Aproveitando o confinamento para limpar os meus arquivos digitais, resolvi tirar da gaveta algumas coisas. Reli alguns textos e ainda gosto deles. Como já tem um tanto de bobagem escrita (e mal escrita, em muitos casos) com meu nome por aí. Umas a mais, umas a menos não farão diferença.
Uma dessas coisas é um romance, que comecei a esboçar durante a oficina do Assis Brasil em 2013 e que escrevi em 2014. Voltei a ela em alguns momentos em 2015 e 2016. Até agora não me satisfaço ainda com o final. Essa é uma dificuldade que eu sinto. Não consigo gostar dos meus finais. Mesmo tendo sido a narrativa mais cerebral. Talvez falte um pouco de imaginação a ela, por isso o final não me agrada ainda. Não sei. Estou revisando o texto, polindo aqui e ali e matutando um final melhor.
A história é centrada em Maurício, um taxista de seus vinte e poucos anos que largou a escola e sonha em ser árbitro de futebol. Mas pra isso ele precisa antes terminar o ensino médio e enfrentar outros pequenos desafios que a vida vai colocar diante dele, bem como fazer algumas escolhas. É bem realista e tento situar a história ali por 2011, 2012. Tem uma certa euforia pelo sucesso econômico do país. E ele está vendo os amigos e pessoas da família melhorando de vida e ele não consegue.
De qualquer forma, aqui vai um trecho.
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Priscila insinuava a mão para dentro das suas calças e pedia para que ele pagasse um Keep Cooler pra ela, sua a bebida favorita. “Gostei de ti”, se insinuou. E antes mesmo de ela terminar a sua bebida e ele a sua cerveja, foram para o quarto.
Uma hora depois, ele saía com o telefone dela salvo no celular. Ricardo, àquela altura, rodopiava no meio do salão com a sua loira no cangote, ao som de um sucesso sertanejo que tocava na jukebox.
Não deveria ter ligado. E ela não deveria ter parado de lhe cobrar. Em que momento tinha passado do papel de cliente fiel para o de amante? Foi no momento em que ela disse para ele guardar o dinheiro. Era a primeira vez que se deixava gozar com um cliente. Um segredo, dizia ela, que as velhas cafetinas ensinavam, para não se apaixonarem. Não beijar na boca de língua, nem gozar. Nunca.
Era com esse tipo de mulher que ele estava fadado a ficar? Se considerava meio dela. “Não se sinta na obrigação de me ligar. Gosto de ficar contigo. Não quero que tu largue a família por mim”. Ele se admirou depois, ao pensar com cuidado nesse moralismo esquisito. Ganhava a vida como prostituta, mas não queria desmanchar casamentos. O que tinha começado como uma escapadinha virou um encontro regular, pelo menos duas vezes por mês. Priscila o admirava. “Nunca conheci ninguém que fosse juiz de futebol”, disse certa vez, “saí com um jogador do Grêmio que apareceu lá na boate uma vez, reserva, nunca jogava. Foi embora pra Europa, eu acho, um tempo depois”. Não lembrava o nome dele. Não era famoso. Ela contava que não teve condições de estudar porque engravidou cedo e precisou trabalhar para sustentar a filha, cujo pai não assumiu a criança e tempo depois foi embora da cidade.
“A Janete passa o dia todo naquele sofá vendo televisão, fazendo as unhas, na internet”, ele compartilhava. “Eu queria uma mulher que me empurrasse pra frente. Parece que ela me segura parado no tempo”. Sentia serem confidentes.
Em outubro do ano anterior a esposa tinha surgido com a ideia de irem pra praia no final do ano. Ele achou que era brincadeira. “Com que dinheiro?”. “Damos um jeito”, ela respondeu. O que significava que ele teria que dar um jeito. “Tu me prometeu, se lembra?”. Ele não lembrava. Todo mundo iria para a praia. Só eles ficariam na cidade.
“Todo ano é a mesma coisa, só a gente derretendo nesse inferno”. Ele perguntou quem iria. Ela listou nomes de parentes seus. “Poderíamos ficar no teu primo, no Campeche. A casa não é do teu padrinho mesmo?”. Era um primo que não via fazia uns cinco anos. Não se sentia confortável de entrar em contato apenas para ficar na casa dele para ir à praia. Nunca ligou pro cara pra saber como ele estava. E agora aquela?
Janete tanto insistiu que ele ligou.
Claro, tudo bem, eram benvindos. O problema seria conseguir o dinheiro. Fez jornadas de doze horas em alguns dias. Se saiu ridiculamente nas provas que fez, deixou de entregar trabalhos, reprovou por faltas em duas disciplinas. Dezembro chegou e o dinheiro ainda era pouco. Se obrigou a ceder aos convites de Ricardo e foi à noite de carteado no bar do Alemão.
A jogatina acontecia numa sala escondida nos fundos. Entrava-se por uma porta que dava para uma cozinha e dela para a sala de jogos. Ali rolava cacheta, pôquer, canastra. Tudo à dinheiro. E também tinha máquinas caça-níquel. Ganhou uns trocados. Era sorte de principiante, Ricardo brincava. Não importava. Tinha ganhado dois mil reais em duas noites. Dinheiro suficiente para pagar alguns picolés para a filha e um biquíni novo para a mulher… e passar uma noite no motel com Priscila.
Quatro cervejas depois pediu um espumante. Quando se deparou no outro dia com o gasto de quinhentos reais foi que a consciência lhe foi comprimida. Assim como o dinheiro veio, foi-se. Algum pequeno mecanismo se desligava dentro dele quando bebia, como se o amanhã fosse só um lugar distante que nunca visitaria, como se o dinheiro que tinha no bolso naquele momento fosse um tipo de dinheiro que iria se evaporar antes do amanhecer e que precisava ser gasto naquele preciso instante.
No dia seguinte, mesmo depois do banho, sentia o perfume da amante nas roupas, nas mãos, debaixo das unhas, no carro. Evitava o olhar de Janete em casa, como se ela fosse descobrir neles o seu crime e lhe acusar: “De quem é esse cheiro na tua camisa?”. Ele não teria alternativa senão confessar tudo. No culto pedia perdão, tentando diminuir o peso na consciência, mas o vazio no bolso o incomodava. Incomodava mais do que saber que tinha traído a mulher. Boca-aberta! Por que fazia aquilo com ele mesmo?
Depois da ceia de Natal na casa dos sogros partiram para Florianópolis. Pensou no pai durante o jantar. Ligou. Ninguém atendeu. Torceu para que ele estivesse com Daiane e não em um boteco qualquer do bairro. Passaram sete dias felizes. Com o calor úmido das noites da ilha, seus corpos se redescobriram nas madrugadas silenciosas da casa.
Tudo ficaria bem dali em diante. “Eu falei que daria certo?”, ela lhe disse enquanto a BR101 se estendia à sua frente no caminho de volta para casa.
A pilha de contas na caixa do correio os trouxe de volta das férias. Se obrigou a atrasar luz e água para poder pagar o cartão de crédito. Dobrou a jornada de trabalho para colocar em dia as contas, até que veio fevereiro e as aulas recomeçaram. Tudo de novo?
E não sabia ele, ainda, que das férias Janete trazia um filho na barriga.
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