Cinema multilíngue

De um modo ou de outro, o tema da linguagem acabou perpassando alguns filmes que concorreram ao último Oscar. Deve ser uma das consequências da globalização. E a arte do nosso tempo replica em alguma medida pop a Babel em que vivemos.

Causou um burburinho que Napoleão seja um filme falado em inglês e não em francês. Talvez os franceses esperassem também que o Oliver Stone tivesse escalado um Roman Duris para ser Napoleão, e não um Joaquim Phoenix, e uma Adèle Haenel para viver Josephine. Vai saber. Não acho que os italianos tenham ficado chateados que a série Roma tenha sido falada em inglês, assim como os suecos, noruegueses e dinamarqueses não devem ter ficado chateados que Vikings (série produzida por canadenses, a propósito) também seja falada em inglês e não nórdico antigo. Claro, estou brincando, mas o fato de o francês do Napoleão estar mais próximo da gente do que o latim de Júlio César e Marco Antônio é um bom argumento pra pedir que um filme sobre um dos maiores personagens da história da França e da Europa fale no cinema a sua língua materna.

No filme Anatomia de uma queda, Sandra é alemã, o marido francês e eles conversam em inglês, entre si e com o filho, Daniel. É uma casa multilíngue. Creio que não deva ser incomum na Europa esses relacionamentos internacionais, nem crianças vivendo em lares, escolas e bairros multilíngues. Na verdade, embora a Europa como um todo seja um território bem variado linguisticamente, essa pluralidade não é novidade. Júlio César quando foi invadir a Gália se deparou com os povos celtas falando línguas que os romanos não conheciam. Lembrando que os próprios romanos viviam em situação de diglossia. As diferenças entre o latim vulgar (falado pelos escravos, soldados, camponeses etc.) era diferente do latim clássico, que era a forma escrita e cultivada pelas classes altas e letradas de Roma, já naquela época pouco antes de Cristo. No filme, em certo momento, há uma discussão entre o casal sobre o tema. O marido não gosta que Sandra fale em inglês com o filho, já que eles moram na França.

Já em Vidas Passadas temos uma coreana, Nora, que se muda com a família para o Canadá aos 12 anos. Ela ainda fala coreano com a mãe, mas, além de ter passado a adolescência no Canadá, como ela se torna uma dramaturga de relativo sucesso em Nova Iorque, “sua língua” agora é o inglês. Aos vinte e poucos anos, ela retoma o contato com um amigo de infância que ficou na Coréia do Sul e eles conversam em coreano. Pouco depois, ela sente que eles estão ficando apegados, mas a distância é muito grande. Então, ela decide parar de falar com ele. Eles só voltariam a se falar outros 10 depois. Nesse meio tempo Nora se casa, e eles se encontram quando ele briga com a noiva e vai a Nova Iorque visitar ela. Uma das falas mais significativas do filme é quando o marido dela diz algo bastante poético: “Você sonha em um idioma que eu não entendo. Parece que há um lugar inteiro dentro de você que eu não consigo acessar”.

Por fim, em Ficção Americana a questão é menos explícita. Monk é um negro de classe média alta. Seu pai era médico, seus irmãos são médicos, mas ele é escritor e professor universitário. Sua “mágoa” com o mercado literário é que ele não é lido como um escritor em sentido lato. Sempre o enquadram como um escritor negro, mesmo que os temas de raça não sejam o seu objeto literário. Suponho, então, que ele não escreva no Black English, mas no inglês standard. Mas quando ele resolve escrever um livro para mostrar que o mercado literário está interessado nos negros não pelo mérito literário, mas por certo tipo de história que perpassa a vida deles nos Estados Unidos (violência, abandono parental e desestruturação familiar, abuso de drogas e álcool etc.), ele escreve um romance autobiográfico criando como autor-personagem um condenado fugitivo da prisão. Mas como o livro é comprado por uma grande editora e passa a fazer sucesso, ele precisa mudar sua forma de falar (e até seus trejeitos físicos) para lidar com as consequências do sucesso editorial. O livro ter como título um palavrão me parece significativo dessa necessidade de marcar linguisticamente que o autor é alguém de classe baixa e pouco instruído.

Dado seu valor cultural, como veículo de expressão de valores, costumes, hábitos, entre outras coisas, as línguas fazem parte da nossa identidade. Daí a reclamação dos franceses, creio. E ao mesmo tempo vivemos num mundo em que é possível alguém se candidatar a empregos em qualquer lugar do mundo, a entrar em contato com pessoas de países diferentes pelas redes sociais e a aprender os idiomas mais falados do globo usando um aplicativo para celular como Duolingo ou Babbel. Daí ser inevitável relações amorosas internacionais, e crianças crescendo em lares bilíngues.

O esporte favorito do professor é reclamar de aluno

Essa semana um professor universitário rateou no Twitter que os alunos não leem os textos das aulas. O tuíte rendeu um pequeno bafafá. Para ele, é difícil entender esse comportamento, já que, em tese, esses alunos estão num curso que escolheram.

Como é costume meu, lá vou eu falar da minha experiência na coisa. É o que consigo oferecer.

Fiz graduação numa época difícil, fim dos anos 1990, início dos 2000. Eu não tinha grana para comprar os livros de inglês e sempre me faltava para tirar cópias dos textos. A biblioteca da FAFIUV na época era ridícula de pequena e também não tinha material para todos os alunos. Lembro de que comprei apenas os Fundamentos da Linguística contemporânea, do Edward Lopes naquele primeiro ano. Foi o que deu pra fazer. A professora de sociologia passava uma carga grande de leituras e não li a metade, até onde me lembro. Mas outras disciplinas eram mais tranquilas, como a Teoria Literária, que não tinha lá muita leitura teórica. Ou vai ver eu não tinha grana pro xerox mesmo e me virava assistindo as aulas, fazendo anotações ou emprestando o texto do povo.

Claro, aos poucos fui comprando outras coisas, como uma gramática, um bom dicionário de inglês… e ao final do curso eu tinha um pequeno acervo. Pequeno mesmo.

Como professor eu gosto de dar leitura pra moçada, mas ao mesmo tempo tenho consciência de que o público do curso de Letras é, na sua maioria, um povo que também trabalha, mora longe, vive com grana contada etc. As disciplinas que eu leciono são mais ‘técnicas’, digamos assim, o que me permite assumir ali um livro texto e não ficar entupindo eles de referências. A vantagem dos livros-texto é que eles apresentam o conteúdo básico e essencial da área. Quando quero discutir algo a mais coloco como referência complementar e sugestão de leitura. Hoje temos a vantagem de digitalizar os textos, assim ninguém mais precisa ficar gastando com fotocópia. Sem contar que o preço dos livros não é tão caro assim e as editoras volta-e-meia fazem promoções.

Perguntei aos meus alunos se eles conseguiam vencer a carga de leitura das disciplinas que estavam cursando. Ninguém disse que conseguia. Se nas minhas disciplinas imagino ali um conteúdo por volta de 15-20 páginas/aula, certamente tem professores que pedem mais. Muito mais. Não os julgo. Também adoraria usar o manual do Saeed (Semantics, Blackwell) com 500 páginas.

No mundo ideal, nossos alunos se dedicariam exclusivamente ao estudo em sala de aula durante 20h por semana, o que sobraria outras 20h para leitura e outras atividades. Pesquisas mostram que 61,8% dos alunos de instituições privadas trabalham, enquanto nas instituições públicas o percentual de alunos que trabalham é de 40,3% (Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/mapa-do-ensino-superior-aponta-para-maioria-feminina-e-branca).

Que os alunos não leiam não me surpreende. Acho até que eles tentam (tá, eu sou um bom moço que acredita ainda na boa disposição dos jovens para o aprendizado). Mas é aquela coisa, tem dias em que o que o aluno quer é maratonar o livro que está lendo por prazer (risos) e talvez a nossa aula seja aquela aula porre que o aluno vai só porque é obrigatória mesmo.

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Documentário: O silêncio dos homens (Youtube). Vi semana passada. Documentário extremamente necessário. Tenho pensado muito sobre masculinidade tóxica (também porque tenho lido muitas mulheres, sempre gostei de lê-las, a propósito) e a dificuldade dos homens em falar dos seus sentimentos é só mais uma faceta dessa cultura masculina heteronormativa que só faz mal a todo mundo.

Dario. (Caio R. Bona Moreira, Humana). O livro faz parte da coleção Biografemas. Além dos traços típicos da biografia, o livro é o relato de uma jornada pessoal. Dario Velloso foi objeto da tese de doutorado de Caio e nesse relato curto o autor se volta para a busca pelo escritor enquanto personagem, tocando em vários aspectos da vida do biografado, um dos grandes nomes da poesia curitibana simbolista e grande personalidade da capital paranaense no início do séc. XX.

Procurando defeitos

Isso de ser linguista e escritor vai tirando da gente uma certa ingenuidade em relação à linguagem. Não posso mais falar e escrever com a liberdade daqueles que simplesmente jogam os chinelos a um canto e entram na quadra de terra batida pra bater uma bola.

Mas isso não é coisa só minha (nem poderia ser, né?). Nas redes sociais o povo é habilíssimo nesse escrutínio. O que me lembra daqueles caras que acham defeitos mínimos em cenas de cinema. (Haja tempo!) A literatura ainda se salva porque ela é feita de recortes, e o que fica de fora, muitas vezes, importa bem pouco.

Li no início do mês, Diário da Queda (Companhia das Letras, 2011), de Michel Laub. Me impressionei que ele falasse tão pouco, quase nada da mãe. Das mães da família em geral. Excluindo o amigo sem mãe, o narrador certamente tem uma e ela quase não aparece na narrativa. O foco está na relação entre os homens da família e tal. Entendo. Claro que entendo. Mas significa, não? Fiquei com a impressão de que a mãe dele era um ser passivo na relação dele com o pai, especialmente nos momentos decisivos dessa relação.

Em Better Caul Saul, uma complicação chave da segunda temporada é a adulteração de alguns documentos promovidas por Jimmy para ferrar seu irmão Chuck. Chuck tem uma intolerância à eletricidade. Vive às escuras, sem eletrônicos de qualquer espécie por perto. Por isso fiquei surpreso quando Chuck diz num episódio depois que seu suposto erro aparece que ele tem certeza de que digitou corretamente os documentos. Como assim ele “digitou”?

Muita gente se surpreende com os rolês das crianças em Stranger Things? Cadê os pais? Por que estão na rua até tarde? Crescer num subúrbio americano deve ter lá suas vantagens, mas crescer numa cidadezinha do interior do meio-oeste (que pra mim não tem nada de oeste, só meio mesmo) tem outras, como poder ir e vir de bicicleta pra todos os cantos e a cidade ter apenas um punhado de policiais. Essa foi a minha infância em União da Vitória. Eu e meu irmão mais novo apenas falávamos para nossos pais que estávamos saindo para ir na casa de algum amigo ou jogar bola na praça do bairro. Eles não se davam ao trabalho de ir lá conferir, claro. E muitas e muitas vezes íamos para outros lugares.

Por isso evito ler resenhas e críticas de filmes e livros antes de tomar contato com eles. Cruzei só de relance com o título de uma resenha do livro novo do C. Tezza, Beatriz e o poeta, e o título falava em ‘personagens ruins’. E agora, ao ler o livro, tenho achado o personagem do Gabriel, o poeta, um completo porre. Verborrágico, metido, até um bom tanto inverossímil (ninguém fala daquele jeito). É o Luisandro quem está achando isso mesmo ou minha leitura foi enviesada pelo que li?

Filme:

Deserto particular (HBO). A premissa é muito boa. Um oficial da PM é afastado após um ato intempestivo de violência durante uma instrução de soldados. Daniel, o personagem principal, cuida do pai, que tem Alzheimer, com quem mora, e que é PM aposentado. O personagem tem várias nuances e vamos sendo apresentado a elas aos poucos. Ele parece ser um macho tóxico por todos os caracteres que associamos a sujeitos que são militares, além de ele ter um biotipo fortão, calado e não reagir muito bem quando a irmã lhe conta que está namorando uma mulher. Isso tudo a gente descobre nos primeiros minutos do filme. A intriga começa a ficar interessante quando Daniel decide ir atrás da baiana de Sobradinho com quem vem trocando mensagens pelo Whatsapp. Não sabemos muito bem o que motiva a viagem, além do fato de ela ter parado de lhe responder. É apenas a paixão que o move ou é a vontade de simplesmente sair de Curitiba e se afastar dos problemas (o processo disciplinar, o pai… ). Chegando lá, ele procura Sara e aos poucos vai descobrindo que ela não é muito bem quem ele esperava. Li resenhas elogiosas, outras nem tanto. Para mim é nota 6. Os diálogos são bons, o enredo é bom, mas tem algo ali que não me agradou, como a mudança de perspectiva. O filme começa centrado em Daniel e num certo ponto passa a tratar mais da Sara.

Férias

Estou a poucos dias do final das minhas férias e daqui já avisto o seu final, como aquele aventureiro que desfruta mais a jornada do que a chegada ao destino. Férias. É plural! É quantidade! E nos perdemos facilmente nesse encadeamento de dias. Triste, começo a pensar na volta à rotina na próxima segunda-feira. Infantilmente triste. E férias é como aquele jogo de futebol da infância. Eu curtia mais o jogar em si do que eventualmente ganhar.

Não que eu não tenha sido feliz nessas curtas férias. Não joguei bola nem nadei na cachoeira, como eu fazia nas minhas férias nos tempos de piá pançudo. Vi algum filme, algum seriado, alguns jogos de futebol. Passeei com minhas filhas no final de semana. Mas tudo isso já é coisa que eu meio que faço normalmente. Então vai ver que está aí esse sentimento de férias não gozadas, de férias desfrutadas em época de frio e muitos dias úteis em sequência, acostumado eu em feriar no verão ou no alto do inverno.

Planejei uma tarde de cinema, que não aconteceu. Mas fui colocar exames e consultas médicas em dia. Planejei conhecer livrarias e cafés que ainda não tinha visitado em Curitiba. Também não aconteceu, nem acontecerá, dado o estado chuvoso e arredio a passeios que se apresenta nessa semana.

Ficarei recolhido terminando de organizar as leituras das disciplinas e os exercícios. Como bom acadêmico, aproveito as férias para colocar as leituras do trabalho em dia. A Sofia tomou vacinas segunda-feira pela manhã e faltou à aula dois dias. Mesmo que no final das contas ela passe mais tempo na cama vendo televisão (ficou com dor na perna e está convalescendo como a senhorinha de 4 anos que ela é), é preciso dar atenção constante aos lanches, aos brinquedos e às idas ao banheiro.

Queria ter lido mais (por prazer e por compromisso profissional), visto mais filmes, mais séries… queria ter caminhado no centro sozinho sem destino. Mas para que ler tanto, não? Tenho pensado que nessa altura do campeonato, minha meta é ler menos e melhor. E reler.

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O que andei lendo e vendo

a) Nós que nos amávamos tanto (Ettore Scola, 1974). Na Itália do pós-guerra vemos a relação de 3 amigos e uma garota, Luciana, que se apaixona por Antonio, mas logo se encanta por Gianni assim que são apresentados. Todos são cheios de sonhos e esperanças, aos poucos a vida os distancia e soterra seus ideais românticos. Nico, por exemplo, deixa a família para buscar em Roma seu sonho de escrever sobre cinema. Me pareceu uma crítica ao idealismo socialista. A certa altura, um dos personagens diz, tristemente: “Nós queríamos mudar o mundo. Foi ele que nos mudou.” O filme também homenageia grandes figuras do cinema italiano como Vittorio de Sica, F. Fellini e Marcelo Mastroiani. b) Adeus às armas (E. Hemingway, 1929). Todo o estilo de Hemingway já está ali, nessa obra sobre o romance entre um motorista de ambulância americano e uma enfermeira inglesa que se conhecem na 1. Guerra. Pouco estudo psicológico, pouca presença da voz do narrador e muitos diálogos. Saí da leitura sem saber o que Henry queria, por que um americano tinha se alistado como voluntário no exército italiano. Talvez eu não tenha entendido. Como agora, enquanto leio “Por quem os sinos dobram” me pergunto por que também aquele americano, o protagonista, está no meio da guerra civil espanhola. Hemingway participou desses dois conflitos e os dois livros são inspirados nessas experiências. Queria ele testemunhar “a grande história” e ver seus efeitos sobre os homens? Não sei. Talvez o próprio autor tenha falado sobre isso em algum momento, ele que era um sujeito inquieto e também estava sempre perambulando. Ele usa e abusa do espaço, como a fuga do casal de namorados através do lago Maggiore em direção à Suíça, as cidadezinhas por que passa ao nordeste da Itália, na fronteira com a Áustria, palco de algumas batalhas. Não gosto de ler procurando “sobre o que é o texto”, ou “qual é a mensagem filosófica” que está ali escondida. Antes de tudo, Hemingway é um grande narrador e um grande construtor de diálogos. Embora alguns por vezes me soem cansativos e mais longos do que é preciso. Mas quem sou eu pra colocar defeito no mestre da concisão? Nesse sentido essa obra é bastante ágil. Apenas durante a recuperação dele em Milão a narrativa fica mais lenta (há pouca “ação”), mas no restante da obra Henry sempre está em movimento.

Um “car movie”

Vi no final de semana o filme Japonês “Drive my car”. Estou chamando de “car movie” porque em boa parte do filme o carro é o cenário para os diálogos ou mesmo para a exploração de grandes planos em que apenas vemos os personagens se deslocando por estradas. E venho aqui escrever sobre porque ele continua ressonando em mim. Esse é o poder da arte, não? A obra fica falando conosco mesmo depois que paramos de contemplá-la.

Kafuku é um diretor e ator que foi convidado para dirigir uma peça no festival de teatro de Hiroshima. Lá, descobre que terá uma motorista particular que irá conduzir seu carro. No princípio ele resiste, pois tem um método particular: gosta de ouvir o texto da peça que está ensaiando enquanto dirige. Nesse processo, as vidas de Kafuku e Misaki, a jovem motorista, vão se tocar e se aproximar naturalmente.

Kafuku perdeu há pouco tempo sua esposa, vítima de uma parada respiratória. Eles tinham um ritual. Durante o sexo, Oto gostava de contar histórias para o marido. Misaki, a motorista, também tem um luto recente: perdeu a mãe num deslizamento de terra que soterrou a casa em que viviam.

Há todo um entrelace de histórias no filme, de pessoas que lidam, trabalham com a palavra: o ator/diretor, os atores, a falecida Oto que era roteirista, o texto de Tchekov, “Tio Vânia”, sendo lido no carro, no ensaio da peça. E o que faz a motorista ali? Ela dirige calada, para que Kafuku escute o texto no carro, mas não terá ela também algo a contar? Não temos todos? Não é a palavra a ferramenta para lidarmos com nossos sentimentos?

Há uma série de detalhes. O jovem ator que teve um caso com Oto é escalado para interpretar Tio Vânia (que na peça de Tchekhov é um cinquentão, eu acho). Os atores passam dias a fio apenas lendo e lendo a peça e cada um lendo o texto na sua língua: japonês, mandarim, língua de sinais coreana. Tio Vânia é sobre o envelhecimento, sobre o desejo, mas seria também sobre a incomunicabilidade? Como “funciona” essa peça em que cada um fala uma língua? Na apresentação vemos um telão com legendas, mas há quem veja nisso que o que importa seria apenas a emoção veiculada, não o conteúdo (eu tenho cá minhas dúvidas). Os atores se sentem um pouco incomodados com o processo do diretor, de início, mas aos poucos vão aceitando melhor a sua condução. O jovem ator em certo momento perguntará ao diretor por que ele mesmo não interpreta Tio Vânia, já que tem idade adequada para o papel.

Há uma cena linda em que Misaki leva Kafuku num centro de reciclagem, mas é tudo muito limpo, com um ar industrial futurista (muito vidro e aço, praticamente sem cor), à beira-mar. Ali ela lhe conta a sua história.

Nota final: depois do filme resolvi reler o “Tio Vânia”. E também estou muito curioso para ler Murakami, o escritor japonês cujos contos inspiraram o roteiro do filme.

Uma língua é uma lente para o mundo

Há várias estórias boas no livro de Ted Chiang (História da sua vida e outros contos, 2016, Intrínseca), mas a “História da sua vida” é novela muito original e bem narrada. O filme segue o mesmo enredo, intercalando presente e um suposto passado. Sou faísca atrasada mesmo e só agora estou lendo o livro – terminei ontem. Há uma hipótese sobre a linguagem muito interessante ali, embora não seja nova.

Não seria fantástico se cada língua nova que a gente aprendesse nos fornecesse um tipo de ferramenta cognitiva que nos permitisse ver coisas que a nossa língua não deixa porque não tem conceitos para expressá-los?

Não precisamos de alienígenas que nos tragam uma tecnologia de escrita para avançarmos cognitivamente. Imaginem o choque dos europeus quando viram que fazer matemática com os algarismos dos árabes era muito mais fácil. Pensem também na quantidade de vocábulos gregos e latinos que boa parte do globo usa para nomear conceitos filosóficos e científicos, doenças, remédios e assim vai. De certa forma, a cada momento em que aprendemos/assimilamos um vocábulo novo para nomear algum aspecto da realidade (material ou abstrato) aprendemos algo novo, há um ganho cognitivo.

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– Esses dias revi ‘Tomates verdes fritos’. O povo fala muito mais de Thelma e Louise (também de 1991) – tem mais ação, é um road movie etc. – mas esse filme tem um elenco excepcional e também trata da luta de mulheres para lidar com homens escrotos, racismo, sem falar nas outras tristezas normais da vida (doença, morte etc.).

– O povo sempre reclama de algumas premiações do Oscar. Normal. Nem sempre o melhor é premiado. Não consegui ver muita coisa esse ano. Como sempre, os melhores filmes nos chegam sempre muito perto ou depois da cerimônia. A safra não foi lá aquelas coisas. Mesmo assim, um Almodóvar médio/bom sempre vale o nosso tempo. O Will Smith mereceu o prêmio. Ele está ótimo no filme, que é mais sobre a obstinação do pai de Serena e Vênus do que sobre elas. ‘Ataque dos cães’ também é ótimo e as indicações dos atores em várias categorias é sinal disso.

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Maria Helena de Moura Neves fala sobre linguagem neutra

Fala muito rapidamente, já que a matéria é mais sobre um prêmio concedido a ela em homenagem à sua trajetória de linguista e professora.

Viajar

A tua casa deve ser muito ruim se você vive com vontade de viajar e estar em outro lugar.

É o que diz a Fran Lebowitz. Claro. Ela é uma cronista meio ranzinza e tiradora de sarro que não gosta de avião, hotéis e de fazer as malas.

O Goethe morgadão num passeio na Itália, em 1786.

Essa glorificação da viagem me soa artificial. “Nos tornamos melhores quando viajamos” diz um anúncio de uma “agência” que troca suas milhas de programas de milhas por pacotes de viagens. “Melhores”? Tá bom!

Ir pra praia no verão? Nunca tive isso na infância. Nem meus amigos. Meus verões se resumiam a jogar bola na praça do bairro e nadar escondido na lagoa do parque ambiental ou em alguma cachoeira do interior da cidade. Escondido. Porque meus pais e os pais dos nossos amigos nem sonhavam que a gente fazia isso. Não tinha muito além disso pra um guri de catorze anos fazer nas férias numa cidade pequena do interior. Minhas filhas vão para a praia todo ano. Só falhamos em 2021, por conta da pandemia. Acho que estou passando a mensagem pra elas de que viajar no verão é quase uma obrigação moral.

Rubem Braga fala da sua vontade de pegar um barquinho e ir percorrendo o litoral, de praia em praia, e “tomando a cachacinha de cada lugar, sem pressa e com respeito” (O outro Brasil, 1953). Pra ele, viajar de avião ou de carro não tem graça. Viajar tem um pouco que ver com o se deslocar também, não apenas estar em outro lugar.

O que ele diria de nossas viagens de hoje, em que se pode comprar estadia num hotelzão desses em que não se precisa sair dele pra nada? Até a praia fica logo ali, a uns passos da piscina com borda infinita. Os garçons preparam caipirinhas, mojitos e outros drinks da moda. Recreacionistas divertem as crianças enquanto os adultos bebem, falam da vida e criticam os políticos…

Embora, viajar seja um pouco isso. Ócio. Comer e beber despreocupadamente. Horas e horas disponíveis para a leitura. Sem abrir e-mail. Sem pressa para assinar um documento. Sem algum prazo batendo na porta. Tudo isso fica melhor se for feito numa praia bonita ou numa casa no campo com piscina.

Mas se o seu negócio não é um hotelzão, não há nada que o capitalismo não dê um jeito. Hoje você consegue alugar a casa de um nativo, se quiser uma experiência mais imersiva na Côte d’Azur, em Los Angeles ou no Rio de Janeiro.

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Filme recente com o tema férias: A filha perdida (2021) (Netflix)

Acho que filme explora bem esse aspecto do estar fora de casa, longe do seu abrigo favorito. “Estar fora” nos coloca em confronto com os outros e um pouco com nós mesmos, que é, até onde entendi, um dos motes da história.

Não tão recente: Me chame pelo seu nome (2017) (Netflix)

Antigo: Éric Rohmer tem uma coisa com a praia e com férias. A colecionadora (1967), Pauline na Praia (1983), O raio verde (1986) são amostras disso. (os dois últimos estão no Mubi)

Começos

Todo começo de semestre uma sensação já familiar me assalta. Sinto que não sei mais dar aula e que vou ter que aprender de novo a planejar um semestre, organizar leituras, exercícios, datas de avaliações, que atividades são interessantes para ajudar os alunos a compreender e a assimilar os conceitos etc… Síndrome do impostor? Sei lá. Já estou há 12 anos nessa indústria vital e vai ver que a explicação seja mais simples. É só a ansiedade dos recomeços: novos alunos, novos textos para se falar de velhas questões sobre a linguagem…

Sinto essa sensação também quando vou escrever ficção. Preciso retomar anotações, dicas de escritores, manuais… como se cria um personagem, o que é um enredo, como criar pontos de vista… e assim vai. É cansativo.

Mas logo que entro de cabeça, é como andar de bicicleta de novo depois de meses sem andar. Não dá pra esquecer nem que a gente queira.

Dica de leitura: texto muito interessante sobre a voz na nossa cabeça que “lê” os textos quando fazemos leitura em silêncio.

Uma série:

A diretora (2021). Sandra Oh vive uma professora do departamento de literatura de uma universidade fictícia que é alçada ao posto de chefe e precisa lidar com os problemas dos professores, alunos e da administração. Nesse meio tempo tem que lidar com a filha, o pai, e a relação com um colega que é acusado de ser nazista após fazer o famoso gesto durante uma aula.

Finja que isso é uma cidade

Eu comecei a ver Pretend it’s a city e achei que lá vinha mais uma daquelas personagens novaiorquinas tagarelas óbvias que só sabem reclamar. Achei que ela seria um Woody Allen dos anos 1970 de vestido. Mas não era nada disso. Afinal, ela não usa vestido. Fran Lebowitz é engraçada, inteligente, culta, um pouco ranzinza, claro, mas não deixa de ser uma mulher cativante.

Todos os episódios são ótimos. Mas vou falar do último.

Nele, sobre bibliotecas (ou livros, mais precisamente), ela discorre sobre seu amor pelos livros e pela leitura. Tem uma reflexão que ela faz que me pegou. O livro é uma porta, não um espelho. Tá, ela nem é tão original assim, só que me deixou pensando.

Certamente que algo em nós quer se identificar com personagens e situações, mas também a leitura é uma entrada para outras vidas e mundos que estariam indisponíveis de outra forma. Provavelmente jamais irei para Cartagena, da qual conheci pedaços via Garcia Marques. Embora tenha nascido de origem humilde, sou homem e branco. Só a literatura para me dar uma amostra do que é ser mulher, negro, gay, morar numa favela, crescer numa fazenda, crescer nos anos 1970 durante a ditadura militar etc. Em resumo, é para isso que deveria servir a literatura, abrir nossos olhos para outras perspectivas de mundo.

E outros mundos, eventualmente. Mas mesmo a literatura de fantasia ou distopia, a boa, ela nos faz pensar sobre a nossa realidade.

E falando em realidade, ela nos permite conhecer um olhar sobre Nova Iorque. Nós, brasileiros médios periféricos que somos apaixonados por aquela cidade e seus personagens, passeamos por uma metrópole linda e confusa, com suas ruas batizadas por números cuja referência não conseguimos alcançar. Meu caso pelo menos. 12th Avenue? Não faço ideia de como seja. Broadway, Times Square, Wall Street, Brooklyn, Queens, Ellis Island… Esses nomes são mais fáceis de gravar.

Já se você não é lá muito fã da cidade, de repente é uma porta para conhecê-la. E a cidade é “lida” por uma de suas personagens. Morando lá desde seus 20 anos, Fran conhece seus moradores, seus barulhos, sua música, seus fetiches (dinheiro, fama, trabalho, comida, cultura, personagens etc.).

Nesse sentido, nada mais simbólico do que ela ser entrevistada por alguns “cronistas” da metrópole, principalmente por Martin Scorsese, e também em alguns momentos por Spike Lee. Em algumas entrevistas ela conversa com os atores Olivia Wilde e Alec Baldwin. Outro aspecto simbólico é que algumas cenas das conversas foram gravadas com Fran caminhando em torno de uma maquete da cidade. No início da série, a cidade vai sendo iluminada, e a Fran aparece, caminhando no rio da maquete. A última cena do último episódio é ela saindo de cena e as luzes se apagando. Não preciso explicar, né? O Scorsese sabe das coisas.

Notas

35

– Tenho me concentrado na escrita de um livrinho de divulgação de linguística, pensado para o público em geral, mas especialmente para o ensino médio. As introduções à linguística que circulam pelo país me soam todas entediantes e escritas para o universitário. O diletante não passaria do segundo parágrafo das nossas introduções mais vendidas. Minha ideia é contar um pouco da história da linguística e falar um pouco de suas áreas duras hoje, encarando a linguagem como um objeto científico. Vamos ver como me saio.

– Por conta disso vou dar um tempinho na ficção. Nas últimas semanas submergi na revisão de um romance que eu queria muito finalizar e acho que dei o meu melhor. Mudei o final, que não me satisfazia. E acho que agora estou um pouco mais feliz com ele, embora ainda não totalmente. Tem partes que eu gosto muito e outras nem tanto. Não sei ainda como tirar isso da gaveta. Acho que vai ser pela Amazon mesmo. Mandei a proposta para uma editora em 2015 e não fui respondido. Daí desanimei. Talvez devesse tentar de novo.

– Eu tinha começado um diário e meio que larguei mão. Minha última entrada foi em 25/05. Talvez porque a gente tenha vindo para a casa da minha sogra no interior, acho que eu saí um pouco do meu lugar, do que eu pensava para o diário, embora minha rotina tenha mudado pouco: escrevo pela manhã, leio à tarde e/ou ajudo a Gabriela com as tarefas da escola. Me exercito dia sim, dois não, dois sim, um não e assim vai. Embora fosse um diário, seria um diário ficcional, em que eu já previa que ia desistir dele algum momento.

– Estou relendo Memórias Póstumas. Eu já estava com vontade de reler desde o ano passado. Gosto muito do Machado e a prosa dele sempre me contamina de um jeito positivo. A argúcia, o olhar, a fluidez da prosa, a precisão com que faz comparações e alusões… sem falar na imaginação. O realismo foi a melhor coisa que lhe aconteceu, embora ele seja um autor que tem um apreço não desprezível pela fantasia e pelo absurdo (vide o alienista, o espelho etc.), a própria filosofia do Quincas Borba, que já aparece no Memórias, tem algo de absurdo. Não sei se entendi direito o que o Schwarz tinha em mente com a expressão ‘ideias fora do lugar’, mas o Quincas é um pouco isso, acho, o cara que bebe da filosofia europeia, quer criar algo próprio e o que sai é uma maçaroca. Deu nisso daí que vemos hoje: o brasileiro nacionalista se abraça na bandeira norte-americana e de Israel, que nos desprezam. Vai entender! Fora que é um livro que prova que não é preciso enredo nenhum pra se ter um livro bom: são as memórias de um morto, memórias de um cara que não fez patavina que preste na vida. Tem algum acontecimento de vulto? Alguma aventura? O próximo que a gente chega duma cena emocionante é quando o marido da Virgília aparece de surpresa na casinha onde os amantes se encontravam, obrigando Brás a se esconder.

– Revi Sonhos do Kurosawa (1990). O segmento sobre o van Gogh é ainda um dos meus favoritos. O último também. Como ele aproveita os espaços e as cores da natureza! E pensar que o medo dele era a energia nuclear!

– Antes que eu me esqueça. Dêem uma força. O livro tá baratíssimo ou pode ser lido de graça no Unlimited.