Notas de leituras: Canto enforcado em vento

Rodrigo T. Gonçalves. Canto enforcado em vento. Curitiba: Kotter, 2020.

Nesse ano da peste, uma das poucas felicidades foi ler a produção dos amigos, como a do Caio, que comentei na semana passada. O livro de poemas do Rodrigo Gonçalves também foi uma dessas obras.

E aqui me lanço numa outra tentativa de entender conscientemente a sua poética, embora seja um esforço ingênuo e certamente não escaparei de dizer coisas óbvias. Tenho lido a obra poética de Wally Salomão (Toda poesia, Companhia das Letras) e me pego sem categorias para analisar sua poética, pois há muito não leio sobre teoria da poesia. [ O me segura que vou dar um troço é o quê? Poesia, diário, prosa poética, cadernos do cárcere?

De formas que aqui é um leitor de poesia escrevendo.

[Mas precisa teoria pra fruir poesia? Eu diria que não.]

O prefácio já traz uma chave para a leitura dos poemas. Lúcia Diniz fala em “poética da dissolução”. Embora eu deixe para ler os prefácios ou textos críticos depois de ler os livros, para não influenciar minha leitura, eu vi muitas coisas que ela viu. [O que me deu um alívio por não estar lendo “errado”.]

Não sei se eu usaria essa palavra para definir ou classificar ou achar um conjunto ou uma lógica na poesia do Rodrigo, embora ele mesmo use essa palavra na pág. 65: “e a dissolução leva tudo de volta/lava tudo pro novo ser”. De qualquer forma, ela também traz conceitos que giram por esse mesmo campo semântico: destruir, desfazer, descriação. Pra mim, é um livro sobre mudanças, embora esteja no bojo da “destruição” a ideia de mudanças de estados. Não dá pra separar uma coisa da outra.

O segundo poema da primeira parte começa com a palavra krisis, e traz versos como: “enquanto o espaço interno oprime-se em constante/esforço em se conter/em força sem substância, cor ou peso ou substância que se esforça contra/as bordas orlas/decisão”.

Vejo, em vários momentos dessa primeira parte, um eu-lírico lutando, mudando e se descobrindo, daí que outra palavra chave da poética é o “ser”: “se não tivessem inventado o ser/mas é”, diz ele na pág. 37. Outro indício dessa preocupação é o poema duplo, que na sua segunda parte traz versos como: “se esse espectro/ao não caber/pouco/- pouco/some/se sou eu”. Ou na parte VI: “O que te importa o que somos se você/é nada além de mim”.

O primeiro poema da segunda parte traz a palavra novo quatro vezes. E talvez a divisão em dois do livro busque capturar esses dois momentos: a destruição e a novidade. Num dos poemas dessa parte lemos, na pág. 103: “propõem-se fins/e enquanto esboço/fins eu viro chuva”. (de novo: algo acaba para que o novo surja). Desnecessário falar do simbolismo da chuva, da água ou mesmo do vento no título e dessa imagem que me custa capturar: o que nos indica essa aparente contradição, ou essa forca intangível? E no poema dessa mesma página vemos o ser a interrogar-se: “e o que resta de nós?/música/e um punhado de histórias?”

Claro que um autor que trabalha com literatura clássica não deixa de transparecer isso eventualmente nos seus versos. O livro mesmo é dedicado à Odisseia, e aqui e ali lemos nomes ligados ao panteão dos mitos e deuses gregos, bem como à filosofia ou à poesia latina: Apolo, Andrômaca, Glauce, uma epígrafe de Platão, um verso de Virgílio…

Mas há também menções a artistas contemporâneos, como às bandas Arcade Fire e Silver Jews. O que é mais um indício dessa articulação entre o velho e o novo. Embora, no plano da arte, não vejo destruição, mas retroalimentação.

A arte vive se refazendo, embora o verso livre tenha implodido a escanção do verso tradicional para surgir como possibilidade de expressão da poesia; embora menos musical, na sua exploração dos ritmos, mas música e poesia, mesmo assim. (Basta ver quantos poemas em verso livre de Wally Salomão foram musicados maravilhosamente ou quantas canções de Caetano exploram recursos do verso livre e da poesia concreta).

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Assinei a newsletter da Aline Valek. Gostei bastante. Tem várias dicas legais, embora um pouco extensa. Comprei o último livro dela, Cidades afundam em dias normais. Espero conseguir chegar nele logo.

Aliás, acho bem legal esse formato. Já assino a do Daniel Galera, que infelizmente faz tempo que não manda nada.

Outro blogue que conheci recentemente é o da Camila Suzuki. Super recomendo.

Impressões de leitura: O romance luminoso

Mario Levrero. O romance luminoso. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Comecei a ler esse romance por indicação do Daniel Galera na sua newsletter, dentesguardados [6] – para ele um dos melhores livros da última década. Como consegui uma cópia digital, não atinei para a dimensão física da obras: 648 páginas. Só me dei conta desse detalhe quando olhei o sumário e percebi que ele estava separado por meses e dias (quase os 365!) de todo um ano. E que além desse diário ainda tinha uma segunda parte, o romance em si. Pensei cá comigo: cara, que saco! 500 páginas desse maluco reclamando que tem que escrever um livro mas não escreve, que está com uma dor aqui, que sonhou com não sei o que lá, que ficou a madrugada baixando fotos de mulher pelada na internet, que ficou lutando com alguma esquisitice da programação do Word… que livro chato!

Esse era o Luisandro ali por volta das primeiras 30 páginas…

Mas por algum motivo eu não conseguia largar o livro. Ele me prendeu. Talvez pela qualidade da prosa. Uma prosa simples, direta, sem floreios ou grandes divagações sobre a vida. E se tem um negócio gostoso de ler é uma prosa assim.

(Não que eu não goste de divagações sobre a vida. Adoro Henry Miller. E tá aí um escritor que do nada começa a viajar e passa 20 páginas descrevendo uma súbita iluminação que teve enquanto tomava a décima dose de uísque no boteco com um maluco que conheceu há duas horas).

O tal do “Romance Luminoso” que o autor quer escrever aparece como vontade, como um desejo, uma obrigação que paira sobre ele. Mas Levrero, ou o seu personagem-autor-narrador não é um Bartleby que diz “prefiro não fazer”. Ele me parece querer fazer sim, mas só que está deixando para depois. Antes, precisa comprar uma poltrona nova, fazer ioga, configurar seu computador adequadamente, procurar pelos histórias de detetive para completar sua coleção, passear com a namorada e com as amigas, atender os alunos da sua oficina de escrita criativa… viver a sua vida, em suma.

O porém é que ele ganhou uma bolsa para concluir um romance que tinha iniciado anos antes, mas em vários momentos se pergunta se será capaz de concluir o projeto. Ele não me soa arrependido de ter pedido/ganhado a bolsa, pois poderia simplesmente devolvê-la, dizendo “não quero mais, não dou conta, não vou conseguir entregar o que prometi”. Não. O “Romance Luminoso” está como meta. E talvez seja isso um pouco que nos prenda na leitura do diário. A gente quer saber que horas esse cara vai começar a escrever o tal do romance luminoso, e o que há de “luminoso” nessa narrativa.

Nesse aspecto Alejandro Zambra, cita Clarice Lispector para interpretar o romance de Levrero: “digo o que tenho que dizer sem fazer literatura”, disse ela no conto Onde estivestes de noite. E é essencialmente isso que acontece no “romance”. Temos nesse livro o diário de um escritor de 60 anos que escreve sobre seus dilemas cotidianos: sobre o que está lendo, sobre o tempo, sobre o comportamento dos pombos no telhado do prédio do outro lado da rua, sobre a interpretação dos seus sonhos… ou nas palavras de Zambra: “para fazer literatura de verdade é necessário recorrer, como ele [Levrero] disse, à literatura fraudulenta. Romance sem romance; literatura sem literatura.”

O resultado não poderia ser mais divertido e esteticamente prazeroso. Não dá para analisar uma obra dessas com as categorias tradicionais (personagens, narrador, trama etc.). E como, mesmo assim, é um livro bom? Não sei. Só sei que é.

Quem tem medo do português popular na literatura?

 (Ou: qual é o problema de começar uma frase com pronome oblíquo numa narrativa em primeira pessoa que usa um registro coloquial?)
Especialmente pra vocês que gostam de objetos, variação, revisão etc. Duas edições de “Até o dia em que o cão morreu”, do Daniel Galera.
“Não entendi no início. Me levantei e fui à sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Não entendi no início. Levantei e fui até a sala”. (Livros do Mal, 2003, p. 13)
“Dei um tapa na orelha dele, o levantei pelo couro, arrastei até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Livros do Mal, 2003, p. 17)
“Dei um tapa na orelha dele, levantei-o pelo couro, arrastei-o até a sala e meti seu focinho no mijo do cobertor, esfregando bem”. (Companhia das Letras, 2007, p. 13)

Cordilheira (Daniel Galera)

Eu acho que tenho um problema com sinopses, porque elas me contam do que trata o livro, mas sempre parecem me enganar, pois vou ler o livro e não encontro o que a sinopse me diz. Como nessa de Cordilheira, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2008): “Recém-saída de um relacionamento amoroso e ainda sob impacto do suicídio de uma amiga, uma escritora resolve aproveitar o lançamento da tradução argentina de seu romance, considerado pelo público e pela crítica uma das melhores surpresas da nova literatura brasileira, para passar uma temporada em Buenos Aires.” (do site da Companhia das Letras). “Impacto” lendo o romance não senti impacto algum. Na verdade, Anita, a personagem principal, não parece se impactar com muita coisa.

Depois de ter lido o ensaio sobre a personagem de ficção de Autran Dourado (no Poética do Romance), não leio mais querendo que os personagens sejam “reais” ou “verossímeis”, me basta que sejam coerentes com aquele universo criado pelo autor. Anita me parece um personagem assim, embora por vezes decidida, como na obstinação de se tornar mãe, ela se deixa levar por algumas situações, como quando transa pela primeira vez com Holden. E é esse o fio condutor da narrativa, o desejo de Anita de ser tornar mãe, algo que parece insensato aos olhos das amigas. Passar uma temporada em Buenos Aires me pareceu uma espécie de escape de tudo que ela vinha vivendo, do relacionamento chato, das amigas intrometidas mas tão confusas quanto ela.

Em Buenos Aires Anita conhece Holden. Ela aos poucos vai descobrindo que todos os amigos de Holden possuem personalidades construídas a partir de livros que eles mesmos escreveram ou que outras pessoas escreveram. Cada um tem o seu livro e precisa cumprir o destino do seu personagem, seja cometer assassinato ou suicídio. E essa talvez seja a discussão mais interessante dentro do livro, apesar de todo esse papo de “transformação” que a orelha do livro nos vende. Não vejo Anita crescendo em nenhum momento, vejo apenas uma mulher obstinada em engravidar, só; que renega o próprio livro e não parece muito preocupada com o que vai fazer depois que conseguir engravidar e o filho nascer. Ela é uma mulher do presente. Em várias cenas Holden e os amigos discutem essa relação entre a vida e a literatura. Anita, como autora, pensa que autor e personagens criados não possuem relação alguma. Já Holden e seus amigos acreditam que a literatura só faz sentido quando é vivida. E eles vivem em função disso, em função dos personagens que criaram para si mesmos ou que escolheram. Claro, podemos também nos perguntar até que ponto Anita é a Magnólia do seu livro, ou se de alguma forma inconsciente ela vai se transformando na protagonista do livro que foi para Buenos Aires lançar, ou pelo menos adquirindo os seus dramas e conflitos, que é isso que parece interessar a Holden, a personagem criada por Anita, não a mulher em si. O próprio nome ‘Holden’ aí ganha dimensões interessantes, icônicas, pois é inevitável a ligação com o herói do Apanhador no Campo de Centeio, já que Holden briga por bobagens e é descrito como ‘infantil’ algumas vezes (embora o Galera diga aqui que não há relação).

Por outro lado, tem a questão do espaço, que é fundamental também para o romance fazer sentido. Que outro lugar senão Buenos Aires para abrigar um culto secreto de leitores que levam seus personagens às últimas consequências? Há uma cena em que Anita conversa com o grupo sobre autores argentinos, ela cita os clássicos Borges, Cortázar, Casares, Piglia, e para alguém do grupo eles são mentirosos, escondem a realidade. Os bons autores seriam de fato os medianos, aqueles que, justamente por serem ruins, não conseguem disfarçar a realidade. Somos levados por cafés, ruas, parques, praças, lugares em que todo mundo parece estar lendo o tempo todo. Parece que apenas algumas poucas ações íntimas ocorrem na casa de Holden. Grande parte da ação acontece nas ruas e nos cafés.

Após o capítulo semifinal, em que Holden e os amigos vão até a Terra do Fogo para que ele possa levar a cabo seu destino de personagem, vemos Anita de volta ao Brasil e com o filho perdido. Esse capítulo final me pareceu narrado pela primeira pessoa de Danilo, o ex-namorado, que abriga Anita quando ela volta. E o fecho é bonito pois ele de repente se pega pensando nela justamente da forma que ela desejava, como aquela jovem, cuja história ela tinha lido, que admirava a cordilheira dos Andes da janela de sua casa, e essa parecia ser a sua principal característica, pelos olhos do marido e narrador da história. É a literatura cumprindo seu destino, virar realidade, mas não sabemos se Anita sabe disso.