Mentiras, fake-news e lorotas

Num outro mundo possível, as declarações que as pessoas fazem viriam etiquetadas com algum tipo de rótulo: mentira, fake-news, lorota, lenda, história de pescador, fofoca ou algo nesse sentido. Mas não é assim que a comunicação funciona no nosso mundo. Pra muita coisa que lemos e ouvimos, temos que ter um radar de bobagem ligado. Ernest Hemingway disse certa vez que o escritor precisa vir de fábrica com um detector de bobagem. Nem todos os escritores nascem com isso, claro, senão não teria tanta literatura ruim atulhando livrarias, sebos e bibliotecas.

No caso do ouvinte ou leitor, a questão é um pouco diferente, mas a analogia vale como ilustração da nossa capacidade de se deparar com um conteúdo que nos comunicam e refletir sobre a plausibilidade dele. Ninguém é totalmente cético, e ninguém é totalmente dogmático. O ateu ou agnóstico são dogmáticos no seu ceticismo, e o crente (em sentido lato) é a todo momento convidado a crer, pois é da nossa natureza também a desconfiança. Todo mundo tem um pouco de São Tomé.

Claro, há um lado social ou antropológico na equação. Tendemos a acreditar mais nas pessoas que são mais próximas, como família, amigos, comunidade, líderes religiosos, líderes políticos de mesma inclinação ideológica; e a desconfiar de desconhecidos e líderes religiosos e políticos de agremiações que professam crenças diferentes das nossas.

Que pessoas usem os meios de comunicação para espalhar aos quatro ventos as suas opiniões eu acho natural e até interessante. Faz parte da democracia. Vivemos na era da comunicação: podcasts, videocasts, redes sociais. Qualquer tagarela pode hoje pegar seu celular e atingir milhões de pessoas em segundos. Mas é sempre bom a gente ter ligado o nosso radar de bobagem ligado. Afinal, assim como há muita informação, também há muita desinformação.

Vou tentar convencer vocês de que há pelo menos três tipos de “inverdades” que circulam na sociedade. A mentira, a fake-news e a lorota. Tentemos separá-las.

A mentira tem duas características essenciais: é aquele enunciado que é contra os fatos e que tem a peculiaridade de que quem o enuncia sabe que está indo contra os fatos, e, portanto, quer enganar o seu ouvinte. Um exemplo. Imagine um adolescente que mente para os pais que fez a lição de casa, quando na verdade passou a tarde inteira jogando videogame. Ele sabe que não fez a lição de casa e tem a intenção de enganar.

A fake-news é parecida. Ela é um enunciado criado para ir contra os fatos, criado para enganar. Mas há um porém: apenas quem o criou sabe disso. Quem passa a circular a fake-news acredita que ela é verdadeira e não tem, portanto, a intenção de enganar ninguém. Há toda uma indústria de criação dessas notícias e histórias. Para dar um exemplo (há tantos por aí que é até difícil escolher), no começo do ano passado circulou uma notícia de que vários membros do governo respondiam a processos na justiça. Um deles era o ministro dos direitos humanos, Sílvio de Almeida. Sílvio é jurista, portanto, é natural que seu nome apareça em muitos processos. Essa é uma das mecânicas desse tipo de inverdade: de um fato se cria uma fake-news. Essa é a definição estrita de fake-news: uma notícia inventada.

A lorota é um pouco mais complexa. O que chamo de lorota é inspirado no conceito de ‘bullshit’ do filósofo Henry G. Frankfurt (‘On bullshit’, Oxford, 2005). Outros termos vernáculos se aplicariam aqui, creio eu, como ‘bobagem’ ou ‘besteira’. Na essência, a lorota é uma ideia em que o falante acredita, mesmo que vá contra os fatos. A intenção de enganar não é crucial aqui, embora possa estar presente. Muitas vezes acontece o oposto, ele tem a intenção de esclarecer, ou supõe, ingenuamente, estar do lado de uma verdade que só ele é capaz de ver. A famosa doutrinação esquerdista das crianças é uma dessas lorotas. A conspiração dos homossexuais e sua ideologia de gênero para destruir as famílias é outra. O essencial aqui é que quem conta uma lorota não está nem um pouco preocupado com a verdade. Quem mente sabe que está enunciado algo falso, já quem conta lorota, não está preocupado com os fatos, está preocupado em criar uma situação que esteja de acordo com sua visão das coisas, sejam elas falsas ou verdadeiras.

Tanto a mentira, a fake-news e a lorota são ideias que só confundem o debate público e nos fazem perder tempo para desmenti-las. Há alguns complicadores do nosso tempo. A opinião pública não é mais formada apenas por especialistas em buscar a verdade, como jornalistas e cientistas. Agora mesmo o seu vizinho ou vizinha pode estar pensando em criar um podcast para falar sobre tarô, o campeonato de futebol de botão da Suécia, ou como ganhar dinheiro com apostas. E no meio dessa balbúrdia, quem tem espaço no debate público acaba sendo impelido ou compelido a emitir opiniões sobre temas que não domina ou, pior ainda, sobre os quais é completamente ignorante. Acontece que quem está no espaço público, normalmente, se expressa bem, sabe usar as palavras. E nada mais sedutor do que alguém que fala bem. Pessoas que falam bem chamam a atenção, conquistam nossa confiança. Pouco importa o conteúdo, importa a forma. Um podcast ou videocast bem produzido, com pessoas com aparência de especialistas em alguma coisa falando vai ter repercussão, mesmo que o conteúdo seja um monte de lorota.

(Texto a sair no Jornal Caiçara https://jcaicara.com.br/)

_________

Esse é um tema quente e tão amplo que certamente deixei de tocar em coisas importantes, especialmente o papel da crença do falante sobre o estado de coisas que enuncia. Ele é fundamental desde uma simples asserção até na mentira. Notem que para o Frankfurt, na lorota o elemento fundamental é o desprezo por qualquer conexão com os fatos.

Ser pai

Nunca quis ser pai. De verdade. Às vezes eu me pergunto por que é que eu fui me casar justamente com alguém que eu sempre soube que queria ser mãe. Mas é aquela coisa, a gente vai lidando com o que consegue controlar, os próprios medos, expectativas, desejos… entidades mutantes… e o negócio é que eu casei, passei num concurso público, me mudei para Porto Alegre e… por que não ser pai? Esse é ciclo tradicional da vida adulta e eu fui me deixando levar.

Eu poderia ter batido o pé. Ela sabia. Tínhamos conversado sobre isso algumas vezes. Eu não me via como pai. Eu, Luisandro, pai? Um colega de universidade, naquela época em que a Gisele estava tentando engravidar, me disse que também não pensava em ter filhos quando era jovem (aliás, coisa muito comum isso de não querer ter filhos entre professores universitários). Só que aconteceu. Depois de ser pai de duas meninas, ele não se arrependia. O sentido era o oposto. Naquela altura da vida, já cinquentão, disse que estaria arrependido se não tivesse sido. Aquilo virou uma chave em mim. Gosto de experiências novas e ao não ser pai eu estaria me privando de emoções que só filhos podem proporcionar.

Pula pra 2022. Sou pai de duas meninas, Gabriela (8) e Sofia (4).

Aparentemente, ser um bom pai nunca foi uma grande questão na arte (no cinema, na literatura). Deus pediu a Abraão pra sacrificar seu filho e ele foi lá sem pestanejar, embora fosse só um teste (Gên., cap. 22). Esse ‘deus pai’ da Bíblia eu dispenso. O mais comum na ficção e na história é os filhos estarem loucos pra tomarem o lugar do pai, ainda mais se houver poder envolvido (Édipo, Rei Lear, César etc.). O Jack Pearson, de “This is us”, é um bom pai, faz tudo pela família e, em vários sentidos, se sacrificou por ela. Talvez porque não exista aí uma questão.  No que eu discordo.

Não acho que seja fácil ser pai. Lembro dum texto do Marcos Piangers que dizia que o principal é estar ali, presente. Crianças são seres que demandam atenção e dão trabalho. Muito. Mais do que a coisa toda de ser pai (colocar alguém no mundo), o que mais me assustava era isso do trampo envolvido: dar banho, trocar de roupa, dar comida, levar pra escola, ajudar na lição, brincar, ter que ver todos os episódios de Ladybug e Princesinha Sofia etc. E o que me pega nem é tanto fazer essas coisas todas, que eu faço (reclamo, mas faço).

O que me afeta muito é que estou deixando de ver minha série pra ver as delas, deixo de ler meu livro para ler uma história para elas dormirem, há um bom tempo não vou ao cinema, e não me lembro da última vez que fui num show para ouvir música ao vivo ou num restaurante sem espaço kids e sem me preocupar se tem também alguma coisa para elas comerem lá. Basicamente a gente deixa de ser a pessoa mais importante da própria vida (frase que vi num seriado cujo nome me escapa agora). E isso assusta um bocado uma alma narcisista e egoísta como a minha. Na real, confesso, o que eu acho difícil é dar carinho.

A gente, bicho homem, não foi ensinado a dar carinho.

Parêntese: tive uns exemplos meio bostas de pai na família. Todos uns cachaceiros, grosseiros. Sabe esses avós grisalhos fofos que brincam com os netos no Natal? Pra mim é ficção. Meu avô materno largou minha avó quando minha mãe e meus tios estavam ali com seus dez anos e pouco, a deixou sem pensão, tirou as filhas meninas da escola e as colocou para trabalhar de domésticas. Baita exemplo. Do avô paterno me lembro vagamente, convivemos pouco. Sem falar que não conheço meu pai biológico…

Mas aí a vida me deu duas filhas meninas. E elas demandam muito carinho. Elas querem colo, querem ir no cangote. Digo que elas não são humanas, são micos que querem viver dependuradas no meu pescoço. Elas choram porque acabou a bateria do tablet, elas choram porque estão com sono e não querem dormir, elas choram porque não querem tomar banho, elas choram porque não querem sair do banho, elas choram porque o cachorro deu uma mordidinha que machucou a mão delas…

Uma voz em mim me diz pra sair correndo, outra pra ir lá dar um tapa na bunda delas, outra pra dar um grito. Pois foi isso tudo que eu vi os homens da minha família fazendo. E talvez tenha que ver um tantinho com essa minha personalidade desajustada também (torcendo aqui pra terapia concertar isso). Decididamente, não quero ser como eles. Mas outra também diz pra ir lá e dar um abraço, pegar no colo e fazer uma coceguinha. Na maioria das vezes, essa é a voz que tem vencido.

___

Trecho do Papo de Segunda dessa semana sobre paternidade (onde se inscreve pra ser amigo desses caras?). Ter um programa de televisão falando dessas questões é sintoma disso tudo que eu falei acima.

Procurando defeitos

Isso de ser linguista e escritor vai tirando da gente uma certa ingenuidade em relação à linguagem. Não posso mais falar e escrever com a liberdade daqueles que simplesmente jogam os chinelos a um canto e entram na quadra de terra batida pra bater uma bola.

Mas isso não é coisa só minha (nem poderia ser, né?). Nas redes sociais o povo é habilíssimo nesse escrutínio. O que me lembra daqueles caras que acham defeitos mínimos em cenas de cinema. (Haja tempo!) A literatura ainda se salva porque ela é feita de recortes, e o que fica de fora, muitas vezes, importa bem pouco.

Li no início do mês, Diário da Queda (Companhia das Letras, 2011), de Michel Laub. Me impressionei que ele falasse tão pouco, quase nada da mãe. Das mães da família em geral. Excluindo o amigo sem mãe, o narrador certamente tem uma e ela quase não aparece na narrativa. O foco está na relação entre os homens da família e tal. Entendo. Claro que entendo. Mas significa, não? Fiquei com a impressão de que a mãe dele era um ser passivo na relação dele com o pai, especialmente nos momentos decisivos dessa relação.

Em Better Caul Saul, uma complicação chave da segunda temporada é a adulteração de alguns documentos promovidas por Jimmy para ferrar seu irmão Chuck. Chuck tem uma intolerância à eletricidade. Vive às escuras, sem eletrônicos de qualquer espécie por perto. Por isso fiquei surpreso quando Chuck diz num episódio depois que seu suposto erro aparece que ele tem certeza de que digitou corretamente os documentos. Como assim ele “digitou”?

Muita gente se surpreende com os rolês das crianças em Stranger Things? Cadê os pais? Por que estão na rua até tarde? Crescer num subúrbio americano deve ter lá suas vantagens, mas crescer numa cidadezinha do interior do meio-oeste (que pra mim não tem nada de oeste, só meio mesmo) tem outras, como poder ir e vir de bicicleta pra todos os cantos e a cidade ter apenas um punhado de policiais. Essa foi a minha infância em União da Vitória. Eu e meu irmão mais novo apenas falávamos para nossos pais que estávamos saindo para ir na casa de algum amigo ou jogar bola na praça do bairro. Eles não se davam ao trabalho de ir lá conferir, claro. E muitas e muitas vezes íamos para outros lugares.

Por isso evito ler resenhas e críticas de filmes e livros antes de tomar contato com eles. Cruzei só de relance com o título de uma resenha do livro novo do C. Tezza, Beatriz e o poeta, e o título falava em ‘personagens ruins’. E agora, ao ler o livro, tenho achado o personagem do Gabriel, o poeta, um completo porre. Verborrágico, metido, até um bom tanto inverossímil (ninguém fala daquele jeito). É o Luisandro quem está achando isso mesmo ou minha leitura foi enviesada pelo que li?

Filme:

Deserto particular (HBO). A premissa é muito boa. Um oficial da PM é afastado após um ato intempestivo de violência durante uma instrução de soldados. Daniel, o personagem principal, cuida do pai, que tem Alzheimer, com quem mora, e que é PM aposentado. O personagem tem várias nuances e vamos sendo apresentado a elas aos poucos. Ele parece ser um macho tóxico por todos os caracteres que associamos a sujeitos que são militares, além de ele ter um biotipo fortão, calado e não reagir muito bem quando a irmã lhe conta que está namorando uma mulher. Isso tudo a gente descobre nos primeiros minutos do filme. A intriga começa a ficar interessante quando Daniel decide ir atrás da baiana de Sobradinho com quem vem trocando mensagens pelo Whatsapp. Não sabemos muito bem o que motiva a viagem, além do fato de ela ter parado de lhe responder. É apenas a paixão que o move ou é a vontade de simplesmente sair de Curitiba e se afastar dos problemas (o processo disciplinar, o pai… ). Chegando lá, ele procura Sara e aos poucos vai descobrindo que ela não é muito bem quem ele esperava. Li resenhas elogiosas, outras nem tanto. Para mim é nota 6. Os diálogos são bons, o enredo é bom, mas tem algo ali que não me agradou, como a mudança de perspectiva. O filme começa centrado em Daniel e num certo ponto passa a tratar mais da Sara.

A história das cidades

Tenho uma relação peculiar com as cidades em que morei. Nascido em São Miguel do Oeste (SC), vivi lá alguns nacos da infância, mas também vivi parte dela em Chapecó (SC). Não me sinto pertencente a essas cidades, como se elas fossem parte indelével de quem sou. Me sinto mais porto-união-vitoriense, essa cidade que é uma e ao mesmo tempo é duas, metade Paraná (União da Vitória) e metade Santa Catarina (Porto União). Vai ver porque eu fui para lá aos doze anos e por lá fiquei até os vinte e dois. Dez anos, da pré-adolescência ao início da vida adulta. Lá construí minhas principais amizades fora do círculo profissional. Lá conheci minha esposa e mãe das minhas filhas. Meus pais estão enterrados sob aquele solo.

Tem alguma coisa na água. Claro que tem. O rio sempre exerceu um fascínio enorme sobre mim. As águas volumosas do Rio Iguaçu me assombravam e me atraíam. Eu via aquela massa marronzada seguindo seu curso lento e tinha vontade de pegar uma canoa e ir ver como ele desaguava na sua foz; queria me deparar com as criaturas que se dizia moravam no seu leito e que vez por outra inventavam de fazer as águas se elevarem e inundarem boa parte da cidade.

E tem a história. Mesmo não tendo sido palco de batalhas do Contestado, aquele trilho de trem cortando a cidade em duas era a testemunha de um Brasil que não existe mais, de uma estrada que ligava Porto Alegre a São Paulo e que simplesmente foi abandonada. Não me recordo dos trens circulando, pois morávamos naquele início dos anos noventa num bairro distante do centro e deles. Hoje vejo os trilhos do antigo pátio de estacionamento das locomotivas tomado pela grama e pelo mato, com todos os galpões e oficinas já demolidos e tempo imaginar o movimento que ocorria por ali no tempo da pujança econômica da cidade: dezenas de madeireiras e fábricas de esquadrias de madeira, fábrica de cerveja, moinhos de trigo, olarias, dois jornais, uma faculdade estadual e uma municipal, várias tipografias, clubes…

Era a história daquele lugar que me fascinava. Li Conhecendo Porto União porque meu pai trabalhava na gráfica que tinha impresso o livro e ele trouxe um exemplar para casa. Era um livro que trazia informações históricas, econômicas e geográficas da cidade.

A cidade tem dois estádios de futebol, o Antiocho Pereira e o Ferroviário. Até onde sei, boa parte dos terrenos da antiga rede ferroviária foram dados para a prefeitura. E a prefeitura de União da Vitória pretende leiloar o terreno do estádio do Ferroviário. Entrei lá uma ou duas vezes, se isso, não me lembro para ver ou fazer o quê. O estádio fica próximo do antigo pátio dos trens e da vila dos ferroviários, onde também há um clube. A construção é modesta, mas me impressionava pela imponência, embora seja uma construção simples que imagino que deva ser praticamente a mesma desde a sua construção nos anos 1940.

A cidade em que eu vivi não existe mais. A cada semestre um novo prédio surge ocupando o lugar de uma construção histórica. Os trilhos despareceram até da antiga ponte férrea, agora usada apenas por ciclistas. Alguns poucos estão sendo restaurados para a criação de passeios com uma antiga locomotiva, mas não sei que caminho fará, já que várias das pontes férreas da região estão abandonadas e imagino que logo, logo cairão aos pedaços pela ação do tempo.

Sempre que leio notícias de descobertas de escavações de civilizações antigas (Roma, Grécia, Egito etc.), penso no momento em que alguém deve ter decidido cobrir de terra um lugar daquelas cidades antigas e construir algo novo em cima. Nós não deixamos de fazer a mesma coisa. Continuamos o ciclo eterno de destruir o velho para se construir coisas novas. Preferimos por tudo abaixo a modernizar ou preservar.

Mas diferentemente das civilizações antigas, ali, daqui a dois mil anos, não haverá nada por baixo para se desenterrar.

Links

Sobre o leilão do estádio e o time dos ferroviários.

Consignado

Todos os dias a cada hora, às vezes a cada trinta minutos alguém me liga. É sempre um número desconhecido. Ignoro, geralmente, ciente de que deve ser alguém tentando me vender algum serviço de que não preciso, como uma pós-graduação qualquer com descontos imperdíveis, condições facilitadas de pagamento, aulas totalmente online e daí por diante.

Eventualmente atendo, na esperança de que seja alguma proposta inédita, algum prêmio que ganhei, alguma dívida que nem sabia que tinha… mas não, é sempre uma proposta de renegociação do meu consignado. “Luisandro? Bom dia, Sr. Luisandro, eu falo aqui do Banco XY, somos correspondentes do Banco Grande Marca Conhecida”. Desligo. Às vezes vou até a parte em que me perguntam se eu já recebi alguma proposta de renegociação. Dá vontade de rir, porque eles sabem que me ligam umas dez vezes por dia.

Mas quem me liga? Ingenuamente imaginei certa vez que fossem sempre os mesmos bancos e escritórios. Não são. Quantos escritórios desses existem pelo país? É difícil saber também, pois os DDDs são aqui do Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo… e tirando os cariocas e nordestinos, não consigo distinguir os outros. Supondo que existam uns dez escritórios em cada cidade grande desse país, quanto tempo levaria para que todos me ligassem? Mas eles não vão desistir, pois há aqueles que eu não atendo, e tenho certeza que meu número voltará para alguma lista e o computador tentará me ligar de novo.

E esse é o dilema todo. Imagino meu número lá no meio de toda uma lista de números de funcionários públicos com empréstimo consignado. Como eu, esses coitados recebem dezenas de ligações diariamente. E continuaremos a receber, até que todos os escritórios do Brasil tenham ligado e sido atendidos, nem que seja para dizer que não se está interessado, quanto, então, o número voltará para uma outra lista: “ligar novamente em seis meses”.

Links

Os gregos não enxergavam a cor azul?

O que é ‘tankar’?

A arte agonizante do ensino na sala de aula digital

Livros:

O diário da queda, Michel Laub (Companhia das Letras, 2011): Homem dos seus quarenta anos relembra a relação com o pai e com um colega de escola. Judeu, seu avô (que não conheceu) é sobrevivente de Auschwitz. Isso ele só descobre depois de uma briga com o pai, que então lhe mostra os cadernos do avô, que ao final da vida resolve escrever uma espécie de dicionário pessoal da vida, embora seja incapaz de falar sobre o trauma do campo de concentração. O livro é narrado em primeira pessoa, em capítulos curtos. Não é um diário, como o título dá a entender. São recordações do passado, às vezes misturadas com reflexões sobre o presente. Tem uma reflexão interessante sobre a condição judaica, a construção da identidade na adolescência e sobre a relação com o pai.

Cafuné

“Cafuné” é uma palavra de origem controversa. É o que os dicionários nos dizem, embora se supõe que venha do quimbundo onde significa algo como “torcer a cabeça de alguém”. Como é que um ato agressivo foi atenuado para um ato carinhoso me soa como um completo mistério. Essa palavra significava isso quando nos foi emprestada? É difícil responder a essas questões, já que é bem comum que nos empréstimos ocorra algum tipo de uso “equivocado”. Para dar um exemplo, o que chamamos de ‘outdoor’ os americanos chamam de ‘billboard’, sem falar do caso mais extremo: ‘cheese burger’ é o sanduíche com queijo e hambúrguer que a gente abrasileirou simplesmente como ‘xis’ para designar qualquer variação desse sanduíche.

Eu fiquei na dúvida porque eu estava lendo com as minhas filhas um livro de uma coleção da Turma da Mônica com as letras do alfabeto. Na letra I, o personagem principal é um indígena, o Papa-capim. Acontece que ele tem um amigo de tribo chamado “Cafuné” e como eu já tinha ouvido falar de que ‘cafuné’ era de origem africana, fiquei intrigado e fui pesquisar um pouco mais. De qualquer forma, achei um nome pouco convencional para um indígena, um nome que nem tupi é. Já ‘capim’ sim é tupi, mas também me parece estranho nomear um guri (outro termo que veio do tupi, ‘gwiri’, que significa “bagre novo” e “criança”) como “comedor de capim”.

De qualquer forma, meu estranhamento não ficou por aí. Na história, os indiozinhos estão vendo formas nas nuvens. E para minha surpresa, entre as várias coisas que imaginaram na forma das nuvens, eles viram uma iguana e um iceberg. Iguanas no Brasil? Fiquei intrigado também e fui descobrir que aparentemente há iguanas no Brasil (na Amazônia, Pantanal e Caatinga). Mas também me perguntei de onde vem a palavra. Vem do aruaque, ‘iwana’, e nos chegou pelo espanhol. Nova dúvida: se há iguanas mesmo no Brasil, porque não temos uma palavra de alguma língua jê ou tupi para essa criatura? Mistérios do vocabulário.

Uma última dúvida, leitor, será que os indígenas brasileiros já viram um iceberg? Imagino que não seja algo muito comum no nosso litoral.

Vendendo o próprio peixe

Não tenho talento para vendedor. Assumo. E vender o que fiz… aí a conversa fica ainda mais difícil.

Recentemente a escritora Aline Bei ficou nacionalmente conhecida por fazer propaganda de seus livros nas suas redes sociais, inclusive enviando mensagens para as pessoas anunciando a publicação. Seu livro, O Peso do Pássaro Morto, virou um best-seller e ela assinou um contrato com a Companhia das Letras. Claro, a qualidade do livro ajudou, mas como ela diz na reportagem, quem publica por editora pequena tem que fazer uma divulgação mais de porta em porta mesmo, já que não conta com a estrutura de divulgação e distribuição das grandes editoras

Me sinto como a Vanessa Guedes, meio sem jeito de pedir que as pessoas me leiam. “Tenho mais vergonha de compartilhar meus textos pelas redes sociais do que de ficar pelada em público, diz ela.

Eu também me sinto exposto. Embora não sejam meus sentimentos que estejam sendo oferecidos ali, para o escrutínio do público, temo um pouco que meus textos sejam lidos dessa forma (talvez porque eu leia um pouco desse jeito?). Além disso, vivo num meio em que muita gente escreve muito bem, tenho amigos que são referências nas suas áreas e às vezes me sinto o Obina querendo ser parceiro de ataque no time do Messi.

É um sentimento contraditório, porque ao mesmo tempo em que escrevo por escrever (escrevo em primeira instância para mim mesmo, escrevo o que eu gostaria de ler), também gostaria muito de que me lessem e compartilhassem suas impressões do livro e que ele alcance novos leitores. Entendo que mesmo a crítica negativa é boa, pois quer dizer que alguém se deu ao trabalho de ler o texto e ficou mexido o suficiente para escrever sobre ele. Eu ficaria lisonjeado se aparecesse uma resenha na Folha destruindo um livro meu.

Talvez por isso eu não goste de fazer autoficção. Já fiz, confesso timidamente. Mas tá escondido, o meu “romance de formação”.

Todo esse preâmbulo foi pra dizer que tenho dois livros publicados que estão em promoção por esses dias. Então, corram lá e aproveitem:

Como uma língua funciona (Mercado de Letras)

Verde, amarelo e vermelho (Kotter)

Um “car movie”

Vi no final de semana o filme Japonês “Drive my car”. Estou chamando de “car movie” porque em boa parte do filme o carro é o cenário para os diálogos ou mesmo para a exploração de grandes planos em que apenas vemos os personagens se deslocando por estradas. E venho aqui escrever sobre porque ele continua ressonando em mim. Esse é o poder da arte, não? A obra fica falando conosco mesmo depois que paramos de contemplá-la.

Kafuku é um diretor e ator que foi convidado para dirigir uma peça no festival de teatro de Hiroshima. Lá, descobre que terá uma motorista particular que irá conduzir seu carro. No princípio ele resiste, pois tem um método particular: gosta de ouvir o texto da peça que está ensaiando enquanto dirige. Nesse processo, as vidas de Kafuku e Misaki, a jovem motorista, vão se tocar e se aproximar naturalmente.

Kafuku perdeu há pouco tempo sua esposa, vítima de uma parada respiratória. Eles tinham um ritual. Durante o sexo, Oto gostava de contar histórias para o marido. Misaki, a motorista, também tem um luto recente: perdeu a mãe num deslizamento de terra que soterrou a casa em que viviam.

Há todo um entrelace de histórias no filme, de pessoas que lidam, trabalham com a palavra: o ator/diretor, os atores, a falecida Oto que era roteirista, o texto de Tchekov, “Tio Vânia”, sendo lido no carro, no ensaio da peça. E o que faz a motorista ali? Ela dirige calada, para que Kafuku escute o texto no carro, mas não terá ela também algo a contar? Não temos todos? Não é a palavra a ferramenta para lidarmos com nossos sentimentos?

Há uma série de detalhes. O jovem ator que teve um caso com Oto é escalado para interpretar Tio Vânia (que na peça de Tchekhov é um cinquentão, eu acho). Os atores passam dias a fio apenas lendo e lendo a peça e cada um lendo o texto na sua língua: japonês, mandarim, língua de sinais coreana. Tio Vânia é sobre o envelhecimento, sobre o desejo, mas seria também sobre a incomunicabilidade? Como “funciona” essa peça em que cada um fala uma língua? Na apresentação vemos um telão com legendas, mas há quem veja nisso que o que importa seria apenas a emoção veiculada, não o conteúdo (eu tenho cá minhas dúvidas). Os atores se sentem um pouco incomodados com o processo do diretor, de início, mas aos poucos vão aceitando melhor a sua condução. O jovem ator em certo momento perguntará ao diretor por que ele mesmo não interpreta Tio Vânia, já que tem idade adequada para o papel.

Há uma cena linda em que Misaki leva Kafuku num centro de reciclagem, mas é tudo muito limpo, com um ar industrial futurista (muito vidro e aço, praticamente sem cor), à beira-mar. Ali ela lhe conta a sua história.

Nota final: depois do filme resolvi reler o “Tio Vânia”. E também estou muito curioso para ler Murakami, o escritor japonês cujos contos inspiraram o roteiro do filme.

O trânsito das palavras

Eu estava lendo esse texto sobre alguns vocábulos do dialeto caipira que estão caindo em desuso no interior de São Paulo e percebi que eu conheço todas aquelas palavras. Sou nascido no oeste catarinense e vivi da pré-adolescência até os vinte e dois anos em União da Vitória, no sul do Paraná, que fica numa das rotas usadas por tropeiros.

Os tropeiros saíam do Rio Grande do Sul e iam para São Paulo levar gado e charque e de lá traziam vários itens, inclusive correspondências. As BRs 116 e 153 que ligam o Rio Grande do Sul a São Paulo e Paraná praticamente reproduzem esse caminho. Esse movimento durou até segunda década do século XX, com a ampliação e pleno funcionamento da rede ferroviária no sul do país.

União da Vitória tem uma pronúncia do erre um tanto puxada, um retroflexo. Também é bem fácil encontrar outras marcas do dialeto caipira na fala de moradores mais antigos com baixa escolaridade (‘nóis imo’, ‘nóis fumo’, ‘nóis fazimo’ etc.) – com a ressalva de que muitas características morfossintáticas do caipirês são encontradas amplamente na fala de indivíduos com pouca escolaridade no país todo.

Outro traço é o vocabulário. Das palavras que a pesquisa cita, conheço todas: bucho, lombo, goela, beiço, anca, munheca, viúva (no sentido de ‘terçol’); e suas derivadas: se esgoelar (“gritar muito alto”), desbeiçado (“destruído, mutilado”), desancar (“maltratar”), desmunhecar (“quebrar o pulso metaforicamente, ou seja, virar a mão como os homossexuais fazem”). Me senti um caipira. Pelo relato da pesquisa, entendi que a lista pesquisada envolve somente a lista citada no texto. Não há menção ao fato de que essas palavras são parte do vocabulário de boa parte do sul do país e suponho que essas palavras tenham viajado por essa região no lombo dos tropeiros.

Uma língua é uma lente para o mundo

Há várias estórias boas no livro de Ted Chiang (História da sua vida e outros contos, 2016, Intrínseca), mas a “História da sua vida” é novela muito original e bem narrada. O filme segue o mesmo enredo, intercalando presente e um suposto passado. Sou faísca atrasada mesmo e só agora estou lendo o livro – terminei ontem. Há uma hipótese sobre a linguagem muito interessante ali, embora não seja nova.

Não seria fantástico se cada língua nova que a gente aprendesse nos fornecesse um tipo de ferramenta cognitiva que nos permitisse ver coisas que a nossa língua não deixa porque não tem conceitos para expressá-los?

Não precisamos de alienígenas que nos tragam uma tecnologia de escrita para avançarmos cognitivamente. Imaginem o choque dos europeus quando viram que fazer matemática com os algarismos dos árabes era muito mais fácil. Pensem também na quantidade de vocábulos gregos e latinos que boa parte do globo usa para nomear conceitos filosóficos e científicos, doenças, remédios e assim vai. De certa forma, a cada momento em que aprendemos/assimilamos um vocábulo novo para nomear algum aspecto da realidade (material ou abstrato) aprendemos algo novo, há um ganho cognitivo.

* * *

– Esses dias revi ‘Tomates verdes fritos’. O povo fala muito mais de Thelma e Louise (também de 1991) – tem mais ação, é um road movie etc. – mas esse filme tem um elenco excepcional e também trata da luta de mulheres para lidar com homens escrotos, racismo, sem falar nas outras tristezas normais da vida (doença, morte etc.).

– O povo sempre reclama de algumas premiações do Oscar. Normal. Nem sempre o melhor é premiado. Não consegui ver muita coisa esse ano. Como sempre, os melhores filmes nos chegam sempre muito perto ou depois da cerimônia. A safra não foi lá aquelas coisas. Mesmo assim, um Almodóvar médio/bom sempre vale o nosso tempo. O Will Smith mereceu o prêmio. Ele está ótimo no filme, que é mais sobre a obstinação do pai de Serena e Vênus do que sobre elas. ‘Ataque dos cães’ também é ótimo e as indicações dos atores em várias categorias é sinal disso.

* * *

Maria Helena de Moura Neves fala sobre linguagem neutra

Fala muito rapidamente, já que a matéria é mais sobre um prêmio concedido a ela em homenagem à sua trajetória de linguista e professora.