As definições de sujeito

Muita gente critica as definições das noções gramaticais usadas pelas nossas gramáticas tradicionais e repetidas por gramáticas escolares, livros didáticos e apostilas de concursos. Não dá muito trabalho perceber que as definições de sujeito e predicado apresentam problemas conceituais ou são definidas de maneira vaga, usando termos que não são definidos pelo gramático (ver Perini, Para uma nova gramática do Português; ou Azeredo, Gramática Houaiss da língua portuguesa).

Alguns exemplos:

Cunha e Cintra (: 137) “Sujeito é ser sobre o qual se faz uma declaração; o predicado é tudo aquilo que se diz do sujeito”.

Embora, posteriormente, eles identificam a estrutura da oração como a união de um SN e um SV.

Bechara (MGP: 409) “Chama-se sujeito à unidade ou sintagma nominal que estabelece uma relação predicativa com o núcleo verbal para constituir uma oração”.

Bechara propõe algumas estratégias de identificação: a) estabelece concordância com o verbo do predicado; b) normalmente aparece à esquerda do verbo; c) responde à pergunta: quem ou o que.

Azeredo (Gramática Houaiss: 150): “Palavras e sintagmas são as únicas espécies de unidades aptas a desempenhar uma função sintática. Para tanto, é necessário que estejam contidas numa construção maior a cuja base se anexam. Se esta construção é uma oração, sua base é o SV, que funciona como predicado (Este relógio pertenceu ao meu avô), e o SN anexo a esta base funciona como sujeito (Este relógio pertenceu ao meu avô).”

Nas escolares:

Savioli (Gramática em 44 lições: 7): “Sujeito é o termo da oração que funciona como suporte de uma afirmação feita através do predicado”.

“Predicado é o termo da oração que, através de um verbo, projeta alguma afirmação sobre o sujeito”.

Também sugere os critérios que Bechara usa para identificar o sujeito.

Bechara (Gramática Escolar da LP: 15): Não faz uma definição clara:

“Sem verbo não temos oração, já vimos isto. Cabe agora insistir em que a sua natureza semântica (de significado) e sintática (de relação gramatical) determinará se a predicação da oração é referida a um sujeito, ou não. Esta referência se chama predicado da oração e o termo referente dessa predicação se chama sujeito:”

Marlit              deu um livro ao neto.

Sujeito                         predicado

 

Faraco, Moura e Maruxo (Gramática: 388)

“Sujeito é o termo sobre o qual se declara algo. O verbo da oração concorda com o sujeito em pessoa e número.”

“Predicado é tudo aquilo que se declara a respeito do sujeito. Não existe oração em predicado.”

Mas afinal, precisamos dessas definições no ensino da língua portuguesa? Qual é a utilidade de se definir o que são sujeito e predicado? Seria possível uma compreensão intuitiva dessas funções? Não seria mais fácil identificá-las com as posições estruturais de SN e SV, como propõe Azeredo, e que, em outros termos, Bechara e Cunha e Cintra trazem também?

Claro, nem todo SN ligado semanticamente a um SV é seu sujeito, nem mesmo a relação de concordância, para Perini (Gramática do Português Brasileiro) é um critério seguro.

Então, o que seria? A combinação das três coisas: a) relação de significado: termo do qual se predica uma propriedade; b) relação de forma: concordância de número e pessoa.

Não sei… me parece que os alunos identificam a função de sujeito muito mais a partir da intuição do que pelo uso racional das noções. Claro, sem mencionar a exemplificação: nos exercícios só se oferecem exemplos que se encaixam nas definições.

Estrutura argumental e discurso

O número de complementos de um verbo e os papéis temáticos que esse verbo atribui a esses participantes é um tema que pode ser tratado de diferentes perspectivas. Posso olhar para isso considerando o papel do léxico, o papel da sintaxe, ou o papel que essas propriedades possuem para a situação descrita e/ou seu papel composicional. Comparando (1) e (2),

(1) João abriu a porta com a chave.

(2) A porta abriu com a chave.

vemos que do ponto de vista lexical abrir é um verbo que descreve uma situação que pede pelo menos dois participantes, quem abre e o que é aberto. Do ponto de vista sintático abrir é um verbo transitivo direto, que toma como sujeito e objeto sintagmas nominais e atribui a eles um papel temático qualquer.

Na voz ativa, se o verbo possui dois argumentos, um paciente e outro agente, em 99,9% dos casos o português vai transformar o agente em sujeito e o paciente em objeto. Do ponto de vista composicional, (1) expressa que existiu uma situação de abrir em que João foi o agente, a porta o paciente, e a chave foi o instrumento usado na situação. Claro, a explicação para (2) pode ser o trabalho de um semanticista-lexicólogo quanto de um sintaticista. Afinal, o que permite que o verbo abrir construa uma estrutura com um sujeito paciente? É o fato de ele pertencer a uma classe lexical, ao que tudo indica, ou isso não interessa, temos verbos no português que permitem um uso intransitivo, e informações semânticas são secundárias?

O fato é que os verbos possuem uma estrutura que pode ser maleável. Com isso quero dizer que com um verbo como abrir eu posso criar com ele diferentes estruturas sintáticas para descrever a mesma situação:

(3) A porta foi aberta (por João).

(4) A chave abriu a porta.

(5) A abertura da porta (pelo João) (com a chave)

Veja que há construções em que posso omitir o agente, como (2), a forma ergativa,  (3), a passiva, (4), o instrumento foi alçado a sujeito, e (5), uma nominalização. A função referencial dessas estruturas é relativamente a mesma, mas a função textual/discursiva não.

Isso nos mostra que o falante possui à sua disposição, com alguns verbos, uma gama de opções linguísticas para descrever os acontecimentos que pretende comunicar. E a escolha por uma dessas alternativas pode ser regida por vários fatores discursivos: o tópico do discurso (do que estou falando), relevância comunicativa (às vezes não interessa quem foi o agente ou não se sabe) ou motivações socioideológicas (cf. A gasolina aumenta amanhã é um manchete que oculta o fato de que há um agente público, o governo federal, que realizou o aumento; e me parece que expressar ou ocultar agente públicos em notícias depende da simpatia do grupo de mídia).

Segundo reportagens, parece que armas podem disparar sozinhas. Por isso é comum vermos manchetes como:

(6) Arma dispara sozinha e acerta policial em Porto Alegre. (R7, 08/12/2010)

(7) Arma dispara e mata trabalhador autônomo em Campos. (Notícia Urbana, 21/07/2016)

Nos dois casos as armas estavam na cintura dos indivíduos atingidos. Mas temos casos em que alguém disparou a arma, tem um agente na ação, mas o redator escolhe não expressá-lo por não querer imputar culpa a esse agente, mesmo que na matéria se leia depois: “Segundo a Polícia Civil, o disparo foi feito por um amigo dele, da mesma idade”.

(8) Arma dispara e mata amigo de 12 anos. (VGNews, 21/08/2016)

Veja que isso nos dá outras estratégias de indeterminação do sujeito, além da tradicional apontada pela gramática escolar com o verbo na terceira pessoa do plural ou com pronome de indeterminação se. Quero dizer com isso que no caso de verbos como abrir ou disparar posso tranquilamente ocultar o agente da ação utilizando um recurso que o verbo me disponibiliza pela sua estrutura sintática, isto é, posso alçar o paciente a sujeito.

(9) Assaltaram a farmácia da esquina.

(10) Bandidos assaltam farmácia.

(11) Farmácia foi assaltada.

Note agora que em (10) temos um sujeito linguístico, bandidos, mas que é uma expressão que se refere a um grupo indefinido. Normalmente essas manchetes não trazem os nomes dos envolvidos porque não é relevante, mesmo que depois eles sejam presos. Uma manchete como João da Silva e Marcos Moreira assaltam farmácia só é relevante se os personagens são conhecidos do público leitor do jornal. Assim, é mais comum vermos ao invés de (10) a manchete em (11).

Eu ando meio desleixado com o blogue. Andei escrevendo mais no Medium, minhas ficções, por isso não postei mais nada aqui. Vou publicar só por lá minhas aventuras na prosa, e vou deixar o blogue só pra falar de linguística ou outras coisas que me deem na veneta. medium.com/@luisandromendes

Sobre o número em português

Olhando para como o número em português funciona, vemos que a palavra muda de forma se queremos nos referir a um indivíduo ou mais de um. Se o conjunto tem apenas um indivíduo a forma deve ser a singular, menino, por exemplo. Se o conjunto possuir mais de um elemento, a forma a ser usada deve ser meninos. No caso dos nomes é mais ou menos essa a história. Ou não? Se você for um bom observador, vai notar que não usei determinante nos exemplos. Em português se pode dizer também coisas como: o menino, os meninos. Agora os nomes estão precedidos por determinantes.

Isto posto, comparemos as frases abaixo:

(1) O menino bebeu suco.

(2) Os meninos beberam suco.

(3) Menino bebeu suco. (a frase pode soar esquisitinha, mas imagine que ela é seguida por menina bebeu refrigerante, mulher bebeu cerveja etc.)

Em (1) é o que dissemos acima, o conjunto denotado por menino é unitário. Será mesmo? Não poderíamos dizer que de fato quem dá o número é o determinante e que o papel do nome é apenas me informar do que estou falando? (i.e., estou me referindo à classe dos meninos).

Veja que podemos ter então duas hipóteses (pelo menos) sobre a denotação de um nome e sua relação com o número: a) o nome sem plural designa um conjunto unitário e o papel do artigo definido é dizer que esse elemento é conhecido dos falantes; b) o nome sem plural e acompanhado do artigo definido designa um conjunto unitário e também informa que esse elemento é conhecido dos falantes.

O exemplo (3) seria um problema para a hipótese (a). Afinal, se o nome sem marcação de plural designa sempre o conjunto unitário, como explicar que menino nesse caso possa se referir a mais de um indivíduo? Uma resposta possível seria afirmar que nesse exemplo menino designa a classe toda, portanto uma entidade semanticamente plural, embora seja morfologicamente singular. Complicado?

Sim, porque precisaríamos distinguir, se é que é possível distinguir, a marcação morfológica de plural (o –s ao final das palavras) e o plural semântico, a possibilidade de a palavra se referir a um conjunto que possua mais de um indivíduo em seu domínio. Pense em casos como povo, a maioria, grupo etc., palavras que são morfologicamente singulares, mas que designam conjuntos cuja referência contém (e deve conter) mais de um elemento. Afinal, não existem maioria de um só, nem grupo de um lobo solitário (pelo menos no uso comum que fazemos dessas palavras).

Por outro lado, e se (3) for visto como uma evidência de que a hipótese (b) está correta? Essa seria uma forma diferente de entender o plural na língua portuguesa. Seria supor que ele tem como termo regente não o substantivo, mas o determinante, isto é, o termo que antecede o nome e o localiza discursivamente (se é conhecido ou não, no caso dos artigos definidos ou indefinidos), ou como se localiza no espaço do discurso/texto (no caso dos pronomes demonstrativos) [estou simplificando grosseiramente o papel dos determinantes aqui].

O leitor poderia pensar em casos como (4), em que se pode fazer o plural sem usar determinante. E agora?

(4) Meninos gostam de desenhos animados de aventura.

Temos aqui um nome que possui morfologia de plural, e que designa uma classe de indivíduos com cardinalidade maior que um. Veja que se temos morfologia de plural, necessariamente a cardinalidade do conjunto denotado pelo nome tem que ser maior que um. Note também que posso expressar a mesma ideia que (4) expressa sem usar o plural no nome:

(5) Menino gosta de desenho animado de aventura.

Aqui também me refiro a uma classe que é plural, no sentido que precisa ter mais de um elemento lá dentro (ou seja, é semanticamente plural), mas que não possui marca morfológica de plural, isto é, não possui –s no final da palavra.

Mas voltemos a (4). Até que ponto ele é uma contraevidência para a hipótese (b)? Ele parece ser um problema sério para essa hipótese. E no momento não vejo como acomodá-lo nessa visão (talvez um linguista mais esperto que eu saiba). A não ser que…

…o sistema de expressão morfológica (ou morfossintática) do plural em português funcione de outra forma (uma terceira hipótese): o plural não precisa estar nem no nome, nem no determinante, obrigatoriamente, mas ele precisa estar expresso no primeiro elemento do sintagma nominal. Ou seja, se a escolha do falante residir na forma marcada morfologicamente para expressar o plural, então essa marca precisa estar expressa no primeiro elemento do sintagma (como as pesquisas em sociolinguística parecem mostrar). Nesse sentido, nem o determinante, nem o nome são os responsáveis, per se, pela expressão do número, e sim a configuração que a estrutura do sintagma apresenta. (suponho que algum linguista por aí já tenha defendido essa hipótese).

Tradicionalmente os gramáticos tenderam a ver o nome como o elemento que determina a expressão do número, é ele quem rege a concordância. Vejamos o que diz Said Ali, por exemplo: “Número é a particularidade que têm os substantivos de indicar se se fala de uma pessoa, animal, ou cousa, ou de mais de um ser”. Veja que a expressão do número é característica do substantivo. Cunha e Cintra possuem a mesma visão. A visão de Mattoso Câmara Jr. não é muito diferente. No seu Dicionário de Linguística e Gramática, ele afirma o seguinte na entrada sobre número: “Categoria gramatical que leva em consideração o número dos indivíduos designados nos nomes” (p. 179). Claro, a intuição é exatamente essa. Usamos o singular ou o plural em função da cardinalidade do conjunto de indivíduos que queremos designar. Talvez por isso a ênfase tenha recaído sobre o nome em si, núcleo da construção (outra hipótese bem discutível).

Poderíamos tomar esse caso como um exemplo de como os dados que escolhemos podem nos levar a formular uma hipótese ou outra. O caso da marcação não-padrão do plural em português pode ser visto tanto como uma evidência para as duas últimas hipóteses, quanto como uma contraevidência para a hipótese (a). Se o plural é marcado no nome, por que podemos dizer os menino, então? Agora, se ignoramos a marcação não-padrão, e os nomes sem determinantes, tudo nos leva a crer que a opção (a) é a correta. Talvez tenha sido isso o que levou os gramáticos a considerarem que o número morfológico é expresso essencialmente no nome núcleo do sintagma nominal e não no determinante ou no primeiro elemento da construção.

Uma ressalva precisa ser feita aqui: será que poderíamos formular a hipótese (c) com o aparato conceitual da gramática tradicional? Falo ali em ‘sintagma’, ‘construção’, noções relativamente recentes no pensamento gramatical/linguístico. Por pensar o funcionamento da língua estritamente em cima da noção de palavra, não sei até que ponto também seria possível formular a terceira hipótese nesse paradigma incapaz, creio, de formular regras olhando para a estrutura interna de uma construção, já que não há a noção de construção na NGB, por exemplo, embora se fale em ‘termo’, em muitas das nossas gramáticas. Uma noção, que pra mim, abarca não só o conceito de vocábulo/palavra, como também o conceito de sintagma/construção. Embora, a noção de concordância nominal seja construída a partir da hipótese que o nome é quem rege a concordância dos seus termos satélites/determinantes. A de gênero parece ser assim, já a de número…

O mensalão e a semântica

Uma polêmica que gira em torno do mensalão me parece uma questão semântica. É semântica porque te a ver com como definimos o “mensalão”. A acusação inicial de Roberto Jeferson era de que havia uma mesada para os políticos que apoiavam o governo, por isso o esquema foi batizado (por quem?) de “mensalão”. Não lembro de os envolvidos negarem a origem espúria do dinheiro, o PT sempre negou o pagamento mensal, e acredito que é isso que Lula faz quando diz que o mensalão não existiu, ele quer dizer que não houve o pagamento mensal. Mas afinal, a que tipo de estado de coisas no mundo a expressão ‘mensalão’ se refere?

Há basicamente duas coisas: a) para o PT, ‘mensalão’ é a acusação de que o partido tenha usado dinheiro de caixa dois para comprar votos de parlamentares. Dinheiro esse, pelo menos de acordo com o que eu entendi sobre tudo que se publicou sobre o caso nos últimos tempos, veio de empréstimos que de fato não existiram. A resposta é que o dinheiro veio de contratos fraudulentos entre empresas públicas e as agências do Marcos Valério, que, depois de pegar a sua comissão, repassava o dinheiro ao partido. b) o escândalo como um todo. Vou ser claro, o que o partido nega é o pagamento MENSAL, que de fato não foi provado, já que o partido usou o dinheiro para financiar campanhas (inclusive a do Lula? Isso ninguém perguntou, que eu sabia), não para comprar votos parlamentares. O que seria bem estranho, pagar para gente do partido e de partidos aliados votar nas matérias de interesse do governo. Isso eu acredito que não tenha acontecido. O esquema todo de esquentar o dinheiro usando empréstimos falsos, sim.

De certa forma, o esquema é menor do que querem nos fazer crer. Não dá pra medir o quão grande ele é, mas ele tem sua importância por duas razões: O PT sempre foi um arauto da honestidade e o escândalo mostrou que o partido não é diferente de nenhum outro; e foi articulado por pessoas importantes do partido, que possuíam papéis importantes no governo. Geralmente os escândalos políticos eram articulados por deputados e senadores visando enriquecer com desvio de verbas públicas. Aqui o buraco parece ser mais embaixo (ou mais acima), o objetivo dos desvios era a compra de apoio parlamentar, segundo a denúncia original. Mas basta ler o que se publicou sobre o caso para ver que não foi esse o caso. Por mais que Joaquim Barbosa tenha escrito que, sim, o PT comprou apoio parlamentar. Mas por ele ter escrito isso, não quer dizer que os eventos tenham acontecido. Quem dos parlamentares foi acusado de enriquecimento ilícito? Nenhum. Então pra onde foi o dinheiro? Segundo consta, foi para pagar despesas de campanha do PT e dos partidos aliados.

Tem ainda essa história toda de que o Lula disse que o mensalão não existiu. Na verdade, o que ele negou foi o pagamento da mesada aos parlamentares, não o esquema como um todo (clique aqui). O que a gente viu ser julgado foi apenas uma fatia do negócio, provavelmente, uma versão dos fatos. Jamais saberemos o que de fato aconteceu. O que a população, os jornais, e todo o resto (excluindo o PT) entendem quando ouvem ou leem a palavra ‘mensalão’ é o escândalo como um todo. No final das contas, o debate político que se trava em torno disso é sobre as coisas que a palavra engloba, que para os dois lados são diferentes.

Aqui tem um guia bem completo da história toda.

As palavras e os fatos

Tenho reparado que a imprensa tem feito um uso estranho de certas expressões, desviando-as dos seus significados originais. Não que isso seja proibido, afinal é justamente a deriva de significados, o uso de uma palavra com significado x fora de seu uso comum que faz com que a língua se enriqueça e mude. E convenhamos, mudanças sempre são boas, bendita a hora em que nossos ancestrais perceberam que o fogo, além de esquentar, servia também para cozinhar os alimentos, que ficavam bem mais gostosos assados.

Vamos a um caso: ‘suspeito’. Quem é o suspeito? De acordo com o dicionário Aurélio: “adj. 1. Que infunde suspeita; suspicaz.2. que inspira cuidado ou desconfiança. 3. De cuja existência ou verdade não se tem certeza.” [grifo meu].  Agora, vejamos alguns usos atuais dessa palavra:

(1) “Pela terceira madrugada consecutiva, um banco atacado por criminosos no Rio Grande do Sul. Desta vez, foi a agência do Santander de Torres, no Litoral Norte. Um suspeito foi preso e outros dois fugiram.” (http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2012/08/bandidos-arrombam-agencia-bancaria-em-torres-3840498.html)

Essa agora é de um caso bastante comentado na cidade (Porto Alegre, RS) nos últimos dias:

(2) “Suspeito de assassinar a mulher e o filho, o bioquímico Ênio Luiz Carnetti foi autuado em flagrante por duplo homicídio duplamente qualificado por motivo fútil (ciúmes) e também por não haver chance de defesa da vítima, segundo o delegado Cléber dos Santos Lima.” (http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/policia/noticia/2012/07/autuado-em-flagrante-suspeito-de-matar-mulher-e-filho-nao-tem-previsao-de-sair-do-hps-3833465.html)

(3) Patrícia Poeta, no jornal nacional do dia 06 de agosto fala do “suposto empréstimo” do qual José Genoíno teria sido avalista. Se o empréstimo é “suposto” como esse fato pode ser tomado como prova para condená-lo ou acusa-lo? Afinal ele é acusado justamente de ser avalista de empréstimos falsos, usados para lavar o dinheiro proveniente de corrupção, segundo consta e pelo que entendi. Esse último uso difere um pouco dos primeiros, porque o contexto em que ele está inserido toma o fato como suposto, logo, não há certeza se ele ocorreu ou não. A pergunta que surge, independentemente de ele ser culpado ou não é: pode-se acusar alguém com base em um “suposto empréstimo”? Afinal, “suposto” é definido como “hipotético” pelo mesmo Aurélio.

Os casos (1) e (2) são interessantes porque mostram que o “suspeito” está sendo usado de outra forma, quase como sinônimo de “acusado”. Os fatos não negam que os indivíduos foram agentes dos crimes que lhes imputam, então o que leva os jornalistas a os chamarem de “suspeitos”? Ambos foram pegos em ‘flagrante’, ou seja, a polícia os prendeu logo após os crimes serem cometidos. Assim, eu diria que o uso da palavra nesses casos está equivocado, já que os indivíduos são claramente culpados. Apesar disso, não condeno o uso, pois como eu disso no parágrafo inicial, é justamente a inserção da palavra de um contexto que lhe dá um novo matiz de significado um dos fatores que move a mudança. Esperemos que o tempo nos mostre se estou errado. Ou toda essa conjectura será apenas paranoia de semanticista?

Duas dimensões do significado

Um episódio recente, que me deixou bem chateado, por sinal, me fez pensar que talvez não tenhamos tanto controle assim sobre aquilo que dizemos e o que é mais grave ainda, sobre como as pessoas irão interpretar aquilo que dizemos. Tradicionalmente, aprendemos nas aulas de semântica que o significado possui duas dimensões, o significado denotativo e o significado pragmático ou do falante. Essa dimensão implica que há um significado que se mantém independentemente da situação em que uma palavra ou sentença é usada, assim como há um significado que precisa ser inferido pelo ouvinte, já que o seu conteúdo não está expresso literalmente. Exemplificando, quando dizemos de uma mulher que ela é simpática, principalmente se dito por um homem, o comum é interpretarmos isso como ‘ela não é bonita, e talvez seja feia’, embora nenhuma palavra em “fulana é simpática” me autorize a fazer esse raciocínio. É um aspecto que está relacionado com a cultura e conhecimento de mundo, por mais que seja difícil separar essas duas coisas.

Pois bem, acontece que eu escrevi a seguinte frase no twitter, na semana que passou: “Graduandos de letras não devem ficar chateados qdo o prof d lgtca desenhar a explicação no quadro.” Alguns acadêmicos não receberam bem isso, e inclusive se sentiram ofendidos. Dois deles vieram me contar isso, embora eu ainda não saiba exatamente o que eles entenderam. Daí parei para pensar um pouco sobre essa frase e o que eu tinha em mente quando a escrevi. Parece aquelas coisas do tipo ‘se você precisa explicar a piada, ela não teve graça’. Como professor eu uso muito o quadro, pois apesar de todos os avanços tecnológicos, é ainda a melhor ferramenta já inventada para o ensino. No núcleo duro da linguística, há pouco espaço para metafísica ou digressões muito profundas, já que o objetivo do curso de letras não é formar filósofos, mas professores de línguas que pelo menos dominem rudimentos da análise científica de uma língua qualquer, ou seja, eles devem saber minimamente como as línguas humanas funcionam. Pelo menos é nisso que eu acredito, embora tenha quem acredite que basta o sujeito passar a graduação toda só lendo coisas sobre como ensinar uma língua sem sequer saber como ela funciona. Então, o que eu quis dizer com a frase foi que se o aluno perguntar alguma coisa, às vezes é um recurso de explicação usar o quadro para fazer diagramas e esquemas para tentar deixar as coisas mais claras, nada além disso. Ficar só falando pode entrar por um ouvido e sair pelo outro e o aluno continuar com a dúvida. Acredito que o problema tenha sido a expressão ‘desenhar’, ligada via memória discursiva à outra ‘entendeu ou quer que eu desenhe?’. Sim, conscientemente escolhi essa expressão justamente pelo fato de que às vezes temos que desenhar para compreendermos melhor as coisas, principalmente em áreas abstratas da linguística (os semanticistas sabem do que eu estou falando, principalmente quem trabalha com ou já estudou modalidade), as árvores e a teoria dos conjuntos não existem à toa. Eles são importantes recursos e nos ajudam a clarificar e estabelecer relações que não são óbvias a olho nú. Só que a tal memória discursiva (um conceito da Análise do Discurso), opera no nível da ideologia. Quando estamos nesse nível as coisas são mais sutis e é esse tipo de dispositivo que vai interferir no modo como os ouvintes interpretam os dizeres. Como sou professor, os alunos que se sentiram ofendidos me tomaram como interlocutor, e intepretaram o que eu escrevi como uma indireta, chamando-os de imbecis. Se essa foi a interpretação deles é porque eles pensam que eu os considero como tal. Se algum deles pensa isso é porque eu tenha dado motivo para tal, apesar de eu acreditar que todo mundo é capaz de aprender qualquer coisa, por mais que nem todos um dia se tornem bons professores ou linguistas, ou simplesmente deletem tudo da cabeça depois que passar a prova. Se meu raciocínio estiver correto, o equívoco na interpretação surgiu desses dois fatores: a) o aluno que achou eu estava sendo irônico e mandando uma mensagem aos alunos com dificuldades de aprendizagem, o que eu não estava fazendo, só pra constar; b) a imagem que o aluno tem de mim, crendo que eu subestimo sua capacidade de aprender, de novo, não faço isso. Claro, pode ter ocorrido também que alguém simplesmente não gosta de mim, leu o que escrevi e resolveu usar isso como arma para me atacar de alguma forma. Mas aqui já estou no terreno das suposições e mesmo que seja o caso, foi ingenuidade minha pensar que ninguém iria se incomodar com isso. Se se chatearam, apesar de estar escrito o pedido de não se chatear, é provável que eu tenha falado algo que não devia. Mas veja que há uma grande diferença entre o que eu disse e uma frase do tipo ‘não se ofenda, mas você é um canalha.’ Ou não? Sei lá, né, vai ver eu sou um semanticista incompetente e não sei direito o que as palavras significam, o que é provável que tenha acontecido. Minha mulher vive reclamando da forma como eu uso as palavras, e vai ver ela tem razão, vai que tem alguma coisa errada com o componente pragmático da minha gramática?

Por isso, bloqueei o meu twitter para os alunos e os posts do facebook agora são sensurados, só tornei públicos aqueles que eu assim desejar. Entre parar de escrever e escolher os leitores, prefiro a segunda opção, já que aparentemente, as palavras podem significar o que o leitor quiser.