Objeto língua: algumas impressões

“Objeto Língua” é último livro publicado por Marcos Bagno. É uma coletânea de textos inéditos e alguns publicados em outros lugares, mas como ele esclarece na introdução, voltou a esses textos e fez algumas modificações neles.

Eu acho sempre ruim quando não se numeram os capítulos de livros, mas vá, lá, cada um com seus gostos. Isso é pra dizer que o livro tem 14 capítulos (sem contar a introdução e a conclusão) e o tamanho dos textos varia um pouco e o assunto deles também é diverso.

Os dois primeiros tratam da visão pessoal do Bagno sobre o tema da norma culta e seu ensino e discussão nas escolas. Minha impressão é que é mais bravata do que outra coisa o título do primeiro capítulo “A norma culta que se lasque!”, pois ele cita Carlos Alberto Faraco, cuja posição tem sido consistente e clara a esse respeito desde sempre: é preciso uma visão mais arejada sobre a norma padrão e seu ensino na escola, para que ela de fato se aproxime do uso culto das classes urbanas escolarizadas do país (estou citando de cabeça,  posso omitir ou suavizar algo). Creio que seja mais uma provocação, como faz Magda Soares no seu clássico “Linguagem e escola”: precisa aprender a norma culta? Aprender para quê? Só se for para lutar contra o sistema que oprime o pobre. (também cito de cabeça). Porque no final das contas é isso. Dizemos que o acesso aos bens culturais das classes mais altas é um requisito para se ascender socialmente. Bagno questiona essa premissa. Ele em parte tem razão, embora o domínio de outra variedade de língua certamente seja um ganho intelectual, mas só isso não garante nada.

É um tema espinhoso e eu gosto desse tipo de provocação, pois além de lutar pelos méritos da norma culta real, Bagno faz questão de escrever usando ELA (como eu também gosto de fazer, pelo menos aqui, onde escrevo como quero).

Os capítulos que eu mais gostei no livro são os que tratam de tradução. Num o autor resenha um estudo que comparou a tradução das tiras completas da Mafalda publicadas em Portugal e no Brasil, cotejando as traduções com os sistemas pronominais das duas variedades de português, especialmente nesse aspecto. Ele discute o conceito de “oralidade fingida”, mostrando que as traduções colocam na boca dos personagens palavras e estruturas que não são nem de perto representações da fala brasileira contemporânea.

Os capítulos em que ele discute o que é uma língua também são bons. Assim como ele faz na sua “Gramática de bolso do português brasileiro”, a discussão sobre o que é uma língua passa pela discussão de aspectos políticos e ideológicos que recobrem o tema. Certamente não é uma questão que possa ser resolvida objetivamente. Mas talvez como resguardo, tanto na gramática quanto no capítulo “Quando surge uma língua nova?” ele lista uma série de aspectos gramaticais (fonéticos e morfossintáticos, especialmente) para mostrar que há “evidências concretas” de que as línguas são diferentes no plano objetivo. Esse movimento me parece algo como: tá, mesmo que você não compre minha argumentação de que a questão é política, veja que temos argumentos objetivos também para afirmar que o português brasileiro É uma língua diferente do português falado em Portugal.

Claro, essa argumentação passa também por agredir e desmontar o ideário de que A língua portuguesa seja a variedade codificada nas gramáticas, a norma-padrão (que não é a língua materna de ninguém, e, portanto, não poderia ser considerada um dialeto ou uma variedade no sentido sociolinguístico).

Na introdução Bagno cita Saussure (“o ponto de vista cria o objeto”) para deixar claro que o que une os textos é que eles expressam sua visão da língua. Tenho a impressão às vezes que esse subjetivismo e, por que não, relativismo, são nocivos ou uma espécie de armadilha que a gente faz pra si mesmo sem perceber. Embora ele fale em “evidências concretas”, até que ponto existem “fatos” se de saída o pesquisador afirma que é o ponto de vista que cria o objeto? Eu não poderia, do meu ponto de vista, dizer que essas variações de pronúncia entre o português brasileiro e o europeu sejam coisas menores? Afinal, do meu ponto de vista, a língua é o codificado na escrita, onde vemos diferenças desprezíveis. Lemos Saramago, Gonçalo Tavares ou Valter Hugo Mãe tranquilamente, não? Embora eu tenha cá pra mim que se os portugueses forem ler um Daniel Galera (especialmente as primeiras edições dos primeiros livros), um Geovani Martins ou um Ferréz a dificuldade será maior para eles.

Se do seu ponto de vista a língua é a fala, mas do meu é a escrita, por que a sua posição é mais “objetiva” do que a minha?

Tem muito de ideológico nesse debate, claro. Tentar reduzir ele a uma questão meramente epistemológica seria reducionismo da minha parte e aqui nesse espaço não vou ter tempo nem paciência para aprofundar a discussão. Só pra tentar fazer uma espécie de conclusão, eu sinto que essa discussão do “ponto de vista cria o objeto” deixa de mostrar que as línguas possuem sim uma face objetiva que é descrita e apreendida pelo estudo linguístico. Se a diferença entre o fone e o fonema é o ponto de vista, não podemos negar que exista uma realidade objetiva nos fones (a gente capta a realidade física deles nos espectrogramas e oscilogramas, não?) e que, embora seja uma abstração, os fonemas são uma tentativa teórica de entender e explicar o que acontece com os sons dentro do sistema gramatical das línguas.

 

Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.

Colocação pronominal: ainda o ‘lhe’

Desde a publicação do post sobre o lhe acabei tropeçando em outros usos desse pronome.

O primeiro é interessante por mostrar que esse pronome também é usado como segunda pessoa, e não apenas como terceira, como eu tinha dito.

(1) Era exatamente o que eu procurava! Lhe dou 10 mil cruzeiros por ele! (clica aqui)

Marcos Bagno (Gramática Pedagógica do Português, Brasileiro, Parábola, p. 765) afirma que esse uso de lhe é regionalizado. Talvez fosse esse uso do lhe que o camarada citado no post anterior tinha em mente ao falar do seu uso por um personagem nordestino de novela.

Além disso, encontrei no ‘Gran cabaret demenzial’, de Veronica Stigger (Cosac Naif, 2007) os seguintes usos do pronome. Na medida em que a obra literária exemplifica o uso culto da nossa época, já que, na minha leitura, ela não constrói um narrador que se vale de formas coloquiais.

(2) Quando ela vinha lhe acordar, ele sempre dava-lhe um tremendo susto.” (p. 37)

(3) Rodolfo correu para socorrer Bianca e foi barrado por um dos fios de náilon estendidos no pátio, que lhe rasgou o terno, a camisa e lhe arranhou a pele. (p. 78)

As sentenças em (2) e (3) apresentam quatro usos de lhe. O verbo dar representa o uso canônico. Mas, de acordo com a minha intuição e com o Dicionário Aurélio, acordar, rasgar e arranhar são transitivos diretos. Em arranhar e acordar o objeto é paciente. Em rasgar, apesar de ser TD, o que parece estar sendo pronominalizado é um adjunto adnominal [cf. rasgou o terno dele] e não um objeto beneficiário (o que poderia justificar o uso do pronome pelo viés semântico).

Os dois exemplos que temos abaixo mostram a insegurança dos usuários dessa forma, pois no mesmo texto o verbo penetrar é usado como se tivesse duas regências diferentes. Nos dois casos, o verbo está sendo usado no sentido sexual. E me parece que nesse caso o verbo possui objeto direto.

(3) A vira-lata girava em torno de si revoltada, rosnando enlouquecidamente quando o maldito lhe penetrava por trás. (p. 39)

(4) Emputecido da vida, se lançou contra a baleia-sem-cu e tentou penetrá-la, mas em vão (…). (p. 41)

As línguas e os costumes

Estou estudando a Gramática Pedagógica do Português Brasileiro (Marcos Bagno, Parábola, 2011) e encontrei esse trecho na página 116, que pode facilmente ser aplicado aos costumes. Sempre haverá aqueles que acreditam em uma época mítica e idílica em todos os políticos eram honestos, não havia violências nas ruas, as mulheres se davam ao respeito, não havia homossexualidade, etc. Lamento dizer, essa época jamais existiu (a história humana é uma sucessão de eventos de genocídio, corrupção, estupros, incestos, etc.). A mesmas pessoas que usam a Bíblia para condenar alguns comportamentos, se esquecem de que a Bíblia contém uma séries de relatos que mostram uma multitude de comportamentos humanos que hoje julgamos reprováveis (Abraão não dormiu com sua filha para que pudesse gerar descendentes homens? [N.B.: na verdade elas o embebedaram e tiveram relação com o homem sem que ele soubesse o que estava fazendo. Esta lá no cap. 19 do gênesis, não sei ao certo o versículo, tirei o trecho da Bíblia online: “Vem, demos de beber vinho a nosso pai, e deitemo-nos com ele, para que em vida conservemos a descendência de nosso pai.”]).

“Qualquer investigação rápida de textos escritos com muitas décadas ou mesmo séculos de distância por pessoas que assumem a tarefa de ‘defender’ a língua mostra que o discurso dessa defesa é sempre o mesmo, os argumentos se repetem de uma época para outra, inalterados, de modo que uma coluna de jornal escrita sobre o tema em 1910 poderia ser estampada em 2010 quase sem alterações. Os linguistas ingleses James e Leslie Milroy batizaram esse traço cultural de ‘tradição da queixa’. E William Labov fala da saudade que as pessoas têm de uma ‘Idade de Ouro’ da língua, em que ninguém cometia ‘erros’, uma época mítica que, por isso mesmo, jamais existiu nem existirá.”

Sobre as redações do ENEM

charge-enem-2Em outros tempos eu me surpreenderia com a celeuma que se criou em torno da correção das redações do ENEM. Hoje penso que não se poderia esperar nada diferente. A imprensa, pelo menos uma parte significativa dela, tem pecado em fornecer ao espectador uma opinião mais balizada sobre os fatos. Veja-se o caso da tragédia em Santa Maria. Nas notícias sobre o caso, o tom geral é “quem vai pra cadeia?”. No final, o que veremos, provavelmente é um pequeno retrato do jeitinho brasileiro de fazer as coisas. Em cidades pequenas todo mundo se conhece, todo mundo tem um amigo em alguma posição de poder que pode falar com outro alguém para afrouxar regras e liberar licenças, mesmo que irregularidades existam. O bom e velho “não dá nada.” Não veremos uma reflexão mais séria sobre as causas e formas de evitar esse tipo de coisa no futuro.

Não tem como esperar que os jornalistas entrevistem alguém que dê uma opinião mais gabaritada. A postura do Marcos Bagno, só dificulta isso, por exemplo. Sua arrogância só pesa contra a academia. Provavelmente ele é o linguista mais conhecido do país. Deveria mostrar mais simpatia. Não sair esbravejando que os jornalistas da Globo são imbecis e que deveriam ser os livros dele. Mesmo o Sírio Possenti (que possui um blog no portal do Terra), por vezes assume uma postura irônica. O artigo que ele escreveu sobre o assunto é uma exceção, eu diria, no seu tom costumeiro. Qual é a imagem que se passa da academia com essa atitude? De qualquer forma, a matéria sensata que saiu no G1 ninguém menciona.

Há duas questões que envolvem a correção das redações: a) houve erro, claro, em dar nota máxima para redações que apresentaram erros ortográficos; b) não há como zerar as redações que fugiram parcialmente do tema. Tentarei explicar essas duas coisas.

É claro que uma redação que apresente erro de ortografia não deveria receber nota máxima. Agora, foi um erro apenas, ou dois? O texto como um todo, como ele se apresenta? Considerando-se os outros critérios, como ele seria avaliado. Essa reportagem não diz isso. O máximo de especificidade que se lê é “uma redação apresenta dois erros de concordância”. Suponha que o problema fosse apenas esse. Que nota a redação tiraria se os pontos tivessem sido descontados? Digamos que 950 de 1000 possíveis? Como o ENEM é uma avaliação nacional, não sei até que ponto ela gera uma classificação e um ordenamento dos “candidatos” (candidatos a quê?), então minúcias não fazem diferença. Pelo menos não a diferença que fazem em um vestibular padrão em que décimos são fundamentais para classificar candidatos muito bem preparados para cursos com concorrência alta. Do meu ponto de vista a reação foi exagerada. Em quantas redações isso aconteceu? Zero vírgula tantos porcento de milhões de redações…

Agora o problema (b): as redações deveriam de fato ter sido zeradas? Segundo essa reportagem, que muito bem detalha o processo da correção, não. A fuga do tema é parcial. Se os sujeitos queriam mesmo ter zerado a prova e mostrado que os corretores não leem a prova, deveriam ser escrito apenas a receita de miojo ou apenas o hino do Palmeiras. Do modo como escreveram, o corretor irá avaliar como fuga parcial. Dará a nota mínima para o domínio do tema, para quesitos de coesão e coerência e estruturação do texto. Os corretores partem do princípio que ninguém que participa do processo está ali de brincadeira, portanto avaliam a redação da forma mais séria possível, considerando dificuldades eventuais que as pessoas possuam no trato com a linguagem escrita. O sistema seria falho se o sujeito tivesse escrito apenas a receita do miojo e tivesse tirado nota 700-800 por exemplo, o que mostraria que a nota foi aleatória.

Um parêntese: As pessoas não entendem que vestibulares existem apenas porque a demanda é maior do que a oferta. Se nos vestibulares se desse zero para toda redação que apresenta fuga parcial do tema, cursos com concorrência pequena não conseguiriam fechar turmas. O vestibular é essencialmente um processo classificatório. A conclusão do Ensino Médio habilita qualquer um a entrar em um curso universitário. Fazer vestibular para cursos que tem concorrência de 1-1, ou menor que isso é uma perda de tempo e desperdício de dinheiro.

As charges que se produziram, as reações dos jornalistas e opinionados por aí são naturais; procuradores enraivecidos moverão ações contra o MEC. Todos estão no seu direito. Nenhum sistema de correção ou avaliação é 100% seguro, pois existe sempre o elemento humano, imprevisível. Nos escandalizamos com vendas de vagas em vestibulares de medicina. Ninguém falou em punir aqueles que compraram as vagas (gente de poder aquisitivo alto, claro), apenas aqueles que fraudam o processo. Pagar por uma vaga em uma universidade não é fraudar o processo também? Já o erro humano, ou a ingenuidade de algum corretor, que acreditou não ter problema em dar nota máxima para uma redação que apresentasse apenas um ou dois erros de ortografia, é natural e sempre irá acontecer. Nossa tendência natural de generalizações irá concluir que todos os corretores são imbecis e o processo todo de avaliação é uma bosta. Um assassino que saia de um julgamento declarado inocente nos dará a impressão que todo o sistema judiciário é uma piada. Simplesmente esquecemos de todos os outros 99% dos casos em que ele funciona e condena assassinos. O objetivo dos “candidatos” que tentaram mostrar que a avaliação é falha não foi bem sucedido, como tentam mostrar certas reportagens. Na verdade, o que essa pequena experiência nos mostra é justamente o oposto. Que os critérios, por mais que o elemento de subjetividade seja inevitável, foram bem aplicados e as redações foram avaliadas com cuidado.

Nóis mudemo

Muito bom esse texto de Fidêncio Bogo. Quem acha que não existe preconceito linguístico deveria ler.

Dois livros são básicos para que se entenda essa problemática toda em torno da norma culta. Carlos Alberto Faraco e o seu Norma Culta Brasileira (Parábola) e Marcos Bagno com Linguística da Norma (Loyola), esse último uma coletânea de artigos de vários linguistas brasileiros.

A Gramática é que é a dona da verdade

Isso é o que diz o sábio Carlos Eduardo Novaes. O texto é no mínimo engraçado e repete uma série de preconceitos que não ultrapassam um tratamento raso da questão. Dá até para usar como exercício para que calouros de Letras possam contra-argumentar.

Vou citar dois trechos do livro de Carlos Alberto Faraco (2008, Parábola) sobre o problema da norma culta:

O reconhecimento “…da diversidade contribuiu também para refinar … a percepção de que do ponto de vista exclusivamente linguístico, os diferentes modos sociais de falar e escrever a língua se equivalem: cada grupo de falantes realiza a língua por normas diferentes, mas nenhum deixa de ter suas normas.” (p. 54)

Eu não sei de onde se criou esse imaginário que afirma que os falares que não seguem a gramática normativa destroem a gramática da língua e são o caos (talvez daquela mentalidade dos séculos XVIII e XIX que afirmava que a mudança era fruto de desleixo e ignorância dos falantes). Todo falante segue algum tipo de norma ou regra, isso é um fato. Não dá para falar uma língua sem seguir alguma regra.

Ainda Faraco: “Alguém disse que, no nosso país, toda polêmica termina na gramática. Isso quer dizer que, à falta de argumentos para sustentar o debate, nosso costume é apelar para o trambique retórico, ou seja, tentar desqualificar o oponente apontando-lhe “erros” de português. Em outros termos, quando nos faltam argumentos, nosso último recurso é xingar o adversário de ignorante, ‘pois nem a língua sabe falar bem’.” (p. 65)

Interessante, não? Às vezes tenho a impressão que o Bagno está certo, o debate está sendo conduzido por não especialistas, o que só contribui para a desinformação.  A revista Isto É publicou matéria no dia 25/05/2011 entitulada “O assassinato da língua portuguesa“. O artigo tenta desqualificar Bagno, dizendo: “Bagno afirma que a linguagem reproduz desigualdades sociais – como se isso fosse uma descoberta assombrosa.” Claro que a descoberta não é dele, isso sempre foi um fato, não uma descoberta. Cristóvão Tezza é colocado como a voz dissonante entre os “especialistas” que criticam o livro, são eles: Cristóvão Buarque, Nélida Piñon, Fernando Morais, Ana Maria Machado e Marcos Villaça. Talvez o MEC devesse convidá-los para fazer parte da comissão que avalia os livros didáticos, já que eles parecem entender mais de ensino de língua do que o Tezza e tantos outros defensores do livro, que são tidos como minoria. Só pra constar tem um quadrinho ao lado na reportagem “As trapalhadas de Haddad”: novamente estão politizando uma questão que não é política. É política em um sentido, mas não é político-partidária. Para a reportagem, o método do livro causa estragos à aprendizagem, já que manteria os alunos na mesmice e não ensinaria o português culto. Será que eles estão certos? Eu queria saber como jornalista aprende a escrever nos cursos de jornalismo pelo país afora, será que é em aulas de gramática tradicional, aprendendo regência e concordância, colocação pronominal, ortografia, uso do acento grave, etc. ou em oficinas de produção escrita? Fica a pergunta…

O senador Cristóvam Buarque, estranhamente tem defendido posições conservadoras em relação à questão. O argumento para a valorização da língua que a criança traz de casa não é o argumento do preconceito. É a simples constatação: falamos de uma forma e escrevemos de outra; há um português popular e outro dito culto (embora a passagem de um a outro seja gradual e não dicotômica). Há preconceito também, mas não é esse apenas o ponto. A escola sempre ignorou a fala e sempre tratou a fala e a escrita como coisas iguais. Não são, repito. Há muito tempo linguistas defendem que se discuta a oralidade em sala de aula. Luiz Antonio Marcuschi (Da Fala para a escrita) e Ataliba Teixeira de Castilho (A língua falada no ensino de português) são apenas dois exemplos.

Eu fico por aqui. Recomendo dois sites:

Stella Maris Bortoni-Ricardo , professora na UnB, tem reunido alguns textos interessantes no seu site.

– O colega e amigo Rodrigo Gonçalves, professor na UFPR, também reuniu alguns textos no seu site.

Em tempo: Marcos Bagno e Evanildo Bechara foram entrevistados pela Folha Dirigida. Achei engraçado que o Bagno criticou a ABL e chamou o Bechara de conservador. A folha perguntou ao Bechara como ele se defende disso, e ele disse simplesmente que o que o Bagno defende em seus livros são ideias antigas no estudo da linguagem. Quer dizer, o seu argumento é desqualificar o atacante, não o ataque. Modestamente há opiniões bem contestáveis em tudo que o Bechara fala. Me estranha também que a entrevista que o Bechara concedeu seja bem maior que a do Bagno. O que também é estranho é ninguém falar de outros linguistas que defendem propostas similares às do prof. Bagno, e não são poucos. Daí fica parecendo que ele é um exército de um homem só.

Um trecho da entrevista do Bechara:

“O senhor conhece a proposta de reconhecimento de um “português brasileiro”, defendida pelo professor Marcos Bagno? A argumentação do professor da UnB procede? Por quê?

Monteiro Lobato dizia: “Assim como o português nasceu dos erros do Latim, o ‘brasileiro’ nascerá dos erros do português”. Ora, é degradante para um país nascer da miséria de outro. Certa vez, no Colégio Pedro II, o professor Hermes Parente Fortes escreveu uma tese para ingresso na instituição defendendo a existência de um “português brasileiro”. E o professor Oiticica (José Oiticica), catedrático de língua portuguesa, o examinou. O professor Oiticica disse a Hermes Parente Fortes: “eu vou passar a acreditar nessa tal de ‘língua brasileira’ quando o senhor traduzir para ‘brasileiro’ a oração do Pai Nosso. A característica de uma língua é a sua traduzibilidade. Se mudamos uma palavra por outra, isso não é tradução. O Espanhol é muito parecido com o Português.”

Ele sabe que a definição de ‘língua’ é mais política que linguística, não? Espero que sim, mas não é o que ele diz. Se a referência dele em mudança linguística é o Monteiro Lobato…Fica aí uma traduçãozinha do Pai nosso para o português brasileiro:

“Pai da gente que tá no céu, santificado seje o teu nome, venha até a gente o teu reino, seje feita a tua vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia dá pra gente hoje, perdoa a gente pelas nossas ofensas, assim como a gente perdoa quem ofende a gente, não deixa a gente cair em tentação e livra a gente do mal. Amém.”

Alguns programas

Dois programas interessantíssimos. O primeiro é uma entrevista com José Luiz Fiorin. O segundo é o programa Observatório da Imprensa. Esse programa semanal sempre traz a discussão de temas atuais com convidados interessantes e que sabem do que estão falando, embora, modestamente, eu não acho que o Deonísio saiba do que está falando. Participam também do debate o prof. Sérgio Nogueira e o prof. Marcos Bagno, da UnB.