipe viu alguém”. Ou seja, a expressão que seria, em tese, negativa, ninguém, passa a significar positivamente “alguém”.

Essa lógica particular da língua me permite dizer que “Ele sentou na mesa” sem querer dizer que o indivíduo sentou “sobre” a mesa ou “em cima dela”. Outro caso é a dupla negação. Mas ela tem uma particularidade, tendemos a usar ela para negar algo enfaticamente. Se alguém supõe, acreditando que é o caso, que eu gosto muito de chuchu; para desfazer o equívoco, eu tenderei a responder: “Eu não gosto não”. E não quero dizer com isso que eu gosto de chuchu, mas quero ter certeza de que o meu interlocutor está equivocado ao me atribuir um predicado desse tipo.

Sírio Possenti já tratou disso tem uns anos. Outro texto esclarecedor sobre o tema é este de Sérgio Rodrigues, escrito neste ano. O primeiro recorre a Machado de Assis, o segundo a Fernando Pessoa, para ilustrar que essa dupla negação está no idioma já faz um bom tempo e se encontra na caneta dos nossos melhores escritores.

Objeto língua: algumas impressões

“Objeto Língua” é último livro publicado por Marcos Bagno. É uma coletânea de textos inéditos e alguns publicados em outros lugares, mas como ele esclarece na introdução, voltou a esses textos e fez algumas modificações neles.

Eu acho sempre ruim quando não se numeram os capítulos de livros, mas vá, lá, cada um com seus gostos. Isso é pra dizer que o livro tem 14 capítulos (sem contar a introdução e a conclusão) e o tamanho dos textos varia um pouco e o assunto deles também é diverso.

Os dois primeiros tratam da visão pessoal do Bagno sobre o tema da norma culta e seu ensino e discussão nas escolas. Minha impressão é que é mais bravata do que outra coisa o título do primeiro capítulo “A norma culta que se lasque!”, pois ele cita Carlos Alberto Faraco, cuja posição tem sido consistente e clara a esse respeito desde sempre: é preciso uma visão mais arejada sobre a norma padrão e seu ensino na escola, para que ela de fato se aproxime do uso culto das classes urbanas escolarizadas do país (estou citando de cabeça,  posso omitir ou suavizar algo). Creio que seja mais uma provocação, como faz Magda Soares no seu clássico “Linguagem e escola”: precisa aprender a norma culta? Aprender para quê? Só se for para lutar contra o sistema que oprime o pobre. (também cito de cabeça). Porque no final das contas é isso. Dizemos que o acesso aos bens culturais das classes mais altas é um requisito para se ascender socialmente. Bagno questiona essa premissa. Ele em parte tem razão, embora o domínio de outra variedade de língua certamente seja um ganho intelectual, mas só isso não garante nada.

É um tema espinhoso e eu gosto desse tipo de provocação, pois além de lutar pelos méritos da norma culta real, Bagno faz questão de escrever usando ELA (como eu também gosto de fazer, pelo menos aqui, onde escrevo como quero).

Os capítulos que eu mais gostei no livro são os que tratam de tradução. Num o autor resenha um estudo que comparou a tradução das tiras completas da Mafalda publicadas em Portugal e no Brasil, cotejando as traduções com os sistemas pronominais das duas variedades de português, especialmente nesse aspecto. Ele discute o conceito de “oralidade fingida”, mostrando que as traduções colocam na boca dos personagens palavras e estruturas que não são nem de perto representações da fala brasileira contemporânea.

Os capítulos em que ele discute o que é uma língua também são bons. Assim como ele faz na sua “Gramática de bolso do português brasileiro”, a discussão sobre o que é uma língua passa pela discussão de aspectos políticos e ideológicos que recobrem o tema. Certamente não é uma questão que possa ser resolvida objetivamente. Mas talvez como resguardo, tanto na gramática quanto no capítulo “Quando surge uma língua nova?” ele lista uma série de aspectos gramaticais (fonéticos e morfossintáticos, especialmente) para mostrar que há “evidências concretas” de que as línguas são diferentes no plano objetivo. Esse movimento me parece algo como: tá, mesmo que você não compre minha argumentação de que a questão é política, veja que temos argumentos objetivos também para afirmar que o português brasileiro É uma língua diferente do português falado em Portugal.

Claro, essa argumentação passa também por agredir e desmontar o ideário de que A língua portuguesa seja a variedade codificada nas gramáticas, a norma-padrão (que não é a língua materna de ninguém, e, portanto, não poderia ser considerada um dialeto ou uma variedade no sentido sociolinguístico).

Na introdução Bagno cita Saussure (“o ponto de vista cria o objeto”) para deixar claro que o que une os textos é que eles expressam sua visão da língua. Tenho a impressão às vezes que esse subjetivismo e, por que não, relativismo, são nocivos ou uma espécie de armadilha que a gente faz pra si mesmo sem perceber. Embora ele fale em “evidências concretas”, até que ponto existem “fatos” se de saída o pesquisador afirma que é o ponto de vista que cria o objeto? Eu não poderia, do meu ponto de vista, dizer que essas variações de pronúncia entre o português brasileiro e o europeu sejam coisas menores? Afinal, do meu ponto de vista, a língua é o codificado na escrita, onde vemos diferenças desprezíveis. Lemos Saramago, Gonçalo Tavares ou Valter Hugo Mãe tranquilamente, não? Embora eu tenha cá pra mim que se os portugueses forem ler um Daniel Galera (especialmente as primeiras edições dos primeiros livros), um Geovani Martins ou um Ferréz a dificuldade será maior para eles.

Se do seu ponto de vista a língua é a fala, mas do meu é a escrita, por que a sua posição é mais “objetiva” do que a minha?

Tem muito de ideológico nesse debate, claro. Tentar reduzir ele a uma questão meramente epistemológica seria reducionismo da minha parte e aqui nesse espaço não vou ter tempo nem paciência para aprofundar a discussão. Só pra tentar fazer uma espécie de conclusão, eu sinto que essa discussão do “ponto de vista cria o objeto” deixa de mostrar que as línguas possuem sim uma face objetiva que é descrita e apreendida pelo estudo linguístico. Se a diferença entre o fone e o fonema é o ponto de vista, não podemos negar que exista uma realidade objetiva nos fones (a gente capta a realidade física deles nos espectrogramas e oscilogramas, não?) e que, embora seja uma abstração, os fonemas são uma tentativa teórica de entender e explicar o que acontece com os sons dentro do sistema gramatical das línguas.

 

Um pequeno livro sobre linguagem e linguística

crystal little

Esse é o primeiro livro que leio do David Crystal. Ele é famoso por ser um prolífico divulgador da linguística. Em português temos algumas traduções de livros seus, como ‘A Linguística’ (1973) e ‘A revolução pela linguagem’ (Zahar, 2006) e ‘Dicionário de linguística e fonética’ (Zahar, 1988).

O livro de que falarei está traduzido como Pequeno tratado sobre a linguagem humana (Saraiva, 2012, trad. Gabriel Perissé), e não sei por que diabos eu fui começar minha incursão na obra do Crystal justamente por ele. Quer dizer, acho que sei. Na verdade, tenho me interessado (e tentado fazer, além de escrever só aqui) pela divulgação científica em linguística – portanto, nada como ler o mestre – e o título do livro me atraiu, confesso.

David Crystal é formado em Inglês pela University College London. Trabalhou por vários anos na University of Reading e no momento é professor honorário de linguística na University of Wales. Mais sobre ele e suas obras pode ser encontrado na sua página.

A Little book of language (UNSW Press, 2010, 261 págs.)  é uma coleção de 37 textos curtos, que cobrem tópicos bem variados.

Os sete primeiros capítulos tratam da aquisição da linguagem. Começando com o domínio dos sons, passando pela estrutura das palavras, pela oração e chegando na conversação. Em seguida ele entra no aprendizado da leitura e da escrita, discutindo alguns aspectos da ortografia no capítulo 10.

Em seguida o livro passa a discutir aspectos variáveis, como noções de dialeto, sotaque e bilinguismo. Esse tema volta posteriormente em capítulos como o 21 e 22, que tratam de mudança linguística e variação linguística, respectivamente.

Depois dessa primeira metade, que parece ter mais unidade, a segunda une uma série de temas como as origens da fala (cap. 15) e da escrita (cap. 16), línguas de sinais (cap. 18), a morte das línguas (cap. 20); um subgrupo de capítulos trata de questões lexicais: gírias (cap. 24), dicionários (cap. 25), etimologia (cap. 26) e nomes de lugares (cap. 27) e nomes de pessoas (cap. 28). Como é um livro de divulgação, não espere grandes profundidades no tratamento desses temas.

O mesmo acontece em outros capítulos em que discute alguns temas mais complexos, que, acho eu, por serem interessantes, poderiam receber um tratamento mais aprofundado. É um livro de divulgação, não esqueçamos. Portanto, não chega a ser um demérito a forma como ele discute a expressividade (cap. 33), o politicamente correto (cap. 34) e o uso da língua na literatura (cap 35).

Como os capítulos são curtos, cinco e sete páginas em média cada um, é de se esperar que os temas sejam tratados superficialmente. O estilo dele é envolvente. Não perde tempo com termos técnicos (só num caso ou outro) e suas explicações são bem claras. Pensando no meu background, o livro não trouxe grandes novidades, mas suponho que um leigo ou um aluno de letras ali nos primeiros semestres certamente achará livro informativo.

 

 

Por que paramos para ouvir os idiotas?

E o pior, por que acreditamos neles?

Nenhum idiota vem com uma plaquinha na testa, nem tem uma cor de cabelo especial. São pessoas normais, brasileiros normais, como eu, você ou o dono da padaria aqui da rua.

A internet deu voz a uma trupe de tagarelas que não tinha audiência. Isso é um fato. Se antes um Olavo tinha que suar um pouco para conseguir publicar um artigo ou outro numa Cult ou num jornalão, hoje ele pode publicar no seu site, falar por horas no seu canal no Youtube ou fazer um podcast, e ainda publicar num site qualquer desses de direita que pululam por aí. Que esses caras falem, não me admira, são humanos, e humanos falam. Me admira que alguém pare para ouvi-los.

Para mim, são como aqueles pastores de praça ou mendigos que anunciam que o fim está próximo em filmes de ficção científica, pouco antes de as trombetas dos anjos vingadores tocarem. Quem dá bola para eles? Aparentemente, muita gente está dando. Afinal, por que alguém doaria R$25mil para um canal que defende o terraplanismo? R$25mil!

Há uma espécie de sedução no indivíduo que se expressa bem. É como se o sujeito bem articulado fosse um encantador de serpentes, um flautista de Hamelin, e nós meros ratinhos autômatos, rapidamente sugestionáveis pelo sussurrar de umas poucas palavras que digam o que queremos ouvir. Mas note que não é apenas o conteúdo, é a forma. O idiota fundamental consegue revestir suas palavras vazias com pompa e autoridade; ele sempre está do lado dos fatos, da lógica, da verdade (note como, durante a campanha, Bolsonaro repetia exaustivamente estar ao lado da verdade ao mesmo tempo em que mentia descaradamente) e confunde correlação com causação sem nem ficar vermelho. Há sempre uma exaltação, uma paixão no seu tom de voz; ele não fala, apenas, ele está indignado. E a indignação é contagiante. Não gostamos de coisas erradas, de políticos corruptos, de funcionários públicos preguiçosos. O moralismo conquista as massas. E o idiota fundamental sempre está do lado do bem; ele detém o monopólio do bem, da família e da religião.

Talvez algum antropólogo sábio já tenha escrito algum livro sobre o poder de sedução que a fala exerce, nesse sentido de pararmos para ouvir o que alguém tem a dizer apenas por que essa pessoa é bem articulada e fala sedutoramente. Suponho que assim tenham nascido a religião e os líderes (não há sociedade humana sem religião e sem líderes, sejam políticos ou espirituais), fazendo aqui uma sociologia artesanal. Não são poucos os que correlacionam falar bem com inteligência e calar com burrice.

“a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.” (Olavo de Carvalho, Bravo! Out/1999)

Na Roma Antiga, falar em público era uma arte e o estudo da Gramática era um pré-requisito para o desenvolvimento dessa habilidade. A escolha das melhores palavras, a boa conjugação dos verbos, a adequada declinação dos nomes, a disposição das palavras na oração, a construção de figuras de linguagem (de pensamento, sintáticas etc.) eram aspectos formais importantes. Note como os jovens vêm se apropriando da nomenclatura de estruturas argumentativas (falácia, solipsismo, ad hominem, etc.) – Nota: Olavo prefaciou uma edição brasileira do livro “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, de Schopenhauer”, no qual diz que seu objetivo é ajudar o leitor “a resguardar-se dos tagarelas, e não a transformar-se num deles”.

O idiota fundamental é um tagarela. E o tagarela nunca estará desempregado: ele está na frente dos microfones nos rádios, ele é entrevistado constantemente, ele exerce cargos públicos variados, ele é o professor da escola, do curso técnico, ele é o advogado, ele é o vendedor, ele é o sacerdote das religiões, ele faz discursos nos bares… Falta-nos, talvez, um esforço de ceticismo. Ao ouvirmos alguém falar tão apaixonadamente sobre alguma coisa, deveríamos ficar com um pé atrás e não acreditar naquilo tudo. Por óbvio que há questões ideológicas envolvidas. Se fulano diz coisas com as quais eu concordo sistematicamente, irei ouvi-lo e tenderei a crer nele sempre; agora, se um jornalista diz coisas que eventualmente contradizem minhas crenças, é provável que eu pare de ouvi-lo.

 

O prazer das palavras, Cláudio Moreno

Confesso que durante minha jornada em Porto Alegre virei fã de Cláudio Moreno (e de outros personagens ilustres das letras gaúchas, como o Assis Brasil, o Luís Augusto Fischer e o Paulo Coimbra Guedes). Eu tinha já há algum tempo o Prazer das palavras vol. 2 (L&PM, 2008) e resolvi ler por esses dias, motivado (um tanto) por estar ministrando a disciplina de Morfologia neste semestre, disciplina em que vez ou outra considerações de etimologia nos assaltam durante a aula.

Os textos sobre etimologia são ótimos e bem fundamentados e sua paixão pelos dicionários é contagiante.

Eventualmente ele escorrega para dogmatismos normatizantes, embora afirme repetidamente (pelo caráter de os textos terem sido originalmente publicados separadamente) que a língua é como um rio, que, mesmo contido pelas margens, segue a marcha inevitável do seu curso natural.

Dou exemplos disso:

“…não tem razão aqueles que insistem em defender a existência de uma ‘língua brasileira’.”

Em um dos textos, Formidável, em que lucidamente explica que o gênero dos substantivos pode mudar com o tempo, o caso analisado é o de grama, que tem sido usado no feminino tanto para se referir à planta quando à unidade de medida (cujo uso tradicional é masculino), Moreno cita um leitor que o critica por subscrever ou aceitar como naturais essas mudanças, que para o leitor não passaria de adesão demagógica. O leitor também teme que Moreno aceite como legítimas formas como nós vai ou menas gente. O professor, então, se defende:

“Com relação a “*menas gente” e o “*nós vai”, deixe de ser exagerado; reconhecer uma hesitação no gênero de certas palavras – fenômeno corriqueiro em nossa língua – não implica aceitar flexões que contrariam as leis intrínsecas do idioma“. (p. 212)

Os asteriscos são do autor. O negrito é meu.

Quem tem medo do português popular na literatura?

 (Ou: qual é o problema de começar uma frase com pronome oblíquo numa narrativa em primeira pessoa que usa um registro coloquial?)
Especialmente pra vocês que gostam de objetos, variação, revisão etc. Duas edições de “Até o dia em que o cão morreu”, do Daniel Galera.
“Não entendi no início. Me levantei e fui à sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Não entendi no início. Levantei e fui até a sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Dei um tapa na orelha dele, o levantei pelo couro, arrastei até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Livros do Mal, 2003, p. 17)
“Dei um tapa na orelha dele, levantei-o pelo couro, arrastei-o até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Companhia das Letras, 2007, p. 13)