Em outros tempos eu me surpreenderia com a celeuma que se criou em torno da correção das redações do ENEM. Hoje penso que não se poderia esperar nada diferente. A imprensa, pelo menos uma parte significativa dela, tem pecado em fornecer ao espectador uma opinião mais balizada sobre os fatos. Veja-se o caso da tragédia em Santa Maria. Nas notícias sobre o caso, o tom geral é “quem vai pra cadeia?”. No final, o que veremos, provavelmente é um pequeno retrato do jeitinho brasileiro de fazer as coisas. Em cidades pequenas todo mundo se conhece, todo mundo tem um amigo em alguma posição de poder que pode falar com outro alguém para afrouxar regras e liberar licenças, mesmo que irregularidades existam. O bom e velho “não dá nada.” Não veremos uma reflexão mais séria sobre as causas e formas de evitar esse tipo de coisa no futuro.
Não tem como esperar que os jornalistas entrevistem alguém que dê uma opinião mais gabaritada. A postura do Marcos Bagno, só dificulta isso, por exemplo. Sua arrogância só pesa contra a academia. Provavelmente ele é o linguista mais conhecido do país. Deveria mostrar mais simpatia. Não sair esbravejando que os jornalistas da Globo são imbecis e que deveriam ser os livros dele. Mesmo o Sírio Possenti (que possui um blog no portal do Terra), por vezes assume uma postura irônica. O artigo que ele escreveu sobre o assunto é uma exceção, eu diria, no seu tom costumeiro. Qual é a imagem que se passa da academia com essa atitude? De qualquer forma, a matéria sensata que saiu no G1 ninguém menciona.
Há duas questões que envolvem a correção das redações: a) houve erro, claro, em dar nota máxima para redações que apresentaram erros ortográficos; b) não há como zerar as redações que fugiram parcialmente do tema. Tentarei explicar essas duas coisas.
É claro que uma redação que apresente erro de ortografia não deveria receber nota máxima. Agora, foi um erro apenas, ou dois? O texto como um todo, como ele se apresenta? Considerando-se os outros critérios, como ele seria avaliado. Essa reportagem não diz isso. O máximo de especificidade que se lê é “uma redação apresenta dois erros de concordância”. Suponha que o problema fosse apenas esse. Que nota a redação tiraria se os pontos tivessem sido descontados? Digamos que 950 de 1000 possíveis? Como o ENEM é uma avaliação nacional, não sei até que ponto ela gera uma classificação e um ordenamento dos “candidatos” (candidatos a quê?), então minúcias não fazem diferença. Pelo menos não a diferença que fazem em um vestibular padrão em que décimos são fundamentais para classificar candidatos muito bem preparados para cursos com concorrência alta. Do meu ponto de vista a reação foi exagerada. Em quantas redações isso aconteceu? Zero vírgula tantos porcento de milhões de redações…
Agora o problema (b): as redações deveriam de fato ter sido zeradas? Segundo essa reportagem, que muito bem detalha o processo da correção, não. A fuga do tema é parcial. Se os sujeitos queriam mesmo ter zerado a prova e mostrado que os corretores não leem a prova, deveriam ser escrito apenas a receita de miojo ou apenas o hino do Palmeiras. Do modo como escreveram, o corretor irá avaliar como fuga parcial. Dará a nota mínima para o domínio do tema, para quesitos de coesão e coerência e estruturação do texto. Os corretores partem do princípio que ninguém que participa do processo está ali de brincadeira, portanto avaliam a redação da forma mais séria possível, considerando dificuldades eventuais que as pessoas possuam no trato com a linguagem escrita. O sistema seria falho se o sujeito tivesse escrito apenas a receita do miojo e tivesse tirado nota 700-800 por exemplo, o que mostraria que a nota foi aleatória.
Um parêntese: As pessoas não entendem que vestibulares existem apenas porque a demanda é maior do que a oferta. Se nos vestibulares se desse zero para toda redação que apresenta fuga parcial do tema, cursos com concorrência pequena não conseguiriam fechar turmas. O vestibular é essencialmente um processo classificatório. A conclusão do Ensino Médio habilita qualquer um a entrar em um curso universitário. Fazer vestibular para cursos que tem concorrência de 1-1, ou menor que isso é uma perda de tempo e desperdício de dinheiro.
As charges que se produziram, as reações dos jornalistas e opinionados por aí são naturais; procuradores enraivecidos moverão ações contra o MEC. Todos estão no seu direito. Nenhum sistema de correção ou avaliação é 100% seguro, pois existe sempre o elemento humano, imprevisível. Nos escandalizamos com vendas de vagas em vestibulares de medicina. Ninguém falou em punir aqueles que compraram as vagas (gente de poder aquisitivo alto, claro), apenas aqueles que fraudam o processo. Pagar por uma vaga em uma universidade não é fraudar o processo também? Já o erro humano, ou a ingenuidade de algum corretor, que acreditou não ter problema em dar nota máxima para uma redação que apresentasse apenas um ou dois erros de ortografia, é natural e sempre irá acontecer. Nossa tendência natural de generalizações irá concluir que todos os corretores são imbecis e o processo todo de avaliação é uma bosta. Um assassino que saia de um julgamento declarado inocente nos dará a impressão que todo o sistema judiciário é uma piada. Simplesmente esquecemos de todos os outros 99% dos casos em que ele funciona e condena assassinos. O objetivo dos “candidatos” que tentaram mostrar que a avaliação é falha não foi bem sucedido, como tentam mostrar certas reportagens. Na verdade, o que essa pequena experiência nos mostra é justamente o oposto. Que os critérios, por mais que o elemento de subjetividade seja inevitável, foram bem aplicados e as redações foram avaliadas com cuidado.