Por que (ainda) estão falando sobre o acordo ortográfico?

Me fiz essa pergunta ao ler um texto do Rodrigo Gonçalves na Gazeta do Povo sobre o tema. Ele esclarece os equívocos comuns. Para quem entende um pouquinho sobre como uma língua funciona ele não apresenta novidades, mas é sempre válido quando alguém da academia escreve um texto para ajudar o público leigo a entender melhor as coisas. Por que a escola não faz isso eu não entendo. A ortografia de uma língua não é a língua; um idioma não se reduz às convenções para representá-lo por escrito. A premissa me parece simples.
Na página onde estava o texto do Rodrigo, aparecia o link para outro texto sobre o assunto. Diogo Fontana, escritor e editor, segundo a minibiografia ao pé do texto, exibe os clichês de quem acha que sabe do que está falando, mas que provavelmente não deu um Google antes para conferir a veracidade de suas afirmações.
Pra começo de conversa ele fala de oito acordos ortográficos. Oito! Mário Perini e Lúcia Fulgêncio (Gramática descritiva do português brasileiro, Vozes, 2016), por um lado, ou Rodolfo Ilari e Renato Basso (O português da gente, Contexto, 2009), por outro, só mencionam três: vamos dizer que a reforma proposta por Gonçalves Viana em 1911 conte como um primeiro acordo no séc. XX; daí vem o de 1945; e agora o de 1990. Talvez tenham ocorrido outros que a literatura não mencione…  vai que… Mas esse aí de 2009, que o Lula assinou em 2004, já estava homologado em 1990. Só faltava os países aceitarem (ou “acordarem” mesmo, até onde sei).
Um segundo ponto que me soa completamente equivocado é o seguinte, que ele desenvolve a partir dos “oito” acordos.
“Essa flutuação do idioma rompe o elo entre as gerações. Pais aprendem a escrever de um modo diferente dos seus filhos. Nunca, em lugar nenhum, ergueu-se uma grande cultura em alicerces assim movediços. A língua portuguesa muda tanto no Brasil, e tão rapidamente, que não tarda o dia em que o acesso aos clássicos estará obstruído para sempre, e os livros de um Cruz e Sousa, ou de um Machado de Assis, serão leitura para especialistas em Linguística e Filologia.”
“Flutuação do idioma”? Não sei como escrever veem ou vêem é capaz de fazer um idioma flutuar, mas tudo bem (acho que ele deveria ler o texto do Rodrigo, para não misturar a língua com a sua ortografia). Camões escrevia hum, naõ, ingrês, e se a gente for ler ele hoje, vai suar um pouco, mas lê de boa. Só que não precisa. As novas edições atualizam a ortografia. Nesse ponto o problema não é a atualização, é o fato de que iremos conviver ainda por um tempo com livros nas duas grafias. Assim como acontece quando pegamos livros dos anos 50, 40 ou 30… Pra um profissional da escrita ele me parece ter pouca convicção na reedição de livros.
Ele fala de anos de discussão nas universidades… não sei de onde tirou isso também. Muitos linguistas escreveram sobre o acordo. Até saiu uma edição especial de uma revista acadêmica, a Linguasagem (UFSCar) sobre o tema: http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/especial_ao/. Só que segundo Perini e Fulgêncio, não teve participação alguma da academia no acordo. Aliás, o tom de estudiosos como Mario Perini, Lúcia Fulgêncio, Carlos Alberto Faraco e Luiz Carlos Cagliari, em geral, é de crítica à reforma. Uma por que a simplificação alegada não ocorreu. Perini afirma que trocamos um sistema ruim por outro ruim, e dá seus motivos no seu texto. E outra porque a afirmação que a unificação da ortografia poderia beneficiar a indústria editorial brasileira e a promoção da língua portuguesa no exterior também não se seguem.
Por fim, tem a afirmação de que a ortografia é do Lula, “empurrada goela abaixo, na canetada de um presidente analfabeto”, uma declaração que só pode ser sacanagem, daquelas que um Augusto Nunes assinaria com gosto. Como tá na moda falar mal do Lula, qualquer bobagem que se atribua a ele a Gazeta do Povo publica sem receio.

Por que “fake news” funciona: a linguística da mentira

Se eu batesse na sua porta, tarde da noite e dissesse: “Me esconda, por favor! Estou sendo perseguido por agentes da KGB.” Você pensaria que eu enlouqueci. Mas como você chegaria a essa conclusão? Se eu sou seu amigo, confiei em você para me esconder, por que você não acreditaria em mim?

Se você é bem informado, deve saber que a KGB (o serviço secreto soviético) não existe mais e que a probabilidade de eu, Luisandro Mendes de Souza, um mero pai de família de classe média, professor universitário e flamenguista ser um espião também é nula. Ou seja, você se baseou nos fatos, ou melhor, nas relações que a afirmação “Estou sendo perseguido por agentes da KGB” tem com o mundo. Para que essa frase fosse verdadeira seria preciso que eu fosse um espião (ou algo parecido) e que a KGB ainda existisse. Como nenhuma dessas condições é preenchida (talvez tenha outras), você conclui que eu devo ter enlouquecido.

Mas agora, veja as afirmações seguintes:

(1) O Lula é dono da Friboi.

(2) A Dilma é dona de uma fazenda gigantesca no Mato Grosso com milhares de cabeças de gado.

(3) Jesus Cristo caminhou sobre as águas.

Considere (1). Por que tanta gente acredita nela (vai saber, né? Ou acreditou por tanto tempo), mesmo não existindo nenhuma prova material de que é esse o caso? O que nos leva a tomar como verdadeiras afirmações que carecem de base factual? O mesmo vale para (2) e (3). (3) é um dogma religioso. Por que acreditamos nesse milagre, mesmo sabendo que ele nos foi contado por alguém que escreveu essa história há quase dois mil anos, e que provavelmente não testemunhou o milagre, alguém contou a ele? Literalmente é uma fofoca: alguém contou para ele e ele está contando para a gente. Por que não tomamos (3) como ficção ou mito?

O filósofo Paul Grice (1913-1988) propôs que existe o que ele chamou de Princípio de Cooperação, uma espécie de acordo tácito entre os falantes de uma língua, que diz que todos fazemos afirmações que contribuem para os propósitos da conversa em que estamos envolvidos. Claro que esse princípio é uma idealização, mas tem um poder explicativo muito poderoso. Ele inclui ainda algumas máximas e a que nos interessa é a da Qualidade. A Máxima da Qualidade especifica que i) não afirme o que acredita/sabe ser falso e ii) não afirme algo para o qual você não possa fornecer evidências. Seria o paraíso se todos se comportassem assim.

A mentira funciona justamente porque temos uma tendência muito forte a obedecer o princípio da cooperação e acreditar que a pessoa com quem estou conversando está seguindo as máximas, principalmente a da qualidade. As conversas seriam muito complicadas e cansativas se a cada afirmação que meu interlocutor fizesse eu duvidasse da veracidade delas. Claro, talvez possam existir situações em que estamos dispostos a violar essas regras. Por exemplo, um pai pedindo explicações a um filho por algo que ele tenha feito de errado. O pai supõe que a probabilidade de o filho falar uma mentira é alta, principalmente se o filho já fez isso antes e teme alguma punição. Ou um investigador de polícia interrogando um suspeito de um crime.

É possível que outros fatores estejam envolvidos, como ideologia. Acredito em afirmações que carecem de base factual porque elas se encaixam na minha visão de mundo. Em função de toda a ajuda que o governo federal deu à JBS, alguém supôs que ela pertencesse a Lula, ou alguém mentiu mesmo só para ver se a mentira colava (e colou). Mas caras como Trump, ou Dória, ou Bolsonaro, sabem que podem afirmar o que quiserem, verdade ou não, que ninguém vai se importar. A menos, claro, que seja algo muito estúpido, tipo, “A terra é plana”, ou “Vacinas causam autismo” (uma tese menos estúpida, mas que carece de evidência, afinal, autismo não se adquire depois do nascimento).

Essa onda de se criar notícias falsas recebeu até um nome bonito “pós-verdade”. Um nome que me passa a conotação de que a era da verdade acabou, como se fosse datada. É coisa velha falar a verdade. Não deveria ser assim. Estamos, perigosamente, caminhando para a era da “não-verdade”, ou da mentira deslavada.

A mentira sempre existiu no debate político. Isso é um fato. Quando Regina Duarte afirmou que tinha medo que Lula ganhasse a eleição numa propaganda do PSDB muita gente acreditou. Um pouco em função da imagem que Lula tinha construído para si nos anos 1980-1990, a de um sindicalista radical que ia decretar a moratória da divida externa e acabar com a propriedade privada (risos). Personalidades públicas dão um ar de credibilidade ao que afirmam. Se a Fátima Bernardes diz que os produtos Seara são de boa qualidade, por que eu duvidaria, se ela todos os dias entra nos lares das pessoas falando sobre muitos assuntos?

Da mesma forma, por que eu duvidaria de uma afirmação de Bolsonaro, que eu sei que está do meu lado e não mentiria para mim (se eu estivesse do lado dele, o que não é o caso deste que vos fala)? Por que eu duvidaria de uma afirmação do Lula, que eu sei que também não mentiria para seus eleitores? Simplesmente não me dou ao trabalho de duvidar do que os políticos e jornais afirmam porque é mais fácil acreditar em afirmações que se enquadram na minha visão de mundo.

As redes sociais são pulverizadoras de mentiras. Deveríamos combater isso. Muitos grupos na nossa sociedade não estão interessados na verdade ou no bem comum. No debate político o objetivo principal é um só: o poder. É óbvio que de posse do poder grupos políticos diferentes irão tomar decisões baseadas em programas políticos, ou declarações que fizeram na campanha eleitoral. Ficar de olho no que eles afirmam deveria ser a regra. Não deveríamos aceitar generalizações, que também são falsas, como “Todos mentem”, ou “Todos são iguais”, que só ajudam os mentirosos e os canalhas.

Outro fato que me assusta: por que as pessoas acreditam que há um programa nacional de doutrinação comunista nas escolas e que isso precisa ser combatido? Por que se acredita nessa tese, vindo ela de pessoas que acreditam em afirmações como: “Jesus andou sobre as águas”, “O PT quer instalar o comunismo no Brasil”, “Os homossexuais estão destruindo a família”, “Reduzir a maioridade penal traz mais segurança”? Ora, talvez porque eu já acredite em todas estas, porque eu não acreditaria naquela também?

O mensalão e a semântica

Uma polêmica que gira em torno do mensalão me parece uma questão semântica. É semântica porque te a ver com como definimos o “mensalão”. A acusação inicial de Roberto Jeferson era de que havia uma mesada para os políticos que apoiavam o governo, por isso o esquema foi batizado (por quem?) de “mensalão”. Não lembro de os envolvidos negarem a origem espúria do dinheiro, o PT sempre negou o pagamento mensal, e acredito que é isso que Lula faz quando diz que o mensalão não existiu, ele quer dizer que não houve o pagamento mensal. Mas afinal, a que tipo de estado de coisas no mundo a expressão ‘mensalão’ se refere?

Há basicamente duas coisas: a) para o PT, ‘mensalão’ é a acusação de que o partido tenha usado dinheiro de caixa dois para comprar votos de parlamentares. Dinheiro esse, pelo menos de acordo com o que eu entendi sobre tudo que se publicou sobre o caso nos últimos tempos, veio de empréstimos que de fato não existiram. A resposta é que o dinheiro veio de contratos fraudulentos entre empresas públicas e as agências do Marcos Valério, que, depois de pegar a sua comissão, repassava o dinheiro ao partido. b) o escândalo como um todo. Vou ser claro, o que o partido nega é o pagamento MENSAL, que de fato não foi provado, já que o partido usou o dinheiro para financiar campanhas (inclusive a do Lula? Isso ninguém perguntou, que eu sabia), não para comprar votos parlamentares. O que seria bem estranho, pagar para gente do partido e de partidos aliados votar nas matérias de interesse do governo. Isso eu acredito que não tenha acontecido. O esquema todo de esquentar o dinheiro usando empréstimos falsos, sim.

De certa forma, o esquema é menor do que querem nos fazer crer. Não dá pra medir o quão grande ele é, mas ele tem sua importância por duas razões: O PT sempre foi um arauto da honestidade e o escândalo mostrou que o partido não é diferente de nenhum outro; e foi articulado por pessoas importantes do partido, que possuíam papéis importantes no governo. Geralmente os escândalos políticos eram articulados por deputados e senadores visando enriquecer com desvio de verbas públicas. Aqui o buraco parece ser mais embaixo (ou mais acima), o objetivo dos desvios era a compra de apoio parlamentar, segundo a denúncia original. Mas basta ler o que se publicou sobre o caso para ver que não foi esse o caso. Por mais que Joaquim Barbosa tenha escrito que, sim, o PT comprou apoio parlamentar. Mas por ele ter escrito isso, não quer dizer que os eventos tenham acontecido. Quem dos parlamentares foi acusado de enriquecimento ilícito? Nenhum. Então pra onde foi o dinheiro? Segundo consta, foi para pagar despesas de campanha do PT e dos partidos aliados.

Tem ainda essa história toda de que o Lula disse que o mensalão não existiu. Na verdade, o que ele negou foi o pagamento da mesada aos parlamentares, não o esquema como um todo (clique aqui). O que a gente viu ser julgado foi apenas uma fatia do negócio, provavelmente, uma versão dos fatos. Jamais saberemos o que de fato aconteceu. O que a população, os jornais, e todo o resto (excluindo o PT) entendem quando ouvem ou leem a palavra ‘mensalão’ é o escândalo como um todo. No final das contas, o debate político que se trava em torno disso é sobre as coisas que a palavra engloba, que para os dois lados são diferentes.

Aqui tem um guia bem completo da história toda.