Notas de leitura: Esquinas

Meu amigo Caio Bona Moreira me enviou com sua mais recente obra, Esquinas (Micronotas, 2020), um conjunto de ensaios ou poemas em prosa sobre diferentes esquinas de Porto União e União da Vitória (duas cidades unidas, como seus nomes sugerem, mas separadas por um trilho de trem que secciona seus centros comerciais). Algumas são reais e icônicas (como a Av. Manoel Ribas com a av. João Gualberto) e outras são imaginadas (como as ruas Rimbaud e Jean Genet). É um pequeno “roteiro sentimental” das Gêmeas do Iguaçu.

Há uma expressão que me pegou logo nos primeiros textos, o ver. Caio é às vezes um voyer da cidade. É alguém que olha a esquina em alguns momentos de fora dela, e em outros, como no caso da Av. Cruz Machado/Av. Ipiranga, converte a própria esquina em testemunha:

“Daquela esquina, a antiga construção tudo viu e tudo sabe.” […] Ali, certa vez, concentrei meu olhar e contemplei emocionado um Aleph.” (p. 26)

Às vezes ele se coloca nela, como personagem também, e passa a relatar tudo que se passa, como se quisesse fotografar a vida que nela se expressa e que, ao transformar em palavra aquele acontecimento, o transforma em literatura (Av. Manoel Ribas/Carlos Cavalcanti):

“[…] paro entre a Manoel Ribas e a Carlos Cavalcanti e, numa tarde de janeiro, anoto o que vi.” (p. 67)

Não é apenas um documento ou uma tentativa de retratar o mundo (impossibilidade que está na própria origem da literatura: ela não é o mundo mas não há outro caminho pra ela senão cantar o mundo tal como o poeta o sente). Como Drummond, sua matéria é o tempo, mas não apenas o presente.

Há outra forma? Como não se contaminar pelo ambiente em que vivemos? Que pulsão (compulsão?) é essa que nos move a sentir a cidade pela palavra?

E eu diria que é isso o que Caio faz ao longo dos seus “cantos”. Ele é um poeta que canta a sua vila, e também a sente. E é essa sensação que quer nos passar (suas cores, suas vozes, seus personagens):

“Daí tantos jardins sempre bem cuidados de flores e ervas regados com terços, lágrimas, chimarrão, e novenas de Natal. O único macho a sobreviver ali é o de um casal de curucacas a zelar pela segurança da rua no alto de um pinheiro quase quadragenário, uma espécie de trono real, paranista ou para-raios.” (pág. 40, ruas Felipe Schmidt/Voluntários da Pátria)

E o que temos é uma pequena epopeia em prosa, algo bucólica, pois o trem (agora parado, apenas objeto decorativo, eventualmente reativado para passeios), os carros, ônibus, caminhões, motos e bicicletas passam bem pouco por essas esquinas, pois não interessa ao poeta o metal, a mecânica e o ruído. Da engenharia, interessa no máximo o ângulo de noventa graus, esse ponto de encontro de duas retas, mas que ao mesmo tempo que é encontro, permite que algo se esconda.

E ajudados pelo seu olhar, vemos e passeamos, por uma cidade que é a cidade da nossa infância e juventude, embora não seja mais também, pois se as esquinas ficam, os personagens que nelas agora passam já são outros (o bar da esquina da Manoel Ribas com a João Gualberto fechou faz poucos anos).

Para o leitor desavisado isso pode tirar o atrativo do livro. Mas não esqueçamos dos passeios que demos pela Nova Iorque de Henry Miller ou pelo Rio de Janeiro, levados pela prosa de Machado de Assis, João do Rio ou Rubem Fonseca. E também não esqueçamos de tudo aquilo que só vemos porque a literatura nos mostra.

p.s.: a qualidade das ilustrações de Raro de Oliveira podem ser admiradas já na capa do livro.

Impressões de leitura: O romance luminoso

Mario Levrero. O romance luminoso. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Comecei a ler esse romance por indicação do Daniel Galera na sua newsletter, dentesguardados [6] – para ele um dos melhores livros da última década. Como consegui uma cópia digital, não atinei para a dimensão física da obras: 648 páginas. Só me dei conta desse detalhe quando olhei o sumário e percebi que ele estava separado por meses e dias (quase os 365!) de todo um ano. E que além desse diário ainda tinha uma segunda parte, o romance em si. Pensei cá comigo: cara, que saco! 500 páginas desse maluco reclamando que tem que escrever um livro mas não escreve, que está com uma dor aqui, que sonhou com não sei o que lá, que ficou a madrugada baixando fotos de mulher pelada na internet, que ficou lutando com alguma esquisitice da programação do Word… que livro chato!

Esse era o Luisandro ali por volta das primeiras 30 páginas…

Mas por algum motivo eu não conseguia largar o livro. Ele me prendeu. Talvez pela qualidade da prosa. Uma prosa simples, direta, sem floreios ou grandes divagações sobre a vida. E se tem um negócio gostoso de ler é uma prosa assim.

(Não que eu não goste de divagações sobre a vida. Adoro Henry Miller. E tá aí um escritor que do nada começa a viajar e passa 20 páginas descrevendo uma súbita iluminação que teve enquanto tomava a décima dose de uísque no boteco com um maluco que conheceu há duas horas).

O tal do “Romance Luminoso” que o autor quer escrever aparece como vontade, como um desejo, uma obrigação que paira sobre ele. Mas Levrero, ou o seu personagem-autor-narrador não é um Bartleby que diz “prefiro não fazer”. Ele me parece querer fazer sim, mas só que está deixando para depois. Antes, precisa comprar uma poltrona nova, fazer ioga, configurar seu computador adequadamente, procurar pelos histórias de detetive para completar sua coleção, passear com a namorada e com as amigas, atender os alunos da sua oficina de escrita criativa… viver a sua vida, em suma.

O porém é que ele ganhou uma bolsa para concluir um romance que tinha iniciado anos antes, mas em vários momentos se pergunta se será capaz de concluir o projeto. Ele não me soa arrependido de ter pedido/ganhado a bolsa, pois poderia simplesmente devolvê-la, dizendo “não quero mais, não dou conta, não vou conseguir entregar o que prometi”. Não. O “Romance Luminoso” está como meta. E talvez seja isso um pouco que nos prenda na leitura do diário. A gente quer saber que horas esse cara vai começar a escrever o tal do romance luminoso, e o que há de “luminoso” nessa narrativa.

Nesse aspecto Alejandro Zambra, cita Clarice Lispector para interpretar o romance de Levrero: “digo o que tenho que dizer sem fazer literatura”, disse ela no conto Onde estivestes de noite. E é essencialmente isso que acontece no “romance”. Temos nesse livro o diário de um escritor de 60 anos que escreve sobre seus dilemas cotidianos: sobre o que está lendo, sobre o tempo, sobre o comportamento dos pombos no telhado do prédio do outro lado da rua, sobre a interpretação dos seus sonhos… ou nas palavras de Zambra: “para fazer literatura de verdade é necessário recorrer, como ele [Levrero] disse, à literatura fraudulenta. Romance sem romance; literatura sem literatura.”

O resultado não poderia ser mais divertido e esteticamente prazeroso. Não dá para analisar uma obra dessas com as categorias tradicionais (personagens, narrador, trama etc.). E como, mesmo assim, é um livro bom? Não sei. Só sei que é.

Objeto língua: algumas impressões

“Objeto Língua” é último livro publicado por Marcos Bagno. É uma coletânea de textos inéditos e alguns publicados em outros lugares, mas como ele esclarece na introdução, voltou a esses textos e fez algumas modificações neles.

Eu acho sempre ruim quando não se numeram os capítulos de livros, mas vá, lá, cada um com seus gostos. Isso é pra dizer que o livro tem 14 capítulos (sem contar a introdução e a conclusão) e o tamanho dos textos varia um pouco e o assunto deles também é diverso.

Os dois primeiros tratam da visão pessoal do Bagno sobre o tema da norma culta e seu ensino e discussão nas escolas. Minha impressão é que é mais bravata do que outra coisa o título do primeiro capítulo “A norma culta que se lasque!”, pois ele cita Carlos Alberto Faraco, cuja posição tem sido consistente e clara a esse respeito desde sempre: é preciso uma visão mais arejada sobre a norma padrão e seu ensino na escola, para que ela de fato se aproxime do uso culto das classes urbanas escolarizadas do país (estou citando de cabeça,  posso omitir ou suavizar algo). Creio que seja mais uma provocação, como faz Magda Soares no seu clássico “Linguagem e escola”: precisa aprender a norma culta? Aprender para quê? Só se for para lutar contra o sistema que oprime o pobre. (também cito de cabeça). Porque no final das contas é isso. Dizemos que o acesso aos bens culturais das classes mais altas é um requisito para se ascender socialmente. Bagno questiona essa premissa. Ele em parte tem razão, embora o domínio de outra variedade de língua certamente seja um ganho intelectual, mas só isso não garante nada.

É um tema espinhoso e eu gosto desse tipo de provocação, pois além de lutar pelos méritos da norma culta real, Bagno faz questão de escrever usando ELA (como eu também gosto de fazer, pelo menos aqui, onde escrevo como quero).

Os capítulos que eu mais gostei no livro são os que tratam de tradução. Num o autor resenha um estudo que comparou a tradução das tiras completas da Mafalda publicadas em Portugal e no Brasil, cotejando as traduções com os sistemas pronominais das duas variedades de português, especialmente nesse aspecto. Ele discute o conceito de “oralidade fingida”, mostrando que as traduções colocam na boca dos personagens palavras e estruturas que não são nem de perto representações da fala brasileira contemporânea.

Os capítulos em que ele discute o que é uma língua também são bons. Assim como ele faz na sua “Gramática de bolso do português brasileiro”, a discussão sobre o que é uma língua passa pela discussão de aspectos políticos e ideológicos que recobrem o tema. Certamente não é uma questão que possa ser resolvida objetivamente. Mas talvez como resguardo, tanto na gramática quanto no capítulo “Quando surge uma língua nova?” ele lista uma série de aspectos gramaticais (fonéticos e morfossintáticos, especialmente) para mostrar que há “evidências concretas” de que as línguas são diferentes no plano objetivo. Esse movimento me parece algo como: tá, mesmo que você não compre minha argumentação de que a questão é política, veja que temos argumentos objetivos também para afirmar que o português brasileiro É uma língua diferente do português falado em Portugal.

Claro, essa argumentação passa também por agredir e desmontar o ideário de que A língua portuguesa seja a variedade codificada nas gramáticas, a norma-padrão (que não é a língua materna de ninguém, e, portanto, não poderia ser considerada um dialeto ou uma variedade no sentido sociolinguístico).

Na introdução Bagno cita Saussure (“o ponto de vista cria o objeto”) para deixar claro que o que une os textos é que eles expressam sua visão da língua. Tenho a impressão às vezes que esse subjetivismo e, por que não, relativismo, são nocivos ou uma espécie de armadilha que a gente faz pra si mesmo sem perceber. Embora ele fale em “evidências concretas”, até que ponto existem “fatos” se de saída o pesquisador afirma que é o ponto de vista que cria o objeto? Eu não poderia, do meu ponto de vista, dizer que essas variações de pronúncia entre o português brasileiro e o europeu sejam coisas menores? Afinal, do meu ponto de vista, a língua é o codificado na escrita, onde vemos diferenças desprezíveis. Lemos Saramago, Gonçalo Tavares ou Valter Hugo Mãe tranquilamente, não? Embora eu tenha cá pra mim que se os portugueses forem ler um Daniel Galera (especialmente as primeiras edições dos primeiros livros), um Geovani Martins ou um Ferréz a dificuldade será maior para eles.

Se do seu ponto de vista a língua é a fala, mas do meu é a escrita, por que a sua posição é mais “objetiva” do que a minha?

Tem muito de ideológico nesse debate, claro. Tentar reduzir ele a uma questão meramente epistemológica seria reducionismo da minha parte e aqui nesse espaço não vou ter tempo nem paciência para aprofundar a discussão. Só pra tentar fazer uma espécie de conclusão, eu sinto que essa discussão do “ponto de vista cria o objeto” deixa de mostrar que as línguas possuem sim uma face objetiva que é descrita e apreendida pelo estudo linguístico. Se a diferença entre o fone e o fonema é o ponto de vista, não podemos negar que exista uma realidade objetiva nos fones (a gente capta a realidade física deles nos espectrogramas e oscilogramas, não?) e que, embora seja uma abstração, os fonemas são uma tentativa teórica de entender e explicar o que acontece com os sons dentro do sistema gramatical das línguas.

 

Um pequeno livro sobre linguagem e linguística

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Esse é o primeiro livro que leio do David Crystal. Ele é famoso por ser um prolífico divulgador da linguística. Em português temos algumas traduções de livros seus, como ‘A Linguística’ (1973) e ‘A revolução pela linguagem’ (Zahar, 2006) e ‘Dicionário de linguística e fonética’ (Zahar, 1988).

O livro de que falarei está traduzido como Pequeno tratado sobre a linguagem humana (Saraiva, 2012, trad. Gabriel Perissé), e não sei por que diabos eu fui começar minha incursão na obra do Crystal justamente por ele. Quer dizer, acho que sei. Na verdade, tenho me interessado (e tentado fazer, além de escrever só aqui) pela divulgação científica em linguística – portanto, nada como ler o mestre – e o título do livro me atraiu, confesso.

David Crystal é formado em Inglês pela University College London. Trabalhou por vários anos na University of Reading e no momento é professor honorário de linguística na University of Wales. Mais sobre ele e suas obras pode ser encontrado na sua página.

A Little book of language (UNSW Press, 2010, 261 págs.)  é uma coleção de 37 textos curtos, que cobrem tópicos bem variados.

Os sete primeiros capítulos tratam da aquisição da linguagem. Começando com o domínio dos sons, passando pela estrutura das palavras, pela oração e chegando na conversação. Em seguida ele entra no aprendizado da leitura e da escrita, discutindo alguns aspectos da ortografia no capítulo 10.

Em seguida o livro passa a discutir aspectos variáveis, como noções de dialeto, sotaque e bilinguismo. Esse tema volta posteriormente em capítulos como o 21 e 22, que tratam de mudança linguística e variação linguística, respectivamente.

Depois dessa primeira metade, que parece ter mais unidade, a segunda une uma série de temas como as origens da fala (cap. 15) e da escrita (cap. 16), línguas de sinais (cap. 18), a morte das línguas (cap. 20); um subgrupo de capítulos trata de questões lexicais: gírias (cap. 24), dicionários (cap. 25), etimologia (cap. 26) e nomes de lugares (cap. 27) e nomes de pessoas (cap. 28). Como é um livro de divulgação, não espere grandes profundidades no tratamento desses temas.

O mesmo acontece em outros capítulos em que discute alguns temas mais complexos, que, acho eu, por serem interessantes, poderiam receber um tratamento mais aprofundado. É um livro de divulgação, não esqueçamos. Portanto, não chega a ser um demérito a forma como ele discute a expressividade (cap. 33), o politicamente correto (cap. 34) e o uso da língua na literatura (cap 35).

Como os capítulos são curtos, cinco e sete páginas em média cada um, é de se esperar que os temas sejam tratados superficialmente. O estilo dele é envolvente. Não perde tempo com termos técnicos (só num caso ou outro) e suas explicações são bem claras. Pensando no meu background, o livro não trouxe grandes novidades, mas suponho que um leigo ou um aluno de letras ali nos primeiros semestres certamente achará livro informativo.

 

 

Resenha: Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky

GUIMARÃES, Maximiliano. Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. 391 p.

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Como de praxe, farei uma resenha informal de um livro que li recentemente e de que gostei muito. Os fundamentos da teoria linguística de Chomsky foi escrito, julgo eu, pelo linguista brasileiro mais capacitado para tal tarefa. Maximiliano Guimaraes – graduado pela Universidade da Bahia, com doutorado na Universidade de Maryland, e hoje professor na Universidade Federal do Paraná – é um pesquisador que tem se mostrado interessado não apenas na técnica para análise dos dados, mas também em questões, digamos, mais teóricas e epistemológicas da abordagem, como revela sua produção. O livro demonstra que ele transita tranquilamente pelas várias facetas que o modelo gerativista adotou ao longo do tempo. O que nos dá a primeira qualidade do livro: é um passeio histórico pelas preocupações teóricas de Noam Chomsky e de outros pesquisadores engajados no empreendimento gerativo, que como o autor esclarece, não é obra de um homem só. O livro faz parte de uma coleção digna de todos os louvores. Gabriel Othero e Sérgio Menuzzi estão editando uma nova geração de clássicos na linguística brasileira.

O livro está organizado em 6 capítulos. O primeiro, na realidade, é uma introdução estendida e o último é a conclusão. O segundo é uma apresentação de uma série de noções fundamentais para o gerativismo: (a)gramaticalidade, competência e desempenho, Lingua-I e Língua-E etc. O terceiro capítulo, me pareceu, é quase uma história do modelo e serve para nos mostrar como as preocupações de Chomsky sempre foram as mesmas. O quarto capítulo trata de discutir uma crítica comum ao gerativismo: o sintaticocentrismo do modelo e a relação da sintaxe com os componentes sonoro e semântico da gramática. O capítulo que encerra o livro vai discutir alguns temas sobre aquisição da linguagem, como o argumento da pobreza de estímulo (o tema mais profundamente discutido no capítulo, também chamado de o problema de Platão) e o problema que ele chamou de problema de Borges (a partir do conto de Jorge Luis Borges, Funes, el memorioso, que narra o infortúnio de um indivíduo que é capaz de memorizar todos os detalhes do que experencia), tendo como pano de fundo a natureza da Gramática Universal. O problema de Borges serve como metáfora para ilustrar o desafio que uma criança teria se não fosse guiada por algum dispositivo cognitivo para a aquisição da linguagem como a Gramática Universal.

Uma das características do livro, para além do rigor na apresentação das noções e da vasta bibliografia que o autor cita, é o diálogo com os críticos. Principalmente nos capítulos iniciais e no capítulo final. Guimarães tem a preocupação clara de rebater algumas críticas, para ele infundadas, que são feitas por alguns linguistas brasileiros. Por exemplo, na seção 2.3 responde às críticas que Marcos Bagno de que o falante-ideal chomskyano é uma figura mítica sem correspondente na realidade, já que abstrai da língua todos os fatores extralinguísticos que a constituem, com citações do próprio Chomsky, em que ele justifica essa escolha pela idealização. Embora já existam livros com esse propósito – como o excelente Curso básico de linguística gerativa, de Eduardo Kenedy (Contexto, 2013) – esse segundo capítulo é uma baita introdução ao gerativismo.

Não se engane. O livro não é uma introdução. Como o próprio autor esclarece no primeiro capítulo, seu livro não é uma introdução técnica à sintaxe, é antes um complemento, que eu diria mais epistemológico a introduções técnicas, como o Novo Manual de Sintaxe (Mioto; Figueiredo-Silva; Lopes. Contexto). Citando Guimarães (p. 16)

Meu objetivo é ajudar o leitor a compreender Chomsky num sentido complementar
a saber manipular o aparato técnico-analítico aplicável a dados. Há vários modos de se fazer teoria e análise gramatical. Por que alguém deveria adotar ou rejeitar o modo chomskyano de fazê-lo? Para tomar partido, é preciso conhecer minimamente o objeto de estudo, os objetivos, os métodos, as premissas, e as bases empíricas e conceituais nas quais o paradigma chomskyano se sustenta.

Ou seja, a leitura do livro pressupõe pelo menos familiaridade com a análise sintática gerativista e uma introdução à linguística geral. Guimarães também tem o cuidado de dar crédito às ideias (o que muitas vezes fica obliterado em livros dessa natureza) e de oferecer leituras adicionais, a todo momento indicando ao leitor referências.

*Para o leitor interessado em uma resenha mais completa e detalhada, Alessandro B. Medeiros (UFRJ) escreveu uma na revista LinguiStica (UFRJ), v. 13 (2), 2017.

Linguística para quem?

A gente lê por alguns motivos: para aprender com o texto, para tirar dele uma informação e por passatempo, prazer. O livro do Gabriel de Ávila Othero, ‘Mitos de Linguagem’ (Parábola, 2017) devia ser lido por prazer. Mas, a minha experiência me diz que os capítulos do livro serão copiados, lidos e discutidos nos cursos de Letras (talvez em outros, quem sabe) por esse país afora. É muito pouco para um livro dessa natureza, ele deveria pular os muros da universidade e ser lido nas escolas e por curiosos em geral.

Tem altos debates em congressos e publicações especializadas querendo entender por que os linguistas são tão pouco ouvidos ou consultados em debates sobre linguagem na sociedade. A razão, na minha modesta opinião, é que só se escreve introdução à linguística para servir de manual para aluno de Letras (é uma produção bibliográfica pra auto-consumo). Ninguém escreve pra ser lido por professores ou leigos em geral. (Tem poucos, muito poucos na academia que tentam fazer isso). Claro, sempre tem que vá dizer: peraí, meu, quem é que tá interessado em saber sobre pressuposição a não ser aqueles que estudam pressuposição? O problema não é escrever linguística para consumo próprio (apenas para alimentar a indústria do livro que só circula na universidade), o problema é escrever só com esse objetivo.

Voltando ao livro, o barato dele é tocar em temas que a gente não encontra facilmente em outras publicações introdutórias por aí. O livro está organizado em torno de 10 mitos, isto é, concepções equivocadas que os leigos possuem sobre a linguagem. O primeiro capítulo discute o mito “as mulheres falam demais”.

Esse mito é interessante, pois se conecta com o momento em que vivemos em que se discute tanto o papel da mulher e as violências que sofrem. A interrupção (já me peguei fazendo isso), a explicação (masplaining), ou dar mais atenção ao que os meninos falam (como professor num curso em que a maioria é mulher, é difícil diagnosticar isso, mas pode ser que aconteça). Esse tipo de discussão é importante por mostrar atitudes que temos que (nós homens) somos incapazes de perceber que são violências dissimuladas – a ministra do supremo Carmen Lúcia reclamou disso semanas atrás.

Tem outros mitos legais debatidos: ‘a gramática do português não tem lógica’; ‘ninguém fala o português correto’; ‘a língua portuguesa é uma das mais difíceis do mundo’; ‘a ortografia do português é cheia de exceções’; ‘todo mundo tem sotaque, menos eu’. Esses capítulos tratam especificamente de questões relacionadas com a nossa língua. Eu gostei particularmente do capítulo que envolve a lógica (ou a falta dela) da gramática. Os exemplos de definições problemáticas são bem ilustrativos dessa percepção. Um dos problemas é que a gramática escolar ainda se vale de uma metalinguagem que nos foi legada por gregos e romanos. Todos estamos de acordo que coisas como ‘pronomes’ existem em nossa língua. A questão é que definir a classe como ‘a palavra que substitui o nome’ talvez não seja a melhor definição; e que talvez nem tudo que esteja dentro da classe seja pronome.

Como disse o Mattoso Câmara Jr., as línguas humanas tem uma lógica diversa da lógica ordinária. E é tarefa do linguista descobrir essa lógica. Claro, vai ver a gente ainda não descobriu a lógica do funcionamento de algumas regras do português, e tem outras, claro, que são pura invencionice de gramático, como a discussão sobre os porquês, no capítulo que trata da ortografia.

O capítulo é muito bom, discutindo dois aspectos que explicam porque falamos as palavras de um jeito e escrevemos de outro: a fonologia e a etimologia. Nossa escrita é uma tentativa de representar os sons, e ao mesmo tempo quer preservar a herança lexical latina. Não dá pra respeitar 100% as duas coisas. Claro, ele ainda podia ter citado o fato de que no caso português, o Vocabulário Ortográfico elaborado pela Academia Brasileira de Letras é um guia para a grafia das palavras, e que o Acordo tem mais de político que de linguístico. Logo, tem um baita grau de arbitrariedade na decisão sobre a grafia de uma palavra.

Um segundo grupo de textos debate mitos relacionados com conhecimento linguístico geral: ‘a língua dos índios é rudimentar’; por que é difícil aprender uma língua estrangeira depois de adulto; a comunicação animal; a eficácia de tradutores automáticos. Gabriel mostra com detalhes como o mito envolvendo as línguas indígenas é infundado. Não vou entrar nos outros capítulos para não me alongar muito. Acho que os assuntos deles já mostram que são interessantes.

Carlos Alberto Faraco, na conferência de abertura do Congresso da Abralin em março deste ano na UFF, em Niterói, falou justamente da relação entre o conhecimento acadêmico e o conhecimento popular. O papel da ciência é de esclarecer o debate público e político (na medida em que decisões políticas baseadas em argumentos racionais trazem melhorias para a sociedade como um todo). No caso da linguística, livros como os do Gabriel cumprem um papel importante nesse diálogo. Ele é escrito para apresentar de maneira didática questões e resultados de pesquisas que dificilmente estariam acessíveis para um público mais amplo, mesmo para estudantes de Letras.

 

Lendo Conan Doyle

Não sei por que demorei trinta anos pra ler as histórias do Sherlock Holmes. Talvez algum preconceito bobo, talvez alguma outra urgência de leitura, sei lá. Talvez tenha sido melhor assim. Acho que a gente tem que estar na idade adequada pra ler certos livros. De que me adiantaria ter lido Madame Bovary aos 18? (Li aos 28). Vai ver eu li na adolescência e não me lembro. Por isso eu tinha a sensação de que devia pra mim mesmo a leitura das aventuras da dupla saída da mente de Arthur Conan Doyle. O que segue abaixo são notas de leitura, antes de qualquer coisa (se é que posso chamar disso as frases soltas abaixo).

O narrador é sempre o Watson. Apenas em Histórias de Sherlock Holmes (1927) há duas histórias narradas por Sherlock. Isso cria efeitos interessantes, pois Watson possui uma óbvia admiração pelos talentos de Holmes e a maioria dos contos começa com o narrador dizendo que aquele é um dos casos mais esquisitos, bizarros ou interessantes/curiosos que o detetive já tinha enfrentado. A minha impressão é que Watson é sempre acessório nas histórias. Algumas poucas vezes ele é usado como instrumento ou como isca. Acho que apenas em O cão dos Baskerville o seu papel na história é mais decisivo. Na maioria delas, se Watson não estivesse lá, não faria diferença. De qualquer modo, Doyle criou um dos personagens mais cativantes da literatura universal e o fato de gostarmos dele (tá, acho que gostamos do Watson também) ainda hoje diz alguma coisa sobre a qualidade da sua literatura (embora os méritos narrativos sejam discutíveis: é sempre a mesma estrutura, clichês, Watson e Holmes não possuem grandes dilemas morais etc.).

Digamos que seja o espírito do tempo. Mas a arrogância e superioridade de Holmes e Watson é algo marcante em muitas histórias. Principalmente se dela possuem papel decisivo negros, sulamericanos ou indianos. Invariavelmente são retratados em comparação a animais, são chamados de selvagens, intempestivos e pouco racionais. Tirando as mulheres (geralmente muito bonitas e jovens), os homens são feios e grotescos.

Falando em mulheres, Watson se casa num dos primeiros livros (O sinal dos quatro? Ou Um estudo em vermelho?) e depois sua mulher raramente é mencionada. Watson destaca em vários momentos que Holmes não gosta de mulheres (os motivos são variados: pouco confiáveis, passionais, imprevisíveis, não racionais etc.). Já Watson parece se impressionar facilmente com a beleza das mulheres que cruzam o caminho deles.

Mas talvez seja impressão minha. Holmes casar só lhe traria problemas, eu acho. Como primeiro super-herói da literatura, ter que lidar com os afazeres de uma vida familiar só complicaria sua vida (por isso os super-heróis não casam). Seus inimigos poderiam usar sua mulher e filhos como alvo, por exemplo.

Há também uma série de traços que tornam Holmes pitoresco. Nos primeiros livros ele ainda usa cocaína. Depois isso desaparece. Talvez seja a influência de Watson, que reprovava o costume, ou a mudança de valor social no uso da droga. Outra coisa que notei, a famosa frase, “elementar, meu caro Watson” nunca aparece nos livros. Ela aparece uma vez, e sem o “caro Watson”. Na verdade, segundo pesquisei, ela foi criação de Edith Meiser, que escreveu The New Adventures of Sherlock Holmes entre 1939 e 1947 para um programa de rádio da BBC. O último livro que Conan Doyle publicou coligindo as histórias de Watson e Holmes foi publicado em 1927. O autor faleceu em 1930.

Não há grandes reflexões filosóficas. O narrador de Watson é objetivo e sabe criar a aura de mistério que uma boa história policial precisa. Embora, o narrador claramente narra coisas que testemunhou e cujo desfecho lhe é conhecido. Apesar disso, há trechos legais, como esse, em que falam de um homem que foi procurar Holmes, na última história de Histórias de Sherlock Holmes (1927):

“- Uma criatura patética, inútil e alquebrada.

– Exatamente, Watson. Patética e inútil. Mas a vida não é toda ela patética e inútil? A história dele não é um microcosmo do todo? Nós estendemos a mão. Nós agarramos. E, no final, o que é que fica em nossas mãos? Uma sombra. Ou pior do que uma sombra, a miséria.” (p. 405.)

Cordilheira (Daniel Galera)

Eu acho que tenho um problema com sinopses, porque elas me contam do que trata o livro, mas sempre parecem me enganar, pois vou ler o livro e não encontro o que a sinopse me diz. Como nessa de Cordilheira, de Daniel Galera (Companhia das Letras, 2008): “Recém-saída de um relacionamento amoroso e ainda sob impacto do suicídio de uma amiga, uma escritora resolve aproveitar o lançamento da tradução argentina de seu romance, considerado pelo público e pela crítica uma das melhores surpresas da nova literatura brasileira, para passar uma temporada em Buenos Aires.” (do site da Companhia das Letras). “Impacto” lendo o romance não senti impacto algum. Na verdade, Anita, a personagem principal, não parece se impactar com muita coisa.

Depois de ter lido o ensaio sobre a personagem de ficção de Autran Dourado (no Poética do Romance), não leio mais querendo que os personagens sejam “reais” ou “verossímeis”, me basta que sejam coerentes com aquele universo criado pelo autor. Anita me parece um personagem assim, embora por vezes decidida, como na obstinação de se tornar mãe, ela se deixa levar por algumas situações, como quando transa pela primeira vez com Holden. E é esse o fio condutor da narrativa, o desejo de Anita de ser tornar mãe, algo que parece insensato aos olhos das amigas. Passar uma temporada em Buenos Aires me pareceu uma espécie de escape de tudo que ela vinha vivendo, do relacionamento chato, das amigas intrometidas mas tão confusas quanto ela.

Em Buenos Aires Anita conhece Holden. Ela aos poucos vai descobrindo que todos os amigos de Holden possuem personalidades construídas a partir de livros que eles mesmos escreveram ou que outras pessoas escreveram. Cada um tem o seu livro e precisa cumprir o destino do seu personagem, seja cometer assassinato ou suicídio. E essa talvez seja a discussão mais interessante dentro do livro, apesar de todo esse papo de “transformação” que a orelha do livro nos vende. Não vejo Anita crescendo em nenhum momento, vejo apenas uma mulher obstinada em engravidar, só; que renega o próprio livro e não parece muito preocupada com o que vai fazer depois que conseguir engravidar e o filho nascer. Ela é uma mulher do presente. Em várias cenas Holden e os amigos discutem essa relação entre a vida e a literatura. Anita, como autora, pensa que autor e personagens criados não possuem relação alguma. Já Holden e seus amigos acreditam que a literatura só faz sentido quando é vivida. E eles vivem em função disso, em função dos personagens que criaram para si mesmos ou que escolheram. Claro, podemos também nos perguntar até que ponto Anita é a Magnólia do seu livro, ou se de alguma forma inconsciente ela vai se transformando na protagonista do livro que foi para Buenos Aires lançar, ou pelo menos adquirindo os seus dramas e conflitos, que é isso que parece interessar a Holden, a personagem criada por Anita, não a mulher em si. O próprio nome ‘Holden’ aí ganha dimensões interessantes, icônicas, pois é inevitável a ligação com o herói do Apanhador no Campo de Centeio, já que Holden briga por bobagens e é descrito como ‘infantil’ algumas vezes (embora o Galera diga aqui que não há relação).

Por outro lado, tem a questão do espaço, que é fundamental também para o romance fazer sentido. Que outro lugar senão Buenos Aires para abrigar um culto secreto de leitores que levam seus personagens às últimas consequências? Há uma cena em que Anita conversa com o grupo sobre autores argentinos, ela cita os clássicos Borges, Cortázar, Casares, Piglia, e para alguém do grupo eles são mentirosos, escondem a realidade. Os bons autores seriam de fato os medianos, aqueles que, justamente por serem ruins, não conseguem disfarçar a realidade. Somos levados por cafés, ruas, parques, praças, lugares em que todo mundo parece estar lendo o tempo todo. Parece que apenas algumas poucas ações íntimas ocorrem na casa de Holden. Grande parte da ação acontece nas ruas e nos cafés.

Após o capítulo semifinal, em que Holden e os amigos vão até a Terra do Fogo para que ele possa levar a cabo seu destino de personagem, vemos Anita de volta ao Brasil e com o filho perdido. Esse capítulo final me pareceu narrado pela primeira pessoa de Danilo, o ex-namorado, que abriga Anita quando ela volta. E o fecho é bonito pois ele de repente se pega pensando nela justamente da forma que ela desejava, como aquela jovem, cuja história ela tinha lido, que admirava a cordilheira dos Andes da janela de sua casa, e essa parecia ser a sua principal característica, pelos olhos do marido e narrador da história. É a literatura cumprindo seu destino, virar realidade, mas não sabemos se Anita sabe disso.

A Carpintaria de Autran Dourado

Eu não lembro quando comprei o “Uma poética do romance/Matéria de carpintaria” do Autran Dourado (Difel, 1976). Provavelmente há uns cinco anos atrás. Acho que foi o Caio quem me falou do livro, e do quanto ele gosta de ler poetas e prosadores falando do seu ofício.

Ser um comprador compulsivo de livros tem dessas coisas, de a gente comprar o livro e só ler algum tempo depois. Tem alguns que eu leio logo. Outros precisam esperar pacientes na estante. Já tentei ler duas vezes o Em Busca do Tempo Perdido do Proust, naquela coleção linda de clássicos que a Abril lançou ano passado. Acho que não estou ainda preparado para ler o livro. Com o livro do Autran o mesmo aconteceu. Já tinha tentado ler o livro umas duas vezes, e ele não tinha me pegado. Acontece que comecei a lê-lo faz umas duas semanas e entrei no dito cujo. Essas coisas sempre que dão a sensação de que há livros para os quais precisamos estar prontos para eles, não adianta forçar a barra.

Por vezes penso que perdi uns dez anos da minha vida pensando ser poeta, quando ramblando (rambling) pelos arquivos do computador reparei que nesses dez anos eu sempre escrevi muita prosa também, ao lado dos poemas que eu anotava em cadernos.  Mudei de apartamento na semana passada e encontrei um velho caderno de 2006. Lá me deparei com uma anotação: “O velho emudece após uma ameaça de derrame. Passa cinco anos sem falar. Quando está pela boa abre a boca e diz que fica tudo pra Jandira, a empregada.” Ri sozinho ao ler isso. Por que eu nunca escrevi esse conto?

Por que eu não sabia escrever, esse era o problema. Depois de ter lido o “Da redação à produção textual” do Paulo Guedes, que me abriu os olhos para um bocado de coisas, como a concretude, o mostrar e não contar (o que ele chama de objetividade), e o questionamento: todo texto precisa ser uma espécie de resposta a uma questão, que não precisa estar necessariamente explícita no texto. O exemplo clássico é o Missa do Galo, do Machado de Assis, que começa fabulosamente: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos…” E daí por diante o conto todo é o narrador tentando entender isso. Genial, claro. Ou como a Terceira margem do rio, do Guimarães Rosa, o problema todo surge quando o pai do narrador resolve construir uma canoa, se enfia nela e passa a viver lá no meio do rio ancorado.

Voltando ao livro Autran. O principal problema dele é que pra entender o livro o cara tem que ter lido os livros do autor, senão não dá pra entender bulhufas do que ele diz. Eu não li nada dele, então… (já comprei o Risco do Bordado, que é analisado no capítulo ‘Planta baixa de um livro’, mas ainda não li). Assim, os ensaios de que mais gostei foram o ‘Personagem, composição, estrutura’, onde ele reclama que os críticos parecem não entender nada de personagem, exceção feita a Antônio Cândido, segundo ele o único que parece entender que o personagem na ficção não é e nem tem que ser de carne e osso, o requisito básico é ser coerente com a narrativa, já que a ficção não tem pretensão de ser análise antropológica ou sociológica, segundo ele. ‘Um depoimento pessoal’ também pode ser lido tranquilamente. No texto ele faz uma espécie de análise da sua trajetória literária e o que envolve a criação. O texto começa com uma reflexão entre ser o que ele chama de ‘um bom prosador’ e ser ‘escritor de romances’. O risco todo que se corre é o desejo ou audácia de se querer escrever bem, enquanto ainda o sujeito é incapaz de escrever um romance. Para ele Jorge Amado era um grande romancista, mas não era um bom prosador. Isso me lembrou de algo que o Assis Brasil comentou em uma das aulas: o problema de quem escreve é querer fazer literatura. E é nisso que tenho pensado ultimamente, muito mais em conseguir deixar de pé uma história, com personagens e enredo envolventes do que fazer floreios com a linguagem. Não dá pra querer ser um Picasso se o cara não consegue nem pintar uma paisagem direito, né?

A segunda parte do livro, o Matéria de Carpintaria, envolve uma séria de aulas de ele deu na PUC-RJ como escritor residente em 1974. As aulas todas versam sobre a feitura dos seus livros. O interessante é que ele relaciona as obras com a mitologia grega e principalmente nos conta como bolava o nome dos personagens pensando em significados míticos associados a esses nomes. Batizar um personagem de ‘Maria’, para ele, nunca é algo sem significado. Como disse, não li os seus livros, portanto essa parte do livro só serviu para despertar em mim o desejo de os ler, bem como me deu uma ideia bem interessante de como pensar os nomes dos personagens. Aliás, no Apêndice há um texto chamado ‘O personagem como metáfora’ e outro, que eu achei bastante bom também em que ele discute a questão da língua portuguesa e do problema todo de tomarmos o nosso padrão culto lá no século XIX tendo como base o padrão culto português (não lembro de a literatura linguística citar esse texto).

Provavelmente terei que ler a obra do Autran para poder voltar ao livro e saboreá-lo e apreciá-lo devidamente, mas isso vai demorar um pouco. Outro ponto negativo que vejo no livro é a pouca reflexão sobre a construção dos enredos, algo que eu esperava encontrar, embora todas as referências à mitologia e ao teatro clássicos sejam uma pista nesse sentido. A profusão de dramas humanos que a mitologia grega encerra é uma fonte inesgotável de temas e situações (Nelson Rodrigues que o diga).

Como ensinar matemática

Krantz, Steven. How to teach mathematics. 2. ed. Providence, Rhode Island: American Mathematical Society, 1999.

O leitor poderá achar estranho um linguista e professor de português resenhando um livro sobre como ensinar matemática. Logo, logo, vocês verão que não há estranheza alguma nisso, e o que esse livro traz de interessante vale para qualquer campo do conhecimento. Steven Krantz é PhD em matemática pela Princeton University (1974) e atualmente leciona na Washington University, campus de St. Louis. É autor de inúmeros artigos e livros tanto técnicos quanto destinados a um público maior.

“Como ensinar matemática” tem um título, que eu diria, enganoso. O livro é mais sobre didática do ensino superior do que propriamente sobre o ensino de matemática nesse nível (e nos níveis inferiores, como o fundamental e o médio). Apesar de a realidade dele ser bem diferente da nossa, algumas boas lições podem ser tiradas dali. O livro se divide em 4 capítulos principais, um de conclusão e alguns apêndices (esses são escritos de outros professores e pesquisadores da área da matemática sobre assuntos mais específicos, de pouco interesse ao leitor comum).

O primeiro capítulo, ‘Guiding Principles’ estabelece um pano de fundo no qual a discussão do livro ocorrerá. Esse pano de fundo é a reforma do sistema educacional americano e o funcionamento do ensino superior nas universidades americanas. A sensação de que os alunos estão chegando cada vez mais fracos para a universidade não é apenas brasileira, é americana também e isso lá nos anos 90 (imagine agora?). Veremos no capítulo 4 que isso não é desculpa para o professor dar uma aula meia-boca ou subestimar os seus estudantes. Esse capítulo vai tratar de alguns temas que para muitos pouco significam, mas para quem passa pelo crivo de bancas toda vez que enfrenta um concurso saberá do que eu estou falando.  Preparar a aula, ser claro, usar o quadro organizadamente, fazer e responder questões, o uso do tempo etc., são aspectos básicos de uma aula (em qualquer nível) que ninguém nos ensina (mas deveriam, principalmente nos cursos de licenciatura). E aí está o primeiro mérito do livro, como se no ensino superior não fosse importante manter o quadro organizado, ter uma letra compreensível e/ou ter uma aula com começo, meio e fim (aos meus alunos que irão ler isso: acreditem, eu tento ser organizado, mas nem sempre consigo). Claro que isso é importante, e faz parte do sucesso da aprendizagem. Uma frase que ele usa muito é: “qual a mensagem que você está passando aos alunos?” Se você não está preocupado com o aprendizado deles, não espere que eles estejam preocupados com a sua disciplina. Muitos estudantes chegam do ensino médio e demoram um tempo até se inserirem na dinâmica do ensino superior. Para ele há diferença entre o ensino superior e o ensino médio. Faz parte do trabalho do professor universitário mostrar essa diferença e ajudá-los a fazer essa transição. Vejo muitos colegas simplesmente questionando a dificuldade dos alunos em se adequarem ao funcionamento da faculdade, isso porque supõem que o aluno deva ter um conhecimento que ele não tem. A faculdade não é um ensino médio reforçado ou um ensino técnico (por mais que às vezes eu tenha a impressão de que é isso que a gente faz ali todo dia, estamos formando técnicos).

O segundo capítulo trata de Assuntos Práticos “Practical Matters”. O autor discute temas como a organização da aula, fazer contato visual, dar lição para casa, como organizar a disciplina ao longo do semestre, como formular avaliações, escolher um livro-texto, diferenças entre dar aula para uma turma pequena e uma turma grande e outras questões de organização básica de uma disciplina acadêmica.

O capítulo “spiritual matters” discute questões filosóficas mais amplas sobre o ensino. Para o autor, um professor padrão passa a matéria no quadro e vai pra casa. Um professor dinâmico “interage com os estudantes, excita a curiosidade intelectual deles, e os ajuda a descobrir ideias sozinhos.” (p. 87) Essencialmente, grande parte do sucesso está no professor, em suas atitudes, na mensagem que ele está passando aos estudantes. E a principal, a meu ver, é que ele está preocupado com a aprendizagem dos alunos. Por isso é importante saber como a aprendizagem ocorre, quem são aquelas pessoas que passarão um semestre (ou um ano todo, no caso dos regimes anuais) ouvindo você falar. Paralelamente, é preciso ter em mente o objetivo do ensino superior. Como eu disse anteriormente, penso que muitas vezes agimos como se o objetivo do ensino superior fosse apenas treinar os indivíduos em alguma área específica, dar-lhes uma profissão. Claro que esse é um objetivo básico, mas não pode ficar nisso. Para Krantz, é parte fundamental do ensino superior também desenvolver habilidades de pensamento crítico e conhecimento e experiência com o discurso (‘discurso’ é entendido na linguística como toda e qualquer manifestação de linguagem, seja oral ou escrita, um bilhete é um discurso, assim como um artigo acadêmico também, suponho que seja isso que ele tenha em mente). É extremamente feliz esse tipo de afirmação, porque ingenuamente o leigo imagina que matemática pouco ou nada tem a ver com escrever e falar com clareza ou mesmo com raciocínio crítico, quando na verdade um bom matemático depende dessas habilidades tanto quando um linguista ou um historiador. Isso decorre de uma visão política sua. Pessoas que têm oportunidade de cursar o ensino superior possuem a responsabilidade social de assumirem posições de liderança e produzirem ideias, não apenas de consumi-las. E é trabalho do professor universitário passar isso aos seus alunos. Mas de nada adianta passar a mensagem e não lhes dar as ferramentas para tanto.

O quarto capítulo trata das dificuldades do trabalho docente. Professores experientes viveram situações dos mais diversos tipos, desde estudantes colando, entregando trabalhos atrasados até erros próprios. O que ele oferece nessa parte do livro são alguns caminhos para se lidar com essas dificuldades com bom senso, já que um problema pequeno pode se tornar uma grande dor de cabeça. Para ele não se deve aceitar trabalhos atrasados, porque isso tende a virar uma bola de neve, daqui a pouco a regra vira exceção. A cola é um problema grave, porque desmotiva aqueles que estudam e não deixa de ser uma prática desonesta. Para ele a solução é ser firme e ter uma política para lidar com esse tipo de comportamento. Eu sei que alguns alunos possuem dificuldades de aprendizagem e se esse aluno atinge uma nota que ele costumeiramente não atinge, então ele copiou deliberadamente o exercício do colega e depois colou na prova também. Alguns se livram desse problema dando provas com consulta, eu tento evitar isso ao máximo, embora em alguns momentos essa é a única saída quando o conteúdo é extenso e gravar as informações não é o mais importante e sim saber buscá-las. O autor também discute questões como frustração (‘os estudantes parece que esquecem tudo que viram em disciplinas anteriores’) e disciplina (‘sempre tem aqueles que vem pra aula pra bater-papo’). Ele conta o caso do William James, que deitava no chão da sala toda vez que os alunos paravam de cooperar ou estavam conversando demais. A sugestão de Krantz é que você deve encontrar uma forma própria de lidar com essas situações.

O livro se encerra com alguns pensamentos finais. Para o autor é importante que o professor (e isso vale não só para o professor de ensino superior) busque sempre formas de aprimorar suas técnicas de ensino e não jogue a culpa sempre nos estudantes (‘eles não aprendem porque tiveram uma base ruim’). Ensinar é algo prazeroso, gratificante e divertido. Só que é preciso ter consciência dos perigos, como ele diz. Evitar os perigos é um primeiro passo para se dar bem. E a mensagem final é que ele não espera que os matemáticos fiquem debatendo ideias geradas por especialistas em educação, mas que os matemáticos deveriam eles mesmos criar e discutir suas próprias ideias. É mais ou menos isso que o campo da linguística aplicada tem feito no Brasil, emesmo linguistas teóricos de alto gabarito. Afinal, a responsabilidade do linguista não é apenas com a pesquisa linguística, mas também com o ensino superior e a formação de futuros professores de línguas (seja portuguesa ou estrangeira).

O livro foi uma grata surpresa pra mim, porque ao mesmo tempo em que reafirmou algumas das convicções que eu já tinha me ajudou a perceber outras facetas do ensino superior para as quais eu ainda não tinha olhos. E isso é extremamente importante, porque evita que todo o prazer do trabalho se perca lidando com problemas, à primeira vista pequenos, mas que podem se tornar incontornáveis no futuro.