Finja que isso é uma cidade

Eu comecei a ver Pretend it’s a city e achei que lá vinha mais uma daquelas personagens novaiorquinas tagarelas óbvias que só sabem reclamar. Achei que ela seria um Woody Allen dos anos 1970 de vestido. Mas não era nada disso. Afinal, ela não usa vestido. Fran Lebowitz é engraçada, inteligente, culta, um pouco ranzinza, claro, mas não deixa de ser uma mulher cativante.

Todos os episódios são ótimos. Mas vou falar do último.

Nele, sobre bibliotecas (ou livros, mais precisamente), ela discorre sobre seu amor pelos livros e pela leitura. Tem uma reflexão que ela faz que me pegou. O livro é uma porta, não um espelho. Tá, ela nem é tão original assim, só que me deixou pensando.

Certamente que algo em nós quer se identificar com personagens e situações, mas também a leitura é uma entrada para outras vidas e mundos que estariam indisponíveis de outra forma. Provavelmente jamais irei para Cartagena, da qual conheci pedaços via Garcia Marques. Embora tenha nascido de origem humilde, sou homem e branco. Só a literatura para me dar uma amostra do que é ser mulher, negro, gay, morar numa favela, crescer numa fazenda, crescer nos anos 1970 durante a ditadura militar etc. Em resumo, é para isso que deveria servir a literatura, abrir nossos olhos para outras perspectivas de mundo.

E outros mundos, eventualmente. Mas mesmo a literatura de fantasia ou distopia, a boa, ela nos faz pensar sobre a nossa realidade.

E falando em realidade, ela nos permite conhecer um olhar sobre Nova Iorque. Nós, brasileiros médios periféricos que somos apaixonados por aquela cidade e seus personagens, passeamos por uma metrópole linda e confusa, com suas ruas batizadas por números cuja referência não conseguimos alcançar. Meu caso pelo menos. 12th Avenue? Não faço ideia de como seja. Broadway, Times Square, Wall Street, Brooklyn, Queens, Ellis Island… Esses nomes são mais fáceis de gravar.

Já se você não é lá muito fã da cidade, de repente é uma porta para conhecê-la. E a cidade é “lida” por uma de suas personagens. Morando lá desde seus 20 anos, Fran conhece seus moradores, seus barulhos, sua música, seus fetiches (dinheiro, fama, trabalho, comida, cultura, personagens etc.).

Nesse sentido, nada mais simbólico do que ela ser entrevistada por alguns “cronistas” da metrópole, principalmente por Martin Scorsese, e também em alguns momentos por Spike Lee. Em algumas entrevistas ela conversa com os atores Olivia Wilde e Alec Baldwin. Outro aspecto simbólico é que algumas cenas das conversas foram gravadas com Fran caminhando em torno de uma maquete da cidade. No início da série, a cidade vai sendo iluminada, e a Fran aparece, caminhando no rio da maquete. A última cena do último episódio é ela saindo de cena e as luzes se apagando. Não preciso explicar, né? O Scorsese sabe das coisas.

O prazer das palavras, Cláudio Moreno

Confesso que durante minha jornada em Porto Alegre virei fã de Cláudio Moreno (e de outros personagens ilustres das letras gaúchas, como o Assis Brasil, o Luís Augusto Fischer e o Paulo Coimbra Guedes). Eu tinha já há algum tempo o Prazer das palavras vol. 2 (L&PM, 2008) e resolvi ler por esses dias, motivado (um tanto) por estar ministrando a disciplina de Morfologia neste semestre, disciplina em que vez ou outra considerações de etimologia nos assaltam durante a aula.

Os textos sobre etimologia são ótimos e bem fundamentados e sua paixão pelos dicionários é contagiante.

Eventualmente ele escorrega para dogmatismos normatizantes, embora afirme repetidamente (pelo caráter de os textos terem sido originalmente publicados separadamente) que a língua é como um rio, que, mesmo contido pelas margens, segue a marcha inevitável do seu curso natural.

Dou exemplos disso:

“…não tem razão aqueles que insistem em defender a existência de uma ‘língua brasileira’.”

Em um dos textos, Formidável, em que lucidamente explica que o gênero dos substantivos pode mudar com o tempo, o caso analisado é o de grama, que tem sido usado no feminino tanto para se referir à planta quando à unidade de medida (cujo uso tradicional é masculino), Moreno cita um leitor que o critica por subscrever ou aceitar como naturais essas mudanças, que para o leitor não passaria de adesão demagógica. O leitor também teme que Moreno aceite como legítimas formas como nós vai ou menas gente. O professor, então, se defende:

“Com relação a “*menas gente” e o “*nós vai”, deixe de ser exagerado; reconhecer uma hesitação no gênero de certas palavras – fenômeno corriqueiro em nossa língua – não implica aceitar flexões que contrariam as leis intrínsecas do idioma“. (p. 212)

Os asteriscos são do autor. O negrito é meu.

Lendo sobre o relativismo linguístico

Não sei por que demorei tanto pra ler a tese do Rodrigo Gonçalves. É aquela história do “amanhã certeza” e o trabalho foi indo pro fim da fila. Como acabei entrando numas de ler sobre relativismo, principalmente por ter lido o Through the language glass (G. Deutscher) e do The language hoax (J. McWhorter), resolvi ler a tese, da qual eu retiro essa citação excelente, de Cole e Scribner (1974, p. 41), que criticam a versão forte do relativismo (enxergo o mundo pelas lentes da minha língua):

Formas extremas do relativismo e determinismo lingüístico teriam implicações
sérias, não somente para o estudo da humanidade de si mesmo, mas também para
seu estudo da natureza, porque elas fechariam a porta para o conhecimento
objetivo de uma vez por todas. Se as propriedades do ambiente são conhecidas
somente através dos mecanismos infinitamente variáveis e seletivos da
linguagem, o que percebemos e experienciamos é, de certo modo, arbitrário, e
não é necessariamente relacionado com o que está “lá fora”, mas somente com
como a nossa comunidade lingüística particular concordou em falar sobre o que
está “lá fora”. Nossa exploração do universo seria restrita às características
codificadas pela nossa língua, e o trânsito do conhecimento entre as culturas seria
limitado, se não impossível. 

COLE, M. & SCRIBNER, S. Culture & Thought.: A psychological introduction. New
York: John Wiley & Sons, 1974.

GONÇALVES, Rodrigo T. Perpétua prisão órfica ou Ênio tinha três corações: o relativismo linguístico e o aspecto criativo da linguagem. Tese (Doutorado em Letras). Curitiba/PR. UFPR, 2008. (p. 24)

No link abaixo um podcast com a Lera Boroditsky, uma das principais figuras do que tem sido chamado de neo-whorfianismo. Ela, e outros, estão tentando encontrar evidências experimentais de conexão entre língua e pensamento. No mesmo programa John McWhorter fala sobre seu novo livro, sobre mudança de significado. Podiam tê-lo convidado para contestar a Lera, já que ele escreveu um livro justamente para isso, o The language hoax.

https://www.npr.org/2018/07/12/628490776/watch-your-mouth

“A kind of blue”: um trecho de ‘A fraude linguística’

Como na semana passada postei um pequeno comentário sobre a palestra da Lera Boroditsky, uma das pesquisadoras neo-whorfianas com mais destaque, e no comentário mencionei o livro de John McWhorter, hoje posto um trecho do livro em que ele lança algumas dúvidas sobre o experimento que o grupo dela conduziu sobre as cores no russo, língua famosa por ter duas palavras para dois tons de azul. O título, imagino, deve remeter ao disco homônimo de Miles Davis.

O trecho abaixo é do capítulo 1, Estudos mostram. [se der tudo certo eu e o Renato Basso traduziremos o livro]. A explicação que ele dá do experimento me parece um pouco confusa. De qualquer forma, inseri a figura 1, de Winawer et alii (2007) [Russian blues reveals effects of language on color discrimination. PNAS 104(19), p. 7780-7785. https://doi.org/10.1073/pnas.0701644104]

John McWhorter. The language Hoax. Oxford University Press, 2014.

* * *

[…] esqueci por que eu sei que a palavra russa para “gay” é goluboj, mas acontece que o significado básico da palavra é “azul claro”. Não apenas azul, porque há outra palavra russa para a versão mais escura, marinha, prussiana de azul, siniy. Não há nenhuma palavra que signifique apenas azul: em russo, o céu e um mirtilo são de cores diferentes.

Um elegante experimento neo-whorfiano apresentou a falantes de russo vários tableaus com três quadrados em uma tela de computador: um no topo, os outros dois logo abaixo. Os quadrados eram de vários tons do que chamaríamos de azul, aparecendo em vinte gradações, indo do azul escuro ao azul claro. Em cada tableau, um dos quadrados embaixo era do mesmo matiz que aquele do topo, enquanto o outro debaixo era de um matiz diferente. Foi dada uma tarefa aos russos: apertar um botão quando identificassem qual quadrado debaixo tinha o mesmo tom que o de cima.

borodistky
Fonte: Winawer et alli (2007, p. 7781)

Deve ter sido bem chato fazer esse pequeno teste, mas os pesquisadores estavam tentando descobrir algo: se ter diferentes termos para azul escuro e azul claro teria qualquer efeito na percepção – isto é, a língua poderia moldar o pensamento? E eles descobriram que sim. Por exemplo, se o quadrado de cima era azul escuro e o quadrado debaixo de cor diferente era um tom ou três mais à frente na sequência de azul claro, então os russos apertavam o botão rapidamente, enquanto que se o quadrado alvo era apenas um tom diferente de azul escuro, o tempo médio para se apertar o botão era maior. O mesmo se dava ao contrário: se os quadrados compatíveis fossem azul claro, então os russos apertavam o botão sem hesitar se o alvo fosse um dos tons escuros, mas demoravam se esse não era o caso.

Os falantes de inglês, por sua vez, tiveram o mesmo tempo de resposta onde quer que o quadrado alvo caísse no espectro de azul: um quadrado alvo claro não os acelerava quando os quadrados compatíveis eram escuros, e um quadrado alvo escuro não os acelerava quando os quadrados compatíveis eram claros. Isso mostra, de um modo realmente engenhoso, que ter termos diferentes para azul claro e azul escuro faz com que as pessoas diferenciem essas cores mais rapidamente do que as pessoas cujas línguas possuem um único termo para azul – e mesmo quando ninguém pergunta a elas sobre as palavras em questão ou mesmo as usa.

No caso de alguém tentar encontrar, digamos, alguma razão cultural para os russos serem mais sensíveis à diferença entre azul escuro e azul claro do que nós, os pesquisadores fizeram outra versão do experimento, mostrando que a língua não é realmente o que direciona a diferença para os russos. No segundo experimento, os sujeitos tinham de não apenas distinguir o quadrado alvo, mas ao mesmo tempo deviam recitar uma sequência aleatória de números que eles há pouco tinham sido solicitados a memorizar. A energia mental necessária para fazer isso coloca um bloqueio temporário no processamento da linguagem, e nessa versão do experimento se o quadrado alvo era de outro tipo de azul não fazia mais diferença nos tempos de resposta. Assim, sem a linguagem, os russos não estavam mais sintonizados para a diferença entre o azul escuro e o azul claro do que alguém de Campinas.

Contudo, uma tendência atual defende que esse tipo de teste mostra que como sua língua é o faz ver o mundo de um modo particular. O lusófono, intrigado, imaginará como o mundo deve parecer aos olhos de alguém a quem azul claro e azul escuro são “mais diferentes” do que são para ele. A tentativa pode ser uma reminiscência de tentar imaginar uma quarta dimensão.

Mas há um problema. Não é que esse experimento de Jonathan Winawer, Nathan Witthoft, Michael Frank, Lisa Wu, Alex Wade, e Lera Boroditsky não seja extremamente inteligente, nem que ele não mostre que a língua afeta o pensamento; mas o fato é que batemos num obstáculo quando tentamos ir para além do experimento, abraçando a noção de que ele está nos dizendo algo sobre visões de mundo, ser humano e coisas do gênero. Especificamente, quando descrevi a diferença nos tempos de reação, usei termos vagos como rapidamente e demorar. Contudo, na realidade, para avaliar seriamente o que esse experimento significa além do mundo da pesquisa em psicologia, deve ficar claro qual era a diferença média de tempo de reação, dependendo para qual lado do espectro o quadrado alvo pendia. Era – Que rufem os tambores! – 124 milissegundos.

124 milissegundos! Quando os quadrados compatíveis eram mais escuros, se o quadrado alvo também estava no matiz escuro, então os russos apertavam o botão um décimo de segundo mais rapidamente do que se o quadrado alvo fosse do matiz claro. Eles não demoravam por meio minuto, ou mesmo um segundo inteiro, ou mesmo meio segundo. Na verdade, não podemos sequer chamar um décimo de segundo de demorar.

Agora, que há um efeito é ainda, por si só, um fato. Pense: entre os falantes de inglês, apenas por conta de uma diferença linguística, não houve nenhuma alteração nos tempos. Mas, baseados em que podemos tomar uma diferença de 124 milissegundos em tempo de reação como dizendo algo sobre a forma como os russos experienciam a vida? A língua afeta o pensamento? Aparentemente sim, mas, como tudo na vida, a questão é o grau. No estado corrente de nosso conhecimento, parece que goluboj é relevante para a alma russa mais vividamente em termos de preferências sexuais do que cores!

A intuição corresponde ao resultado de 124 milissegundos ao sugerir que não estamos lidando com nada parecido com lentes diferentes. Após aprender que o russo tem termos diferentes para azul escuro e azul claro, pareceria que estaríamos dispostos a se perguntar se isso significa que os russos veem o ovo de pintarroxo e um blazer azul marinho como mais distintos em cor do que os falantes de inglês. Contudo, para muitos falantes de inglês, ou, eu fortemente suspeito, mais gente ainda, a reação é uma certa perplexidade ver que uma língua faz uma distinção como essa. “Por que uma língua precisaria fazer isso?”, podemos nos perguntar. “Certamente sabemos que a cor por detrás das estrelas na bandeira americana é nitidamente diferente do azul bebê – mas nós não precisamos de palavras diferentes para essas cores!” Certamente foi como eu me senti quando aprendi russo pela primeira vez.

Nesse aspecto, há várias línguas que não fazem distinções de cores que um falante do inglês consideraria fundamental; nesse caso, para elas, o inglês parece tão desnecessariamente obcecado quanto o russo. O povo herero da Namíbia, na África, fala uma língua em que um termo se refere tanto a verde quanto a azul. Ao descobrir que outras línguas possuem palavras separadas para verde e azul, os hereros não se perguntam se os ocidentais veem um mundo diferente do deles. Ao contrário, eles estão bem conscientes da diferença entre a cor de uma folha e a cor do céu – vivendo na terra em que vivem pareceria muito difícil evitar notá-lo uma vez ou outra. Eles acharam a ideia de uma língua ter diferentes palavras para aquelas cores, quando aprenderam que essas línguas existiam, ligeiramente boba.

Alguns ainda poderiam estar abertos a uma ideia de que, em algum nível, há uma escala de sensibilidade a cores na qual os russos estariam mais altos, os falantes de inglês no meio, e os hereros lá embaixo. Essa escala soa desagradável a muitos de nós – e veremos quão frequentemente as implicações whorfianas nos levam a nos depararmos com proposições similarmente incômodas, quando não somos nós que os estudos retratam como fascinantemente sem graça. Parece dificilmente irrelevante que os hereros, em termos de vestuário e decoração, deem todos os indicativos de revelar as cores – incluindo os verdes e os azuis – tanto quanto os ocidentais. Apesar disso tudo, pode ser que um experimento mostrasse que a língua herero liga o cérebro de alguma forma que deixa seus falantes alguns milissegundos mais lentos na distinção entre um giz de cera azul esverdeado e um verde azulado do que uma pessoa comum nas ruas de Chicago ou Stuttgart (o alemão possui grün e blau). Mas nesse caso, nós nos distanciamos de qualquer discussão significativa das diferenças nas almas.

Porém, é a alma o que nos vem à mente como resposta para declarações do tipo: “Mesmo que soe estranho, nossa experiência de um quadro de Chagall na verdade depende em alguma medida de nossa língua ter uma palavra para azul”. Essa é uma das frases mais ressoantes no editorial baseado no livro de Deutscher, que atinge quase 5 mil ocorrências no Google no momento em que escrevo isto. Como tenho atestado, a mídia (incluindo os editores) tendem a encorajar os acadêmicos a colocarem as coisas daquela forma, numa busca interminável por “olhos” (contagem de cliques). Há tantos livros por aí; um tem que fazer um pouco de auê. Editorais – e contracapas – divulgando o livro sempre terão uma retórica entusiasmada que praticamente nenhum texto conseguiria de fato incorporar.

Contudo, frases como aquela sobre o Chagall possuem mais influência do que o próprio livro, especialmente considerando o inerente frisson da hipótese de Whorf, além de elas implicarem algo que os estudos simplesmente não fazem. A falta de uma palavra para azul realmente possui impacto na forma como alguém experiencia um Chagall, mais do que a educação, a experiência, ou mesmo a mera variação entre os indivíduos na receptividade da arte? O editorial diz apenas “em alguma medida”, mas, vamos ser sinceros: uma expressão como essa se perde no meio do apelo picante da afirmação básica. A questão real é “em que medida”? 124 milissegundos?

 

Literatura e vaidade

O Orígenes Lessa mandando a real na voz de uma personagem simplona.

Maria Rosa, mulher de Campos Lara, o poeta protagonista de O feijão e o sonho, não entende porque o marido não possui pretensões monetárias com a sua poesia. E o acusa de escrever e publicar só por vaidade:

“- Sim, você e sua rodinha não passam de uns convencidos, de uns pretensiosos. Nem todos levam a vaidade para a roupa, mas nem por isso são menos vaidosos do que qualquer mulherzinha. Eu já compreendi bem os  tais artistas que você traz aqui. Todos são uns portentos. Cada qual é mais ilustre. Não passam cinco minutos sem que se elogiem da maneira mais ridícula. ‘Que gênio! Que grande poeta você é!’ ‘Não, gênio é você, poeta é você.’ E o pior é que todos acreditam. Dia em que ninguém te elogia você até emagrece.” (Cap. 26)

Lara fica desnorteado com as palavras da mulher. Talvez porque lá no fundo ele saiba que ela está falando a verdade. Ele só pensa em escrever. Por isso sua vida financeira é um desastre, pois ele é absurdamente irresponsável com suas obrigações profissionais como professor, ou mesmo nas outras profissões que tenta exercer. Não acho que ele tenha a ilusão de viver só da escrita. É outra coisa. É como se as obrigações cotidianas fossem irrelevantes e pequenas diante da obrigação da literatura. Flaubert tinha um pouco disso, de achar a vida cotidiana um saco, e só se sentir feliz e completo escrevendo. Kafka também. Kafka não era vaidoso, acho, visto que publicou tão pouco em vida (mas, sei lá, né… vai que é o oposto?).

Lara é um sonhador, mas um sonhador ingênuo, de um Brasil ainda rural, analfabeto e provinciano, com uma população que consumia filosofia e literatura nos jornais e nos almanaques. Livro era luxo. Sua família passava necessidade, mas ele tinha livros em casa. No fundo ele é um retrato do país em que vive, e de sua classe. Não sabemos nada de suas origens familiares, mas ele é incapaz de perceber que ser um professor de merda é o que faz com que a sua realidade seja o que é: miserável e tosca. Claro, ele não a produz, mas nada faz para que ela mude.

O romance atinge o clímax quando começa a circular na cidade o boato que Lara ofendeu o vigário da paróquia. O padre já tinha fama de pedófilo e tudo que Lara fez foi perguntar durante a conversa no bar por que ninguém fazia nada. Indignado com a calúnia, ele confronta os frequentadores do bar, particularmente um advogado, Matraca, famoso por ser linguarudo. O padre chega naquele momento e tudo se acerta. Lara não baixa a cabeça e intima Matraca a assumir o que disse, mas ele se cala.

Lara e a família voltam pra São Paulo. Além disso, ele também deixa a poesia de lado e investe na prosa. Aos poucos vai ganhando notoriedade e até algum dinheiro. Sua vida melhora um pouco, pois consegue trabalho em um jornal e seus filhos ganham bolsa em uma escola privada. Nesse ponto da narrativa parece que tudo se encaminha para um final tranquilo, como se a vida fosse aquilo ali mesmo.

Aí chegamos num ponto de virada. Vem a Segunda Guerra Mundial e também uma espécie de virada estética. Os jovens veem Lara como o representante do status quo e passam a atacar a sua literatura. Mesmo amigos que antes o elogiavam, agora o desacreditam. Então ele se dá conta que passou a vida inteira lutando por prestígio, por reconhecimento, pra construir uma obra que se desmanchava diante dos seus olhos. E o preço disso tudo foi ter deixado sua família passar necessidades. Seus filhos eram agora adolescentes e ele mal os conhecia.

Na superfície é um romance sobre o dilema do sujeito que quer se dedicar à arte num país como o nosso, e num Brasil pré-industrial ainda, sem uma classe média urbana consumidora de literatura.  Mas é também um romance sobre vaidade, sobre o preço do sucesso, e como esse sucesso é fugaz e ilusório.

Rocha Lima e as qualidades da boa prosa

No capítulo XXXI de sua Gramática Normativa, Rocha Lima nos presenteia com dicas de escrita, listando as “qualidades da boa prosa”: correção, concisão, clareza, precisão, naturalidade, originalidade, nobreza e harmonia. Pois é, nada que a falta de uma boa teoria de texto/discurso não pudesse ser preenchida com o saber empírico e assistemático.

Antes de falar de correção, ele dá uma cutucada nos modernistas: “É vezo moderno – moderno e elegante – pregar o desamor da tradição gramatical. Dilapidada metodicamente por certa corrente literária deste inquieto século XX, vai a língua portuguesa decaindo, em algaravia bárbara, ao nível de caçanje miserável.” (p. 501)

(É irônico esse ‘moderno e elegante’ entre travessões, como se o adjetivo ‘elegante’ qualificasse uma moda, e como todas as modas, passageira?)

Ao entrar no tema da correção, que foi o que me chamou a atenção, lemos o seguinte, no trecho em que ele discute como as qualidades podem entrar em conflito. Neste caso, para ele, a precisão (a busca pela palavra exata) não pode colidir com a nobreza: “[…] se estivermos, por exemplo, procurando reproduzir, num romance, um diálogo entre personagens ignorantes, não nos será lícito, por amor da nobreza, fazê-las falar sem o pitoresco expressivo da sua linguagem inculta. Isto sem descer, é claro, a torpezas verbais indignas de fixação escrita. Seria confundir ‘linguagem inculta’ com o baixo ‘calão’ dos homens vis.”

Isso dizia o Rocha Lima já lá em 1962. Reforço: ‘torpezas verbais indignas de fixação escrita’. Ele deve ter tido um troço ao ler Macunaíma.

Somos também conservadores

É comum que gente por aí acuse os linguistas de serem libertários no quesito Norma Padrão e de pregarem o vale-tudo: não existe mais certo ou errado. Tem quem nos acuse também de negar o lugar da literatura brasileira na escola. O Sírio Possenti vive reclamando disso (nesse post ele contra-argumenta Ferreira Gullar), pois quem acusa os linguistas desse tipo de posição nunca cita um autor para dar credibilidade ao que está dizendo (se cita, como aquele arrogante da Veja que lê os linguistas do jeito que quer, menciona, não cita textualmente, justamente porque sabe que está mentindo, e que o que está atacando não são as ideias, e sim o fato de o linguista x ou y ser de esquerda). Na verdade, se os linguistas que tratam de ensino de gramática fossem lidos com cuidado, se perceberia que o que eles defendem é justamente o ensino da Norma Padrão.

Coletei rapidamente algumas citações para mostrar isso:

Sírio Possenti (Por que (não) ensinar gramática na escola, 1996: 17): “Talvez deva repetir que o adoto sem qualquer dúvida o princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.”

Um pouco mais adiante o autor menciona o papel da leitura de diferentes tipos de textos no ensino fundamental e “com muito destaque” de literatura. E no ensino médio, os alunos deveriam entrar em contato com a literatura contemporânea, os clássicos da língua, e os clássicos universais (mesmo que em versões adaptadas).

Carlos Alberto Faraco (Norma culta brasileira, 2006: 157):

“A crítica à gramatiquice e ao normativismo não significa, como pensam alguns desavisados, os abandono da reflexão gramatical e do ensino da norma culta/comum/standard. Refletir sobre a estrutura da língua e sobre seu funcionamento social é atividade auxiliar indispensável para o domínio fluente da fala e da escrita. E conhecer a norma culta/comum/standard é parte integrante do amadurecimento das nossas competências linguístico-culturais, em especial as que estão relacionadas à cultura escrita.”

E sobre o papel dos textos literários (: 161): “[…] a leitura de textos literários é fundamental no universo de quem pretende dominar essa norma – neles, talvez mais do que em qualquer outro tipo de texto, é visível a diferença das linguagens e dos pontos de vista que ampliam nossos horizontes.”

Marcos Bagno (texto online): “nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.”

Irandé Antunes (Muito além da gramática, 2007: 101) “Vale a pena insistir numa questão central: a de providenciar para o aluno oportunidades de acesso ao padrão valorizado da língua […] Longe de qualquer teoria linguística a orientação de negar a todos os falantes esse aceso. O problema é discernir sobre o que faz parte desse padrão e adotar uma visão não purista, de flexibilidade, de abertura, para incorporar as alterações que vão surgindo […]”

Magda Soares (Linguagem e escola, 1987:78) : “Um ensino da língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade  que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” (O tiozinho da Veja deve se coçar todo quando lê coisas desse tipo)

Considerando tudo isso, eu me pergunto, contra quem Ricardo Cavaliere (A gramática no Brasil, 2014: 92) argumenta, ao afirmar que: “[…] uma semelhante linha de conduta acadêmica vem atribuindo ao texto literário, nos dias atuais, um certo teor de incompatibilidade com o ensino da língua, tendo em vista as naturais peculiaridades que o espírito de literariedade lhe conferem […] (ver também a conferência aqui)

Aliás, o texto todo em que Cavaliere critica os críticos é eivado de afirmações vagas do tipo “semelhante linha de conduta acadêmica”. Como assim, nobre acadêmico? Por que não citar quem faz afirmações dessa natureza? Talvez seja porque ninguém faz.

Paulo Coimbra Guedes em ‘A formação do professor de português: que língua vamos ensinar’ (2006), advoga justamente o papel da literatura brasileira no ensino de língua materna: “É a literatura brasileira que nos ensina que dominar a língua escrita não implica escrever só o que já foi escrito nem escrever só como já se escreveu.”

Sei lá, às vezes acho que é um pouco de preguiça, outro acho que é mau caráter mesmo, pois as pessoas que fazem essas acusações não são ignorantes, sabem do que estão falando (acredito, mas talvez eu esteja sendo ingênuo e elas sejam imbecis mesmo), e sabem também que estão lutando contra um espantalho da proposta (não a proposta real). No fundo, parece aquele medo reacionário frente à diversidade sexual, interpretada pelas pessoas de alma pequena como ‘agora todo mundo tem que virar gay’.

Só Augusto dos Anjos salva

A IDÉIA

De onde ela vem?! De que matéria bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe,
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica…

Quebra a força centrípeta que a amarra,
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No molambo da língua paralítica!

Sherlock Holmes e Watson discutem verossimilhança

Do conto ‘Um caso de identidade’ (Conan Doyle, Sherlock Holmes: obra completa, vol. 1, Nova Fronteira, 2014)

“- Meu caro amigo – disse Sherlock Holmes, quando estávamos sentados diante da lareira em seus aposentos na Baker Street -, a vida é infinitamente mais estranha do que qualquer fantasia concebida pelo homem. Não ousaríamos imaginar coisas que são meros lugares-comuns da existência. Se pudéssemos voar por aquela janela de mãos dadas, pairar sobre esta grande cidade, remover delicadamente os telhados e espiar as coisas esquisitas que estão acontecendo, as estranhas coincidências, os planos, os objetivos contrários, as maravilhosas cadeias de acontecimentos agindo através de gerações e levando aos resultados mais absurdos, isso tornaria toda a ficção, com suas convenções e conclusões óbvias, corriqueira e desinteressante.

-Não estou convencido de que isso seja verdade – respondi. – Os casos relatados nos jornais são, em geral, vulgares e desprovidos de imaginação. Nos relatórios da polícia o realismo chega a um limite extremo, mas o resultado não é, deve-se dizer, nem fascinante, nem artístico.” (p. 294)

E trago aqui Davi Arrigucci Jr. (Teoria da narrativa: posições do narrador. Jornal de Psicanálise, 31(57), 1998) só para o leitor cotejar com o que normalmente se entende por verossimilhança:

“A regra da verossimilhança é: sempre procure o impossível plausível, não o possível incrível. Isso quer dizer que uma coisa muito singular que só acontece comigo não dá boa literatura. Posso pensar: minha vida daria um romance. Não dá! O que dá um romance é uma construção das coisas que podem ser, e não necessariamente das que foram mas não têm poder de convencimento. As coisas que podem ser com tanta dificuldade pela sua singularidade são dificilmente aceitáveis como verossímeis. E a questão da literatura é o que pode ser.” (p. 37)