Como a gente vive nas fotos dos outros

Esses dias fui mexer numas fotos antigas, para ver se achava uma foto minha com a minha mãe. Queria postar alguma no dia das mães. No sábado passado ela faria 64 anos. Encontrei algumas fotos da minha Primeira Comunhão e uma de quando eu deveria ter uns 15 anos.

Aí percebi que eu praticamente não tenho fotos da minha adolescência. A gente não tem muitas fotos dessa época, na verdade. Algumas do Natal. Minha Crisma. A Primeira Comunhão do meu irmão mais novo. O casamento do meu irmão mais velhos. Não tenho nenhuma foto da minha formatura do Colégio no Ensino Médio. 21 anos depois, me lembro vagamente daquelas pessoas, dos professores, do meu professor de matemática admirado por eu ter me inscrito para Letras no vestibular. Meu melhor amigo daquela época, continua sendo meu melhor amigo. Hoje é meu compadre e ainda nos falamos com frequência, apesar da distância. Ele tem uma foto nossa do terceiro ano, disse. Duma apresentação do dia do estudante. Uma foto.

Por essa época, entre os 14, 15, fiz parte de um grupo de jovens. Tinha festas, encontros para rezar, cantar, ler coisas da igreja e fazer outras coisas de que não me lembro. Lembro das festas, piqueniques, passeios. Das meninas. Acho que tem algumas fotos de uma festa junina, em algum lugar. Minha primeira namorada eu conheci ali.

Tenho poucas fotos da faculdade também. A gente fazia uma festa por semestre. Alguém deve ter tirado fotos da época, eu acho. Espero né. Eu tenho poucas. Uma meia dúzia eu acho. Se isso.

Alguém deve ter fotos comigo dessa época. Lembro de comprar filmes até 2002. E de emprestar a câmera de um amigo ou vizinho quando precisava. Depois disso as câmeras digitais surgiram com tudo e dez anos depois a gente passou a tirar fotos apenas com o celular.

Fico imaginando a pessoa com as fotos, mostrando aos filhos como era na adolescência, na faculdade. Eu apareço em algumas. De repente no fundo. Ou no meio de uma foto do grupo. Quem é esse? A pessoa vai se lembrar de mim? Quem eu era? Como a pessoa vai me definir, com quais palavras?

E que diferença isso faz também? Talvez por estar chegando aos 40 eu esteja ficando saudosista, embora eu não tenha muita saudade da época, na verdade. Tá, um pouco a gente sempre tem, apesar dos perrengues e das cagadas. Porque teve momentos legais também.

Mas é que a foto traz um coisa que a memória sozinha não traz. Ela traz cor, ela traz materialidade. Ela diz “eu estive lá, eu vivi, testemunhei. Eu era assim.” Mesmo que a pessoa que eu seja hoje tenha muito pouco daquela que um dia eu fui. Não tenho orgulho de quem eu era.

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Aproveitando o confinamento, resolvi tirar da gaveta alguns textos. É uma coletânea irregular. Tem contos com várias pegadas de diversos momentos. Mas em comum entre eles está o fato de não serem realistas. Tem ficção científica, mistério, alguns experimentais. Por isso chamei de “exercícios de imaginação”.

Dá pra ler de graça no Kindle Unlimited ou se quiser comprar tá custando só R$3,99.

 

A gramática no ensino de Língua Portuguesa

Desde o final dos anos 1970, uma série de artigos e livros produzidos por linguistas e professores universitários colocou em discussão o lugar do ensino de gramática nas escolas. Particularmente, se questionou o lugar que o ensino da metalinguagem e da análise sintática tradicional possuíam (entre outros problemas). Esses tópicos eram o conteúdo da aula de língua portuguesa, ao lado das atividades de leitura, interpretação e produção textual (esta balizada pelo ensino da norma padrão gramatical veiculada pelas gramáticas tradicionais, o famoso certo/errado). Creio que duas obras representam e/ou sintetizam bem esse ideário da academia: Por que (não) ensinar gramática na escola (1996), de Sírio Possenti, e A sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical (1997), de Luiz Percival Leme Brito.

Nasci em 1981, e a minha vida escolar toda se deu nesse tempo em que, mesmo que timidamente, as ideias da academia chegavam aos professores, seja via formação inicial, seja através dos cursos de atualização. Foi inevitável, então, que eu tivesse contato com dois tipos de professores. Os tradicionais, que só ensinavam gramática e escassamente forneciam atividades de leitura e produção textual; e os inovadores, que só forneciam atividades de leitura e produção textual, não sabendo muito bem o que fazer com a gramática.

Na quinta-série, me lembro claramente de termos aula de leitura nas sextas-feiras. A professora vinha para a sala com uma caixa de livros. Cada aluno um escolhia um, ia para sua carteira e passava a aula lendo o livro. Caso não acabasse durante a aula, você tinha que esperar até a próxima sexta-feira para poder dar continuidade na leitura. Um porre! Convenhamos. Nas outras quatro aulas da semana a gente só fazia uma coisa: análise sintática e morfológica. É só disso que me lembro. Infinitas listas de orações. Para cada uma delas a gente tinha que classificar as palavras (dizer se eram substantivos, verbos, adjetivos, preposições etc.) e depois fazer a análise sintática (achar sujeitos, predicados, objetos, adjuntos adnominais, adverbiais, complementos nominais etc.). É bem provável que as aulas não fossem só isso, mas é só isso de que me lembro. E foi a única vez na minha vida escolar que eu peguei recuperação: me lasquei na análise sintática. Será que a minha professora na Escola Básica Alberico Azevedo, lá em São Miguel do Oeste (uma cidadezinha do extremo oeste catarinense, a terra do sabonete Matacura, e que recebeu a caravana do Lula esse ano com pedras), podia imaginar que aquele magrelinho ali viria a ser professor de português? Imagino que não. Eu também não sonhava com isso. Sonhava em jogar bola.

Na sexta série lembro de que a escola abriu uma pequena biblioteca. Agora os livros da professora ficavam numa sala e a gente poderia ir lá escolher e ficar com eles em casa por uma semana. Me esbaldei. Lia como um condenado. Na sétima série minha família se mudou para União da Vitória (PR) e eu fui estudar no Colégio Estadual Túlio de França. A biblioteca era enorme – tá, a parte dos livros que de fato a gente podia escolher dava umas três prateleiras, o que pra mim era um bocado, já que lá no Alberico só tinha uma prateleira. Acho que ainda hoje é a melhor biblioteca escolar da cidade. O colégio tinha cursos técnicos de contabilidade e magistério, e é um dos colégios mais antigos do município. Não lembro de ter tido aulas de gramática. Sei que li muito. Nesse ano, a professora fez um passaporte do leitor. Anotávamos num caderninho as leituras que fazíamos: autor, nome do livro, data de início e fim da leitura, breve resumo do enredo. Eu lia uns 3 ou 4 livros por mês, às vezes mais. Não me lembro de ter aulas de gramática. A mesma coisa aconteceu na oitava série. Se tive aulas de gramática, não me lembro. Lembro de ter escrito muito. Me recordo também que essas professoras eram jovens. Deveriam ser recém-formadas. Eram anos anos 1994-1995. Suponho que já por aqueles anos as ideias do pessoal da Unicamp já tinham chegado na Fafiuv.

O ensino médio foi caótico. No primeiro ano a professora era mais tradicional e usava a gramática do Cegalla, a Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. Só lembro de ter estudado a formação do subjuntivo, coisa que não ficou por muito tempo na minha cabeça; e de ter lido tudo que eu consegui do Paulo Coelho (a escola tinha os livros e muitos tinham filas de espera bem longas). E só. No segundo ano lembro de ter estudado o romantismo, mas não lembro de termos lido poesia ou trechos de romances. Devo ter feito algum trabalho sobre Machado de Assis. Li pouco nesse ano.

No terceiro ano mudei de escola. O Colégio Lauro Müller Soares tinha uma biblioteca bem modesta, que vivia fechada. Não era um ambiente convidativo como a do Túlio de França, que possuía jornais, revistas e mesas para estudo e para jogar xadrez. Por conta da proximidade do vestibular, comecei a ler alguns dos clássicos românticos e realistas. Não me lembro de ter chegado às minhas mãos nada contemporâneo. Só ouvi falar de Drummond, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Graciliano Ramos, de Mário e Oswald de Andrade ou Clarice Lispector em apostilas preparatórias para o vestibular. Talvez os professores tenham falado em aula, não me recordo. Sei que escrevi bastante.

Foi isso que me levou a escolher Letras no vestibular, a leitura e a escrita. E o inglês. Eu queria aprender inglês. Continuei a ler vorazmente durante a graduação. Comecei a cometer versos e a colocar no papel o que me dava na telha. No segundo ano da graduação me apaixonei por linguística e cá estou eu.

Talvez seja a minha memória. Quem sabe alguns dos meus professores até tentaram fazer uma articulação mais sistemática entre a reflexão sobre o texto e a reflexão gramatical, tentando nos fazer pensar a língua a partir de textos cotidianos e sobre a nossa própria escrita. A professora que tive no terceiro ano fazia isso, mesmo timidamente, corrigindo as minhas redações, explicando os erros, sugerindo mudanças e pedindo para reescrever quantas vezes fosse necessário. Mas o fato de eu ter tido professores que oscilavam entre a gramática pura e apenas leitura, interpretação e produção de texto, revela esse “não-lugar” da gramática no currículo escolar. Mesmo os documentos oficiais, os parâmetros curriculares, não são claros sobre isso. É preciso ensinar classificação de palavras? Sim. É preciso ensinar análise sintática? Sim. O que não podia continuar era se ensinando isso ou se ensinar da forma tradicional, em detrimento das atividades de leitura e produção escrita. Essas coisas precisam estar conjugadas. E é esse o desafio pedagógico.

Disciplina

Como a maioria das crianças nesse país eu queria ser jogador de futebol. Mas não que eu tivesse algum talento pro troço. Nunca tive. Era sempre um dos últimos a ser escolhido pra um dos times na aula de educação física. Então, por que eu sonhava que podia um dia entrar num Maracanã lotado e ouvir as pessoas gritando o meu nome? Até hoje eu não sei o que se passava na cabeça do guri de 10 anos que eu era quando tive essa ideia.

Daí que a melhor iniciativa que eu tive foi aos 11 anos entrar numa recém inaugurada ‘sala com livros’ (chamar de biblioteca aquela sala com meia dúzia de prateleiras de livros seria um exagero) da Escola Básica Alberico Azevedo pra pegar um livro emprestado. Também lembro de na 6a. série ter feito algumas pesquisas sobre peixes e anfíbios, o que me levou a uma peregrinação pelas melhores bibliotecas da cidade, duas, a do Colégio São Miguel e a biblioteca municipal de São Miguel do Oeste (elas tinham enciclopédias, a ‘biblioteca’ da minha escola não). Não sei que influência isso teve em mim. Só sei que eu sou uma pessoa que gosta de bibliotecas e que é curiosa. (Vai ver naquele dia de aula vaga, ao invés de ficar vendo os colegas jogar bola, porque ninguém tinha me escolhido pro time, eu tenha resolvido ir na biblioteca da escola ver o que tinha lá pra fazer).

Vai ver foi por isso também que virei linguista. Aliei duas qualidades que eu tenho: a curiosidade e o gosto pela leitura (talvez dê pra colocar ainda nesse balaio o meu ceticismo). Não sei se são qualidades “naturais”, minha personalidade, ou se foram características que eu adquiri ao longo da vida. Nenhum dos meus irmãos é assim, embora tenhamos tido relativamente a mesma criação e estudado nas mesmas escolas. (Será que eu me tornaria um acadêmico em qualquer área que eu tivesse escolhido pra estudar?).

Apesar disso eu acho que tenho um defeito que me atazana: tenho dificuldade pra terminar as coisas, pra perseverar. É como se algumas coisas me dessem um cansaço e de repente o negócio me enche o saco. Quem vê meu currículo acadêmico dirá que eu estou mentindo. Como assim, se você fez dois TCCs, uma monografia de especialização, um mestrado, um doutorado, escreveu artigos, capítulos de livros, relatórios e projetos de pesquisa? É que em algum momento eu desisti daqueles textos. Tenho certeza de que eles seriam bem melhores se eu tivesse me dedicado um tantinho mais a eles. E é esse “tantinho” que separa a excelência do normal (sendo bem, mas bem gentil comigo mesmo). Vai ver ninguém me incentivou a buscar a excelência.

Aí eu me pergunto. Por que eu não consegui desenvolver uma disciplina mais rígida de estudos, supondo que esse seja o remédio que teria possibilitado eu me dedicar com mais afinco aos meus textos? A excelência está nos detalhes. A organização do pensamento que a escrita proporciona pode produzir coisas maravilhosas. Se minha memória não falha, as melhores ideias que tive surgiram após longos momentos de trato com o texto. Claro que algumas surgiram num insight antes de dormir, outras numa caminhada ao final da tarde, mas a maioria (e olha que não dá uma mão, eu acho, se é que eu tive alguma boa ideia nessa minha curta carreira de linguista e escritor) foram em momentos em que eu estava tentando colocar no papel o que estava na minha cabeça (e nas anotações em cadernos e bloquinhos que carrego comigo desde os 17 anos). Ou seja, as melhores ideias me surgiram enquanto eu estava escrevendo. Logo, trabalhar no texto não apenas faz o texto surgir, mas também possibilita que a gente descubra e entenda coisas que não entenderia se apenas ficasse sentado na frente do computador em estado de contemplação esperando os insights surgirem como se ditados por um espírito superior.

Hoje eu acho que estou mais disciplinado do que eu era há dez anos. Se eu tivesse aos 20 a disciplina que tenho hoje para escrever tenho certeza que teria escrito coisas mais interessantes e terminado algum livro de ficção antes dos 30 (eu não sabia como terminar as histórias, muitas delas, por isso as abandonava; vai ver eu achava que tinha “talento”, que não precisava estudar como se faz literatura). Na escrita acadêmica é mais fácil chegar em algum lugar, mesmo que esse lugar seja provisório.

E de novo o questionamento: por que eu sou assim? Por que o prazer do estudo, da leitura, a curiosidade, características que me fizeram ser relativamente bem sucedido no que faço, não contribuíram para que eu fosse mais disciplinado para escrever? Veja, o meu ponto não é a escrita primeira, o jorro, a necessidade de se expressar… Isso nunca me faltou (graças às musas!). Nem pra fazer linguística, nem pra escrever ficção. Nunca me faltou assunto (o que é um problema também, porque me disperso).

Vai ver alguém me disse que eu tinha “talento”, e por algum traço de malandragem do meu caráter (como o Manoel de Barros, também tenho cacoete pra vadio), eu achei que o talento fosse o suficiente. Bastava ele, e eu chegaria em algum lugar. Voltando à metáfora do futebol, provavelmente o Romário é um “natural”, assim como Clarice Lispector era (olha a idade que ela tinha quando escreveu Perto do coração selvagem!, que na minha modesta opinião é um livro muito bom). Eles não precisavam “treinar”, pra eles bastava entrar em campo. Clarice com certeza era alguém que podia dizer de boca cheia “toca pra mim, que eu resolvo”, e até os 45min. do segundo tempo ela resolveria o jogo. Claro, com isso não quero dizer que ela não trabalhasse seus textos com a necessária dedicação que o fazer literário exige. (Olhando, quantitativamente, a produção dela, a gente pode concluir com certeza que ela treinava pra burro). Pondo isso de outra forma: um nó cego pode reescrever um conto seu umas vinte vezes que jamais vai estar no nível de uma Clarice Lispector. Ou, um Leandro Damião nunca será um Romário, mesmo que treine 8 horas por dia, 7 dias por semana.

Talvez um Faraco, um Ilari, sejam capazes de escrever de primeira versão com a clareza e a fluidez que só eles têm (o que eu duvido muito). Mas a maioria de nós, eu inclusive, precisamos domar as nossas ideias, dominá-las como uma bola lançada pelo zagueiro, que a gente sabe que provavelmente será difícil matar no peito do pé, com a elegância que o Neymar e o Messi tem… que provavelmente mataremos na canela, que ela vai espanar e que teremos que sair correndo de-atrás antes que ela se perca.

Porque, no final das contas, a escrita acadêmica, profissional ou literária é uma luta solitária. Talvez “luta” não seja a melhor expressão (desculpa aí, Drummond). Talvez a escrita seja um jogo de um cara só, em que o adversário não é a televisão, o rádio, a internet, os filhos (ou qualquer outra distração), é a tua vontade de levantar dali, o teu próprio julgamento: está bom porque eu acho que está bom, ou está bom porque eu cansei de trabalhar nisso? Poderia ficar melhor? (Alguns escritores falam que desistem do texto quando percebem que nada do que fizerem poderá melhorar o texto). Hemingway dizia que todo escritor precisa ter uma espécie de detector de bobagem. Acho que eu não fui capaz de desenvolver um. Quem sabe um dia eu consiga. Afinal, também é preciso achar um meio termo, algum tipo de parâmetro entre o texto que te deixa feliz (legal, consegui escrever) e o que te decepciona (puta merda, como eu escrevi esse bostaço!?). Vai ver eu me satisfaça com pouco, e esse seja o problema também.

Alguns escritores e gurus da escrita criativa sugerem que a gente deixe o texto descansar uns dias. Outros falam da importância de um leitor particular, alguém que posse dar pitacos pra além de comentários vagos como gostei, ou tá muito bom. Já achei um leitor pros meus textos acadêmicos, me falta um, ou dois, pra minha literatura.

Armado de um detector de bobagem, mais a disciplina necessária para escrever, quem sabe um dia eu consiga escrever alguma coisa que preste. Felizmente, diferentemente do futebol, pra escrever não precisa de preparo físico. O Luís A. Fischer usa o conto do Kafka, Um artista da Fome, como uma metáfora pra isso que eu quero dizer: escrever como aquele cara jejuava.

“Talvez o texto ideal, no sentido dessa pequena filosofia, seja como o jejum do personagem do conto “Um artista da fome”, de Franz Kafka: escrever como aquele cara precisava jejuar, com aquela gana, se possível sem jamais parar (mas ao mesmo tempo sabendo que há um limite para o jejum, a morte). Jejuar, escrever, não para agradar, mas para atingir o ponto máximo de sua verdade pessoal, mesmo que ao custo da vida, isso é um ideal que vale a pena” (Fischer, ler e escrever. In: Filosofia mínima. Arquipélago, 2011).

Só que pra atingir aquele nível de excelência no jejum é preciso mais que o impulso, mais que vontade. Vai ver seja preciso um algo mais (a gana?) que poucos de nós temos. E todo dia eu me pergunto isso: se eu me dedicasse um tantinho mais, seria um linguista melhor? Poderia ser um escritor melhor? Não sei. Só sei que o que me move é a crença de que posso melhorar (mesmo que eu não venha a ser um Romário ou um Suarez).

* * *

Por mais que eu tenha categorizado esse post como ‘crônica’ no fundo tá com cara de ensaio montagueano. Não me preocupei muito com estrutura, fui mais pro depoimento pessoal mesmo, usando um registro coloquial.

Falando de língua nos tempos do Youtube

Me impressiona que depois de tudo que a gente aprendeu sobre o texto/discurso e o funcionamento da língua na sociedade ainda surgem canais que utilizam as novas tecnologias de relação pessoal ou entretenimento (Youtube, Facebook, Twitter, Instagram) para falar de língua usando a caduca forma da gramática tradicional: a unidade de análise é sempre a palavra, a explicação auto contida (é assim porque é assim), e os fenômenos não ultrapassam os limites do certo/errado e aspectos tradicionais: ortografia, pontuação, regência, concordância, colocação de pronomes etc.

Além disso, por que ainda se fala dessas coisas? Por que alguém que passou 12, 13 anos na escola ainda precisa que alguém explique para ele a diferença entre mais/mas? Nessa altura da vida eu acho que um estudante já devia estar cansado de ouvir falar disso. Ontem, no Fantástico, vários professores falaram sobre a redação do ENEM. As dicas eram as tradicionais. Os critérios de avaliação mudaram, mas a cabeça do professor não. As dicas se resumiam em: cuidado com a gramática (entendida como aquela lista do final do primeiro parágrafo).

Supondo que as pessoas que se dedicam a esse trabalho são bem intencionadas, aprenderam na universidade que a língua vai além da palavra e da oração, que precisamos superar o velho ensino normativista com outras estratégias de ensino de gramática, que os usos linguísticos não podem ser avaliados pela régua do certo/errado etc. (perdoem essa subordinada gigantesca), tenho duas teorias pra explicar esse fenômeno: i) é o que dá pra fazer nesses recursos; b) é o mais fácil.

Se quero dar dicas para as pessoas escreverem melhor e divulgar isso através das redes sociais, posso gravar um vídeo curto (vídeos longos são chatos e acabam virando aulas), ou produzir um meme (uma imagem com texto). O que é mais prático de discutir numa foto para colocar no Instagram, a diferença entre os porquês ou a estrutura da relativa introduzida por preposição? Falar da diferença entre mas/mais ou de problemas de paralelismo semântico/sintático?

Falar de problemas textuais demanda tempo e espaço. Eu diria que é impossível mesmo falar disso numa imagem ou num vídeo de 30seg.

É mais fácil falar da palavra, embora eu creia que é uma facilidade enganadora. Explicar que mas é substituível por porém, e é conjunção adversativa, enquanto o mais é substituível por menos e é advérbio de comparação é uma explicação rápida e adequada. Mas seria efetiva? Isto é, depois de ouvir essa explicação o sujeito que a aprendeu (supondo que tenha aprendido) vai saber utilizá-la para avaliar a sua própria escrita? Eu acho que não, se ao longo da vida escolar o indivíduo não entendeu a escrita como um processo de organização de ideias, que precisa passar por vários estágios de formulação, reformulação e reescrita. Entendo que no vestibular ou num concurso público ele vai ter tempo para fazer apenas uma versão, reler, melhorar o que der pra melhorar nesse curto espaço de tempo, e passar a limpo a versão final.

Se ele foi apresentado a estratégias de autocorreção, de reescrita, de reformulação, de leitura do próprio texto, de estratégias argumentativas, de organização do parágrafo e do texto, e assim por diante, esse processo vai ser simples e indolor. Escrever, para esse estudante, não é preencher as 20 linhas o mais rápido possível para se livrar logo da tarefa, cuidando para não confundir o mas/mais ou errar a grafia do porquê.

Esse tipo de pedagogia da escrita, de culto ao “não erre mais”, “evite isso ou aquilo”, não vê o uso da língua do ponto de vista do seu papel interacional. O uso da língua escrita é só uma tarefa burocrática que o aluno precisa cumprir para chegar em algum lugar: na próxima série, na universidade, no emprego público etc. Não escrevo porque tenho algo a dizer, escrevo para me livrar da tarefa. Assim, a visão que se cria da escrita fica confinada à higienização do texto. Escrever bem é colocar pontos, vírgulas e acentos no lugar, não confundir o por que com o porque ou assento com acento etc. Não é “de varde” que estudar português  é um saco mesmo.

Um exemplo de dicas que supõe que a redação é encher linguiça: https://www.youtube.com/watch?v=rdf2AZ2Ss2c

Um exemplo, do mesmo canal, que dá dicas boas, embora as textuais de fato sejam poucas (como o uso dos textos motivadores; evitar generalizações, evitar clichês e ditados populares etc.): https://www.youtube.com/watch?v=Md5ymGUwZ2s

Malditos professores de humanas

Não sei de onde se tira essa visão que se tem dos cursos de humanas como centros doutrinadores de esquerda, e como consequência, da formação de professores que irão repetir a lenga-lenga de que o capital é a raiz de todos os males do globo. É o discurso pronto que repete o autor dessa matéria publicada da Folha. Segundo ele, a mesmice nas redações do ENEM é fruto dessa práxis que fornece aos alunos modelos prontos de pensamento, ou visão de mundo.

Estudos sobre redação no vestibular do início dos anos 80 já apontavam isso (como o de Alcir Pécora, por exemplo, o clássico “Problemas de redação na escola”). Na maioria dos textos analisados pelo autor (o corpus era constituído por redações do vestibular da Unicamp, e imagino que pobre sequer cogitava prestar essa seleção naqueles anos) os textos abusavam de clichês e buscavam dar uma lição de moral no interlocutor, muito mais do que defenderem um ponto específico do tema de redação.

Haquira Osakabe, em um texto chamado “Considerações sobre o acesso ao mundo da escrita”, fala justamente do papel ideológico que o acesso à escrita coloca para as classes menos favorecidas. Ler e escrever, historicamente, sempre foi um privilégio das classes mais altas. Portanto, alfabetizar os pobres surge como uma necessidade de tornar o proletariado mais produtivo ao invés de fornecer a essa classe condições para ascender socialmente (mas é esse o papo, não?), ou ter acesso a um universo diferente daquele que apenas a oralidade proporciona (é isso que dizemos a eles, os alunos, também). Nesse sentido, o papel da escola, ao monitorar e fornecer as leituras para as crianças e jovens é justamente ‘doutrinar’ o indivíduo para o mercado de trabalho, ou ‘tranquilizá-lo’, como diz Osakabe. Agora, na medida em que a classe que assume o giz e a palavra deixa de ser a classe média, e passa a ser uma classe constituída por um contingente de sujeitos que toma o lugar deixado por sujeitos de classes mais altas, creio que é natural que o discurso contra o sistema seja mais saliente. Afinal, a escola deve fornecer condições para que o aluno saia dela e seja capaz de lutar contra tudo que está lá fora. Tranquilizá-lo, torná-lo simplesmente mais um indivíduo na massa, seria outra forma de doutrinação. Mas será que é isso mesmo que acontece? Eu duvido muito. Outra tese de Osakabe: ao se apropriar da escrita, o indivíduo entra num universo que lhe disponibiliza uma leitura do mundo já formulada. E é nisso que penso quando vejo o comentário do autor do texto na Folha.

Ninguém verá criatividade em redações de vestibular. Simplesmente porque a escola construiu historicamente o gênero ‘redação’ justo para matar qualquer saliência de criatividade ou espírito questionador. É muito mais simples o aluno ficar dentro do esquema previsível, não aparecer no texto, não deixar o ‘eu’ aflorar linguisticamente, colocando-se detrás de uma terceira pessoa falsamente objetiva, do que mostrar-se. É mais seguro. Por que é isso que a escola e a sociedade lhe ensinaram.[1] Ele tem medo de ser avaliado não apenas pelo ‘como’ (a gramática do seu texto) mas também pelo ‘o quê’. Nesse sentido, o indivíduo tenta construir no seu discurso uma imagem positiva (ou politicamente correta, se preferir), afinal, ele vai ser avaliado pelo que diz, não por quem ele de fato é. Portanto, emitir uma opinião que vá de encontro ao consenso (a publicidade é enganosa e manipuladora, por ex., seja ela infantil ou não) é uma estratégia de construção do seu ‘ethos’ discursivo, de mostrar uma imagem de autor que se acredita que será bem recebida e avaliada pelo leitor. Mesmo quando um polemista usa a estratégia de agredir o adversário no debate (como certo grupo de colunistas de direita faz) ele está construindo uma imagem que agrada ao seu leitor, o leitor que espera que ele faça isso, agrida o grupo adversário moralmente. Mas no caso de uma redação de vestibular ou concurso público, o leitor imediato da redação é o avaliador, e é para esse interlocutor que se escreve, não para a sociedade, ou para um grupo dentro dela.

A escola não ensina lucro, livre-iniciativa, bla-bla-blá, lamenta. E precisa? Olha o que acontece com a sociedade em tempos de crise? Provavelmente o autor do texto não teve uma mãe que precisou pintar panos de prato, fazer salgados ou qualquer outro tipo de trabalho manual caseiro para complementar a renda porque o pai estava desempregado, e tinha uma formação profissional tão especializada que ele não tinha outra oportunidade de trabalho senão aquela na qual ele permaneceu durante toda a sua vida. Em tempo de crise o pobre se vira. Faz um bico, vai vender Avon de porta em porta para os vizinhos, vai vender pastel na porta de fábricas etc. Se isso não é livre iniciativa, eu não sei o que é. Ou livre iniciativa é só a start-up que o mauricinho inicia com o dinheiro que o pai deu ou com o empréstimo que fez no banco dando como garantia algum bem da família? Não precisa ensinar o que é lucro. Luxo, conforto, um carro melhor, uma casa melhor, todo mundo quer. E isso não há doutrinação marxista que mate.

A publicidade não funciona, diz ele – só a marxista, logo, publicitários deveriam tomar aulas de persuasão com professores de história, digo eu. Vejam as vendas do McDonald’s, que só caem, diz ele (talvez as pessoas tenham se dado conta que por detrás da publicidade toda existe uma merda de um produto). Como não funciona? Vá a uma escola pública, veja o que os alunos rabiscam nas carteiras, nos cadernos: logotipos de marcas de roupa! Um guri da sétima série, muito antes de ter uma banda favorita, ou um time do coração, já desenha o símbolo da Nike, da Adidas, da Volcom e de qualquer outra marca. Mas o guri que chega ao final do processo, que foi doutrinado ao longo do ensino médio, não é burro. Ele sabe que pra conseguir comprar um tênis da Adidas, pra conseguir entrar na boate da moda, ele precisa de grana, ele precisa ter um bom emprego (ou entrar pro crime). E pra chegar lá, ele precisa passar por um vestibular, ou por um ENEM, e passar por essa seleção envolve dizer o que o patrão quer ouvir.

[1] Vejam essa coleção de dicas que o UOL dá. Entre elas: “copie textos”, como uma forma de exercício; outra: dê preferência para a terceira pessoa do singular ou a primeira do plural.

Linguística para Leigos

Estou lendo “Foundations of Language” do Ray Jackendoff e logo no primeiro capítulo o autor desabafa a sua dificuldade, melhor dizendo, a dificuldade da área como um todo, de se comunicar com um público mais amplo (cientistas, filósofos, público em geral). Para ele, os tempos áureos dos anos 60, quando as pessoas liam o que os linguistas escreviam, passou, e a culpa é nossa. Ele cita dois casos que ilustram bem isso – qualquer linguista que tenha tentado explicar a algum parente no Natal sobre o que é a sua tese sabe como é essa sensação. Primeiro, quando você diz que estuda linguagem, o comentário clássico é “Como é difícil aprender Russo, né?!”. Segundo, “Estão destruindo o português culto, ninguém mais fala certo. Você viu o caso do livro de português que ensinava errado?”. Estou adaptando o segundo exemplo, que é exatamente o mesmo caso citado por Jackendoff. Uma comunidade no interior dos Estados Unidos decidiu valorizar na escola o dialeto local e provocou escândalo nacional. Mas será que o leigo precisa saber sobre como as línguas humanas funcionam?

Ninguém nega que as crianças precisam saber o que é um mamífero, um réptil, um inseto, uma ave, embora ninguém saiba direito para quê serve esse conhecimento (passar no vestibular?). Mario Perini (na sua Gramática do Português Brasileiro, ou no Sofrendo a Gramática) argumenta que se ensina português por questões culturais. Historicamente, o ensino de língua portuguesa envolvia  a leitura dos clássicos, a gramática, e a escrita. Hoje não é muito diferente, embora tenhamos avançado um pouco na didática da matéria. Veja que ensinar, digamos ‘classes de palavras’, por razões históricas não é exatamente um bom argumento. Há cinquenta anos se ensinava latim, e se fazia as crianças decorar as declinações; caso errassem poderiam ser castigadas, humilhadas publicamente. Hoje não vemos mais esse tipo de prática como aceitável. Por que, então, saber o que é uma preposição é relevante? Aqui eu preciso concordar com Perini, à parte todo esse papo de que ensinar gramática é importante (não sabemos exatamente o porquê), para quem poderíamos usar o ensino de gramática como mais uma forma de se ensinar pensamento científico, possibilitar que as crianças pratiquem o método das ciências naturais, mesmo que rudimentarmente. Você deve estar se perguntando, o que isso tem a ver com ensinar o leigo sobre linguagem? Tudo.

A educação formal passa pela escola. Muitas vezes não temos consciência da necessidade de aprender o catatau de coisas que aprendemos lá, além de servir para passar no vestibular. É um uso instrumental. Não percebemos que saber como funciona a velocidade, a gravidade, a geometria, o ciclo da água, etc. são coisas que nos ajudam a entender como o mundo a nossa volta funciona, porque as coisas acontecem da forma que acontecem; para que, essencialmente, saibamos dar as respostas racionais que foram dadas para explicar os fenômenos naturais; um relâmpago é um fenômeno elétrico, não a fúria de um deus raivoso. Uma enchente não é um deus nos castigando pelos nossos pecados. Com a linguagem deveria ser a mesma coisa. Alguns colegas dirão que já temos que ensinar a ler, a escrever, a ler e conhecer a literatura brasileira e portuguesa e a falar em público; ensinar a fazer ciência outras disciplinas fazem. Eu discordo dessa visão. Se temos que ensinar todas essas coisas, e digamos que ensinar gramática seja um componente do “escrever bem” (embora escrever bem não seja apenas escrever com correção gramatical), esse ensino não deve ser na base do “é assim porque é assim”, deve possibilitar que os alunos percebam a lógica (ou a falta dela) por detrás das classificações; perceber que a fala e escrita são coisas diferentes (e ao contrário do senso comum, não escrevemos como falamos, nem temos que falar como escrevemos), para se chegar a essa conclusão basta fazer o que os cientistas naturais fazem: observar o comportamento dos indivíduos sujeitos da pesquisa; por que é difícil aprender russo se um russinho de 3 anos conseguem falar a sua língua materna tão bem? Por que surgem coisas como “menas gente”, “preferir mais”, “subir pra cima”, “entrar pra dentro”? Por que elas são “erradas” se uma boa parte da população fala assim?

O que eu quero dizer, em essência, é que a educação do leigo passa necessariamente pela escola, mesmo que seja uma educação científica geral, de outra forma, onde ele iria ganhar esse conhecimento? Creio que, ao invés de os linguistas ficaram chorando as pitangas porque jornalistas de divulgação científica, filósofos, e cientistas em geral não leem mais seus livros de divulgação (coisa que poucos cientistas fazem no Brasil, divulgação – ainda vou escrever um “Linguística para Dummies”), eles deveriam tentar modificar o ensino de gramática, inserir conceitos de linguagem atuais, e com uma didática contemporânea. Nos livros didáticos de português são inseridos conteúdos transversais que poderiam facilmente ser ensinados em disciplinas como ciências (no ensino fundamental), ou em biologia (no ensino médio). Deveria haver um espaço para que o professor de português fizesse reflexões mais elaboradas, mesmo que simples, sobre a linguagem. Todos temos um ‘instinto’ para essas questões: facilmente reconhecemos um sotaque diferente; percebemos que diferentes comunidades usam algumas palavras diferentes para se referir ao mesmo objeto no mundo; gostamos de contar piadas que se aproveitam de ambiguidades para gerar o riso; e assim por diante. Desta forma, eu diria que o problema não está na comunidade científica, está nos professores que formamos e nos conteúdos escolares. Por vezes tenho a impressão que estamos esbravejando que só ficam ensinando criacionismo na escola, logo, as opiniões dos leigos são rasas e equivocadas (um articulista da Veja entende de linguagem tanto quando o seu primo caminhoneiro), enquanto não damos condições para que os futuros professores entendam a evolução e saibam como torna-la um objeto didático (o desafio está aqui), assim, criando condições para que os alunos que saem das escolas tenham um conhecimento mais profundo sobre como as línguas funcionam e porque as coisas são do jeito que são.

Educação científica em língua portuguesa, é possível?

Creio que uma das grandes dificuldades dos alunos de letras em lidar com a linguística se deve pela falta de preparo científico na educação escolar. É famosa a afirmação de Richard Feynman sobre o ensino brasileiro de física, quando ele cá esteve, nos idos dos anos 70, se não me engano. Para ele não se ensina a pensar cientificamente nas escolas. E me incomoda demais quando os alunos estão somente preocupados com o que vai cair na prova e não em compreender o que eu estou dizendo, como se o objetivo do ensino fosse incorporar noções e conceitos para dali um mês se dar bem na prova e depois deletar essa informação da memória.

Chomsky (nas Manágua Lectures) nos fala que o ensino só atinge resultados duradouros se os alunos são estimulados a se interessarem pelo conteúdo. Para ele pouca diferença faz o método do ensino, contando que o aluno se sinta curioso sobre aquilo. Ambas as afirmações colocam o peso no professor e no planejamento do conteúdo. Só irá fazer sentido para o aluno se ele se interessar seriamente pela matéria. Enquanto nossos alunos aprenderem para a prova a situação da nossa educação escolar continuará como está, e formar cientistas será sempre um efeito colateral. Temos cientistas porque algumas pessoas são curiosas por natureza, não porque foram propriamente estimuladas a pensar cientificamente. De outra forma, os cursos de mestrado e doutorado estariam cheios, e não com vagas ociosas porque os candidatos não conseguem ser aprovados nos testes de admissão. Isso é fruto de um ensino regular e universitário que privilegia o conteúdo e não o desenvolvimento de habilidades de reflexão e síntese. Quando vejo alunos grifando páginas inteiras de um texto, ou fazendo citações do tamanho de um parágrafo, me preocupo com esse tipo de habilidade, que aparentemente não foi desenvolvida, e o desafio está justamente em fazer isso.

Quando se trata de língua a coisa complica. Primeiro porque precisamos combater toda uma tradição de ensino que fala de língua em termos de certo e errado. Segundo porque essa mesma tradição não fez os alunos pensarem criticamente sobre isso, nem sobre as classificações que a tradicação gramatical propõe, que no fundo, são apenas teorias. Que as orações comparativas na língua portuguesa são subordinadas adverbiais é uma teoria, facilmente contestável ou demonstrável através da razão e de bons argumentos. As orações comparativas são como as baleias, seres que nadam, vivem na água, mas não são peixes. Há quem defenda que elas são orações coordenadas (correlativas, uma classe pouco discutida, sequer apresentada em nossas gramáticas), há ainda quem diga que tem um pouco dos dois, coordenação e subordinação. Quando se trata de fonética e fonologia o negócio complica ainda mais porque os alunos demoram pra conseguir desligar a associação entre escrita e som. A fonte dos dados fonéticos não é a escrita, é o som, a produção falada dos falantes. Falar em fonologia então complica ainda mais, porque a fonologia vai tratar de coisas ainda mais abstratas, que são os fonemas, unidades distintivas (como o /p/ e o /b/). Por isso, quando o Possenti falou em um programa, algum tempo atrás, que discutia o internetês, que a escrita de ‘não’ como ‘naum’ era evidência de uma análise bastante sofisticada do sistema fonológico do português, pouca gente entendeu. Assim como muito alfabetizador não deve saber porque a criança escreve ‘muinto’. Se vocês não sabem eu explico. J. M. Câmara Jr., principal linguista nacional, defendia que as vogais nasais na língua portuguesa são a união de um fonema vocálico oral, mais um arquifonema nasal /N/ (os fonemas são representados entre barras). Veja que o /N/ é uma entidade abstrata, uma construção teórica. Supondo que ela existe o que aconteceria? acontece o que vimos acima com o ‘muinto’, e provavelmente uma criança que aprendeu a escrever ‘som’ irá escrever também ‘lam’ para ‘lã’. Na hipótese do Câmara Jr. sempre depois de uma vogal nasal temos um arquifonema e não uma consoante nasal [m] ou [n] (os elementos entre colchetes são fones, unidades atestadas na fala, não letras). Repare que isso é apenas uma teoria, não um fato. As coisas podem não funcionar, assim. Essa explicação é hipotética no sentido de que pode ser refutada, ou podemos encontrar mais evidências para confirmá-la. Só que quando os alunos não sabem o que é uma ‘teoria’, um ‘fato’ e uma ‘hipótese’ ou mesmo um ‘argumento’, fica muito mais difícil o trabalho, porque ao mesmo tempo em que é preciso fazê-los compreender análises complexas temos que introduzir fundamentos de ciência, como o conceito de ‘premissa’, por exemplo (daí eu me pergunto o que eles tem aprendido nas aulas de filosofia).

A gramática e a escola

Quando se trata da língua portuguesa todos possuem uma opinião na ponta da língua. Claro, como toda opinião, assim como grande parte do conhecimento popular, não passa de um mito ou um conhecimento raso do tema, não ultrapassando o óbvio senso-comum. É provável que os pais não ousem contestar o currículo de ciências da escola em que o filho estuda, embora aposto que qualquer pai vai reclamar caso o filho não esteja aprendendo gramática nas aulas de língua portuguesa. Mas, se não se ensina gramática na disciplina de língua portuguesa, o que o professor ensina então?

O equívoco desse lugar comum fica claro na reportagem de capa da revista Veja (08/10/2010). O texto da reportagem critica a falta de clareza e habilidade de expressão oral dos candidatos, particularmente Dilma e Serra. Nada contra isso, tudo contra a deixar subentendido que conhecer as regras do português padrão escrito (o que os leigos chamam de ‘gramática’) seja a solução para um problema que poderia ser solucionado com algumas aulas de oratória ou retórica (cursos que nem existiriam se as aulas de língua portuguesa cumprissem seus objetivos).

Conhecer fragmentos de regras do português padrão escrito (concordância e regência, não abusar nos estrangeirismos etc.) não é pre-requisito para a boa expressão oral e escrita, nunca foi. Na verdade, o que as pesquisas em linguística aplicada provam é justamente o contrário. E isso já vem sendo discutido nos cursos de letras no Brasil e no mundo e ensinado aos professores de português há pelo menos 30 anos! Por que então se perpetua essa bobagem de que conhecer gramática é fundamental para a boa expressão oral e escrita? Ninguém nega que conhecimento do português padrão seja importante, mas SÓ o conhecimento gramatical não produz bons escritores e oradores.

Acredito que o primeiro problema se deve à pouca presença da ciência da linguagem no ideário científico e popular. Ninguém nega que física, química ou biologia sejam ciências, embora mesmo cientistas de outras áreas ainda acreditem que o que um linguista estuda é gramática. Sim, estudamos a gramática também, mas o que chamamos ‘gramática’ é algo totalmente diferente do senso-comum. Além disso, os avanços da ciência da linguagem ainda não adentraram completamente nos currículos escolares e nos livros didáticos. Há dois avanços significativos que acredito que os pais verão nos livros das crianças, principalmente no ensino fundamental. O primeiro é o foco no estudo do texto: muitas atividades de leitura, interpretação e produção textual. O segundo é a valorização das diferentes formas regionais de falar o português brasileiro (mas sinto que o preconceito em relação a isso ainda é muito forte). Se o aluno do ensino fundamental (EF) chegar ao ensino médio sabendo se expressar oralmente e por escrito com competência, sabendo adequar a sua fala aos diferentes contextos de uso da língua na sociedade, o ensino de português terá atingido seu objetivo.

O que tem acontecido é: o aluno chega ao final do EF e tem uma ideia vaga do que sejam as classes de palavras e não se expressa por escrito com competência. É como se por saber as regras do futebol o sujeito fosse obrigado a saber jogar o esporte com proficiência. Quanto ao ensino médio, ainda vemos aqueles livros didáticos confusos que mesclam literatura, conhecimento gramatical (classes de palavras, morfologia, concordância, regência e análise sintática), rudimentos de análise do texto (coesão, coerência, tipologia textual que não passa da trindade dissertação-descrição-narração) e alguma produção textual. O aluno tem um conhecimento superficial de cada coisa. Com um programa recheado desses, por sorte o professor vai conseguir fazer uma produção escrita por semestre, considerando que tem que dar conta do “conteúdo”. Não há prioridades e temo que “expressão escrita em diferentes gêneros” não seja item de programa de língua portuguesa em escola nenhuma na cidade. Também temo que se o cenário não seja esse, seja pior: os alunos possuem aulas de língua portuguesa e aulas de redação ou produção textual em horários separados, como se essas coisas fossem diferentes. O resultado é o mesmo, o aluno sai da escola com a sensação de que a língua portuguesa é uma ciência exotérica e que ele não sabe se expressar por escrito. Ou, se se sente confortável pra escrever, vai dizer que não sabe gramática.

A sociedade contemporânea exige que seus sujeitos saibam de expressar por escrito e oralmente com competência; que saibam ler e interpretar um texto corretamente. Sem essas habilidades básicas, o sujeito penará para entrar na faculdade; penará para chegar ao fim dela, quando terá calafrios com a iminência do trabalho final de conclusão de curso; e se verá obrigado a fazer um cursinho de português para concursos porque sempre haverá ‘língua portuguesa’ nos conteúdos para concursos públicos; sem falar da iniciativa privada, saber se comunicar oralmente e por escrito é fundamental. Se a nossa escola não tem cumprido essa função, está na hora de ela começar a rever as suas prioridades. Pelo menos que ela aplique o que em teoria já existe há 12 anos, os Parâmetros Curriculares Nacionais.

Mas não há como os pais reclamarem que os currículos de língua portuguesa não se atualizam. Assim como a religião, a moral e os bons costumes, a gramática ainda é aquele tipo de conhecimento que todo pai espera que seu filho conheça e obedeça. Só que a sociedade não percebe  é que a ciência mudou muito nos últimos quarenta anos (Plutão nem é mais planeta, por ex.) e que podemos incluir a nossa língua portuguesa nesse conjunto. Apesar dos alardes dos puristas e outros reacionários, nossa língua vai muito-bem-obrigado, com estrangeirismos, gerundismos, msn, twitter e tudo.

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Eu escrevi esse texto na época das eleições, no ano passado. Provavelmente esqueci de publicar e hoje fuçando nos arquivo da minha pasta ‘in progress’, onde armazeno os textos em que estou trabalhando (sabe como é, férias, época de fazer uma faxina no escritório e nos arquivos do pc também).