Frentear

Não sei se os jovens de hoje conhecem o conceito de ‘frentear’, uma atividade que mostra muito da realidade socioeconômica dos anos 90 e início dos anos 2000, pelo menos na cidade em que eu morava na época. A “minha galera”, quer dizer, a galera que meio que me adotou, era uma mistura confusa de metaleiros de diferentes bairros da cidade, aglutinados por alguns líderes com essa capacidade de fazer aquele povo se reunir pra beber e falar de bandas, gibis e leituras – especialmente Paulo Coelho, uma febre naqueles anos 1990 (tinha uma longa lista de espera para ler seus livros na biblioteca do colégio).

O frentear era basicamente ir para a frente da balada ou da lanchonete da moda. Como muitos de nós não tínhamos dinheiro (ou idade) para se sentar no bar, ou entrar no clube, o jeito era fazer uma vaquinha pra comprar alguma coisa pra tomar e ficar ali pela frente bebendo e conversando. As festas aconteciam em clubes, o Concórdia e o Aliança. Os sócios não pagavam entrada, e pagar para entrar não era lá muito barato.

Suspeito que não conheçam. Faz muito tempo que não saio à noite, mas o fenômeno me parece ter desaparecido, embora nas grandes cidades eu imagino que os jovens tenham pontos de encontro para paquerar ao ar livre nos finais de semana.

Lendo e vendo

O declínio do império americano (1986): revi o filme Denys Arcand final de semana. Ele tem mais de 30 anos e me soa hoje como ‘a vida sexual dos intelectuais canadenses de meia idade feios’. O filme é bem humorado, mas acaba num tom ácido. Tem o professor pegador divertido, tem o professor que se apaixona pela aluna muito mais nova, a solteirona com um homem mais novo, o gay (provavelmente com AIDS, não entendi se está ou não).

Saturno translada (7 Letras, 2022). Lucas Lazaretti, além de escritor, é tradutor e doutor em Filosofia pela PUC-PR. Fiquei intrigado pelo ‘saturno’ do título e demorei pra entender que tem a ver com a chegada dos 30 anos e a maturidade. O livro trata de um grupo de amigos que por essa idade enfrentam dilemas pessoais e profissionais. O músico que volta de uma temporada no exterior e está sem perspectiva; o artista que se exila da Alemanha com medo das hordas conservadoras; a recém-doutora que não consegue trabalho nem bolsa de pós-doutorado e que vê no exterior uma oportunidade de continuar na sua área de pesquisa; o psicólogo suicida. Todos são personagens interessantes, cujos dilemas e questões estão inseridos nesse Brasil em que vivemos, narrados por uma voz com muito estilo e erudição.

A história das cidades

Tenho uma relação peculiar com as cidades em que morei. Nascido em São Miguel do Oeste (SC), vivi lá alguns nacos da infância, mas também vivi parte dela em Chapecó (SC). Não me sinto pertencente a essas cidades, como se elas fossem parte indelével de quem sou. Me sinto mais porto-união-vitoriense, essa cidade que é uma e ao mesmo tempo é duas, metade Paraná (União da Vitória) e metade Santa Catarina (Porto União). Vai ver porque eu fui para lá aos doze anos e por lá fiquei até os vinte e dois. Dez anos, da pré-adolescência ao início da vida adulta. Lá construí minhas principais amizades fora do círculo profissional. Lá conheci minha esposa e mãe das minhas filhas. Meus pais estão enterrados sob aquele solo.

Tem alguma coisa na água. Claro que tem. O rio sempre exerceu um fascínio enorme sobre mim. As águas volumosas do Rio Iguaçu me assombravam e me atraíam. Eu via aquela massa marronzada seguindo seu curso lento e tinha vontade de pegar uma canoa e ir ver como ele desaguava na sua foz; queria me deparar com as criaturas que se dizia moravam no seu leito e que vez por outra inventavam de fazer as águas se elevarem e inundarem boa parte da cidade.

E tem a história. Mesmo não tendo sido palco de batalhas do Contestado, aquele trilho de trem cortando a cidade em duas era a testemunha de um Brasil que não existe mais, de uma estrada que ligava Porto Alegre a São Paulo e que simplesmente foi abandonada. Não me recordo dos trens circulando, pois morávamos naquele início dos anos noventa num bairro distante do centro e deles. Hoje vejo os trilhos do antigo pátio de estacionamento das locomotivas tomado pela grama e pelo mato, com todos os galpões e oficinas já demolidos e tempo imaginar o movimento que ocorria por ali no tempo da pujança econômica da cidade: dezenas de madeireiras e fábricas de esquadrias de madeira, fábrica de cerveja, moinhos de trigo, olarias, dois jornais, uma faculdade estadual e uma municipal, várias tipografias, clubes…

Era a história daquele lugar que me fascinava. Li Conhecendo Porto União porque meu pai trabalhava na gráfica que tinha impresso o livro e ele trouxe um exemplar para casa. Era um livro que trazia informações históricas, econômicas e geográficas da cidade.

A cidade tem dois estádios de futebol, o Antiocho Pereira e o Ferroviário. Até onde sei, boa parte dos terrenos da antiga rede ferroviária foram dados para a prefeitura. E a prefeitura de União da Vitória pretende leiloar o terreno do estádio do Ferroviário. Entrei lá uma ou duas vezes, se isso, não me lembro para ver ou fazer o quê. O estádio fica próximo do antigo pátio dos trens e da vila dos ferroviários, onde também há um clube. A construção é modesta, mas me impressionava pela imponência, embora seja uma construção simples que imagino que deva ser praticamente a mesma desde a sua construção nos anos 1940.

A cidade em que eu vivi não existe mais. A cada semestre um novo prédio surge ocupando o lugar de uma construção histórica. Os trilhos despareceram até da antiga ponte férrea, agora usada apenas por ciclistas. Alguns poucos estão sendo restaurados para a criação de passeios com uma antiga locomotiva, mas não sei que caminho fará, já que várias das pontes férreas da região estão abandonadas e imagino que logo, logo cairão aos pedaços pela ação do tempo.

Sempre que leio notícias de descobertas de escavações de civilizações antigas (Roma, Grécia, Egito etc.), penso no momento em que alguém deve ter decidido cobrir de terra um lugar daquelas cidades antigas e construir algo novo em cima. Nós não deixamos de fazer a mesma coisa. Continuamos o ciclo eterno de destruir o velho para se construir coisas novas. Preferimos por tudo abaixo a modernizar ou preservar.

Mas diferentemente das civilizações antigas, ali, daqui a dois mil anos, não haverá nada por baixo para se desenterrar.

Links

Sobre o leilão do estádio e o time dos ferroviários.

O trânsito das palavras

Eu estava lendo esse texto sobre alguns vocábulos do dialeto caipira que estão caindo em desuso no interior de São Paulo e percebi que eu conheço todas aquelas palavras. Sou nascido no oeste catarinense e vivi da pré-adolescência até os vinte e dois anos em União da Vitória, no sul do Paraná, que fica numa das rotas usadas por tropeiros.

Os tropeiros saíam do Rio Grande do Sul e iam para São Paulo levar gado e charque e de lá traziam vários itens, inclusive correspondências. As BRs 116 e 153 que ligam o Rio Grande do Sul a São Paulo e Paraná praticamente reproduzem esse caminho. Esse movimento durou até segunda década do século XX, com a ampliação e pleno funcionamento da rede ferroviária no sul do país.

União da Vitória tem uma pronúncia do erre um tanto puxada, um retroflexo. Também é bem fácil encontrar outras marcas do dialeto caipira na fala de moradores mais antigos com baixa escolaridade (‘nóis imo’, ‘nóis fumo’, ‘nóis fazimo’ etc.) – com a ressalva de que muitas características morfossintáticas do caipirês são encontradas amplamente na fala de indivíduos com pouca escolaridade no país todo.

Outro traço é o vocabulário. Das palavras que a pesquisa cita, conheço todas: bucho, lombo, goela, beiço, anca, munheca, viúva (no sentido de ‘terçol’); e suas derivadas: se esgoelar (“gritar muito alto”), desbeiçado (“destruído, mutilado”), desancar (“maltratar”), desmunhecar (“quebrar o pulso metaforicamente, ou seja, virar a mão como os homossexuais fazem”). Me senti um caipira. Pelo relato da pesquisa, entendi que a lista pesquisada envolve somente a lista citada no texto. Não há menção ao fato de que essas palavras são parte do vocabulário de boa parte do sul do país e suponho que essas palavras tenham viajado por essa região no lombo dos tropeiros.

Adolescência

Eu era uma um pré-adolescente imbecil, ridiculamente imbecil. E quando o assunto eram as mulheres, eu era imbecil no grau mil. Não sei como é que de vez em quando aparecia uma menina interessada em mim. Interessada o suficiente pra me mandar uma cartinha. Recebi algumas cartinhas na vida. Me lembro de duas da infância e pré-adolescência e algumas outras ali pelos vinte e poucos. Nunca entendi essa coisa de as mulheres escreverem pra mim, talvez fosse a intuição delas dizendo que para que eu as escutasse elas deveriam por no papel o que tinham pra dizer.

Eu estudava na Escola Básica Alberico Azevedo, em São Miguel do Oeste (SC), na sexta série. Na minha turma tinha uma ‘alemoa’ (era assim mesmo que a gente chamava as meninas com descendência italiana ou alemã) que era apaixonada por mim. Mas fazer o quê? Eu tinha 11 anos e era um completo bocó. Todo mundo na escola ria dela por levar de lanche sanduíche de pão com ovo e salame. Eram tempos difíceis aquele 1993 e todo mundo levava um pão com alguma coisa como recheio de casa. Eu também ria dela. Ela era mais alta e encorpada que todos nós da turma. Cabelos loiros longos. Era linda, sem dúvida, mas não era tão linda quanto uma moreninha trigueira, filha de um sargento, que morava na vila militar perto da escola. Todos eram apaixonados por ela, que não economizava amor, por sua vez. Diziam que até de mim ela gostava. Eu me envaidecia, óbvio. Não sei se era por isso que a alemoa não me despertava afeições mais profundas. Eu gostava dela. Acho que tinha medo de me aproximar. Receio do que os outros diriam, sei lá (eu avisei que eu era um bocó). A gente se mudou para União da Vitória no ano seguinte e nunca mais a vi. Hoje, aos 30 e poucos, deve estar deslumbrante, tenho certeza.

Em União da Vitória, no Colégio Túlio de França, caí de paraquedas numa sétima série cheia de meninas bonitas. Eu era o estranho ali. Eu já era fechado por natureza e me fechei mais ainda por me ver num colégio sem conhecer ninguém. Uma garota magrela, cabelos cacheados, toda certinha, gostava de mim, aparentemente. Eu só percebi isso na oitava série. Os outros guris do colégio já corriam atrás da meninada e eu só queria saber de jogar bola. Eu ia beijar nas férias no final daquele ano, mas poderia ter beijado ela, se eu fosse mais esperto. Ela passou a oitava série toda me mandando sinais. Me chamava de crânio porque eu sempre tinha as respostas para as perguntas dos professores, lia um livro por semana, às vezes dois, e tirava boas notas. Inclusive lembro de ter escrito um historinha de terror, ilustrado e feito um livrinho para expor na feira de ciências do colégio daquele ano. Fiz também um telégrafo, que não deu muito certo porque eu e meu colega não compramos o fio certo. Passando pela feira, com ela por perto, para ver as coisas expostas, ela apontou um vidro com um cérebro dentro e disse “Ó você ali!”. Interpretei isso como um elogio. Talvez a brincadeira fosse mais profunda. Meu cérebro estava ali, na mesa, e eu andava pelos corredores da escola com a cabeça oca. Vai saber…

Eventualmente uma garota acabou me agarrando e me beijando nas férias daquele 1994. Ela recém tinha descoberto como aquilo era bom, eu era um desconhecido, logo… Na festa de aniversário de uma prima, a mesma que tinha me apresentado à beijoqueira, conheci outra garota que estava interessada em me beijar (foi o que me disseram). Mas era festa de aniversário, a família toda ali, ela mostrava tanta vontade de me engolir que eu fiquei encabulado com aquela pressão e não beijei a guria. Ela era bonitinha (até onde me lembro), cheinha, usava aparelho, era risonha e divertida. É… nem sei como me desculpar.

Depois veio o ensino médio, e como todo adolescente bobo superficial, me interessava pelas gostosonas e esquecia das meninas da minha liga, meninas que caberiam no meu caminhãozinho. Fora que nessa fase eu tinha a impressão de andar com uma nuvenzinha de tempestade sobre a cabeça o tempo todo, como nos desenhos. Meu pai reclamava de tudo que eu fazia, eu era explorado num emprego de meio período, e bebia demais nas festas (quando me convidavam pra festas). Fiquei interessado por uma colega de classe. Ela tinha um cabelo estranho, mas era divertida e conversava comigo. Mas não consegui dizer pra ela o que eu sentia. Me coloquei no que hoje a moçada chama de friendzone. A gurizada tende a colocar a culpa na menina. É óbvio que a culpa era minha: o que eu esperava, que ela fosse me agarrar? Eu não era (e nem sou) tão bonito a ponto de despertar instintos primitivos nas mulheres. Depois de adulto (em que fiquei menos tímido) sempre tive que batalhar para ficar com alguém. Claro que eu não esperava que ela fosse fazer isso. Eu na verdade esperava pelo momento certo para dizer para ela o que eu sentia. Momento esse que nunca aconteceu, e ela visivelmente perdeu o interesse por mim e eu por ela.

No terceirão uma menina do primeiro ano passou a me dar um bolão. Era descarado o negócio. Sempre que nos encontrávamos no corredor um sorriso gigantesco explodia no rosto pequeno dela. Seus olhos me flechavam. Nada acontecia comigo. Eu não sabia o que dizer, o que fazer. Suponho que o problema fosse que eu a achasse feia. Ela tinha amigas bem bonitinhas, o que fazia com que meu foco de atenção se desviasse. Anos depois, uns 10, a encontrei em um supermercado da cidade, trabalhando como promotora de algum produto, desses que as mulheres oferecem para as pessoas nos corredores. Estava linda, absurdamente linda. Não creio que ela tenha me reconhecido por detrás da barba (tá, é um exagero chamar isso que eu tenho na cara de barba, mas vá lá, digamos que seja).

Claro que eu não tinha como saber que todas essas meninas que em algum momento da minha vida me deram mole viriam a se tornar mulheres lindas. Quem é que pensa nisso quando tem 12, 14 ou 17 anos? Eu não pensava. No final das contas eu acabei não ficando com muitas meninas durante a adolescência. Se eu fosse contar, daria umas duas por ano (sendo generoso comigo mesmo). O que para aquela época já era um fiasco. Imagine para os padrões atuais, em que a moçada vai pras festas e fica com várias pessoas na mesma noite. Tudo isso por quê? Por que além de ser fechado como um cofre eu era um mané superficial.