Conceitos de gramática: um experimento

Um dos grandes problemas das gramáticas tradicionais é a falta de precisão em suas definições. Esse fato tem sido apontado por uma série de linguistas nos últimos anos. Até que ponto isso contribui para o pouco domínio da metalinguagem gramatical que os alunos possuem ao sair do ensino médio? Poderíamos nos perguntar também qual a sua importância. Qual a necessidade de se saber identificar o sujeito, o predicado, o adjunto adnominal ou adverbial de uma oração? Se sabemos que esse saber não ajuda em nada a escrever melhor, para que então aprender essa montoeira de coisas?

Há duas razões. Uma é cultural, segundo Mário Perini, na sua Gramática do Português Brasileiro (Parábola), para quem esse saber é tido como importante pela sociedade. Assim como julgamos ser importante conhecer a história da Grécia ou da França, saber gramática é fundamental. Outra, mais prática, pode sim estar ligada ao escrever melhor, embora não seja uma pre-condição a isso. Se uma parte do escrever bem é dominar algumas regras do código (pontuação, ortografia, diferenças entre a norma cultura e as normas coloquiais etc.), então poderíamos supor que esse saber se faça válido. Afinal, como alguém pode entender uma regra como essa abaixo sem saber a que se referem as noções destacadas? “(…) a prática é não pontuar o adjunto deslocado quanto ele vier antes de um sujeito posposto: Em maio começa a temporada da tainha.” (Cláudio Moreno, Guia prático do português correto: pontuação, vol. 4, L&PM). Assim, dominar a metalinguagem é essencial para que o camarada saiba falar sobre a língua e entenda o que se diz quando se fala dela.

O que acontece, suponho, é que apesar dos problemas da nomenclatura gramatical vigente, fazemos pouco para melhorá-la. Pessoalmente, entendo que o busílis (eu estava louco pra usar essa palavra!) é como definimos as funções, não propriamente elas. Há quem acredite que o problema todo não é esse, e sim como se ensina.

De qualquer modo, poderíamos fazer um experimento. Uma classe aprenderia a nomenclatura tradicional com as suas respectivas definições clássicas. Outra classe aprenderia as funções sintáticas através de definições ‘mais estruturais’, digamos. Por exemplo, poderíamos bolar o seguinte quadro comparativo. Primeiro temos a definição tradicional, depois uma definição mais estrutural, logo mais segura ou precisa (não necessariamente ‘mais certa’):

sujeito: o termo do qual se diz algo vs. o sintagma que concorda em número e pessoa com o verbo principal

predicado: o que se diz do sujeito vs. o núcleo estrutural da oração.

objeto direto: complemento do verbo/termo que sofre a ação que o verbo descreve vs. sintagma que complementa sintaticamente o verbo

Claro, essas definições são esboços. Poderíamos ainda supor uma terceira classe, que aprenderia definições que levassem em conta aspectos sintáticos e semânticos ao mesmo tempo. Digamos que o adjunto adnominal pudesse ser definido semanticamente como o ‘termo que modifica o nome/substantivo restringindo sua referência’ e sintaticamente como ‘o sintagma que é adjunto do sintagma nominal e com ele forma um constituinte’. E assim por diante para as outras definições.

A pergunta é: quem ao final de um certo período de aprendizagem dominaria melhor as funções? Quem saberia usá-las com mais segurança para falar sobre a estrutura da oração e compreender problemas sintáticos ou dominar regras de pontuação, ou mesmo ser capaz de ver esses problemas em seu texto e no texto dos colegas?

Haveria algum problema ético ao fazer um experimento desses? Suponho que não, mas eu sou meio tongo pra essas coisas. Ainda não entendo por que um teste de julgamento de gramaticalidade precisa de Termo de consentimento.

Dica de leitura: Perini, Princípios de linguística descritiva, discute algumas das funções tradicionais e tenta caracterizá-las de um modo ‘mais sintático’, digamos.

O ensino de português na escola e na universidade

Sempre sinto uma dose de culpa quando vejo essas reportagens que mostram alunos recém-saídos do ensino médio (EM) ou graduandos se dando mal em redações, ditados, entrevistas ou atividades que requerem o uso da língua portuguesa (LP), afinal, parte do meu trabalho como professor universitário é formar professores. Claro que o português é o centro de tudo e há três causas para o fracasso do ensino público: a) despreparo do professor; b) estrutura escolar (currículo equivocado, espaço físico, bibliotecas, etc.); c) cultural: nossa sociedade não valoriza as atividades de leitura e escrita como um bem a ser cultivado, o discurso é bonito, mas na prática ainda lemos menos livros per capita do que a Argentina. Não quero falar disso exatamente, mas há uma ligação entre esse problema e o que eu faço: ensinar LP para calouros. A pergunta inevitável é: por que precisamos ensinar LP para quem sai do EM de onde deveria sair sabendo tudo que é preciso saber para seguir a vida profissional? Não é uma forma de “consertar” ou “amenizar” o fracasso do ensino de português nas nossas escolas? Eu diria que sim e que não. Vejamos os dois lados.

Sim, estamos consertando o ensino fracassado. Primeiro devemos ter em mente qual o objetivo do ensino de LP nas escolas. Lendo os documentos oficiais (os parâmetros curriculares), o leitor vai encontrar expressões bonitas como “cidadania”, “formação integral do indivíduo”, “preparação para o mercado de trabalho”, etc., tudo isso é algaravia pra dizer que o objetivo da escola é formar cidadãos capazes de utilizar a leitura, a escrita, e a fala em situações sociais com competência. Afinal, não escrevemos, não lemos e não falamos em todas as situações sociais da mesma forma. O fato é que mudamos a organização da nossa produção linguística, quer estejamos no trabalho, quer estejamos em casa, quer estejamos com amigos.  Ensinar LP na universidade seria então ensinar o que o cidadão deveria ter aprendido no EM e não aprendeu, coisas como ortografia, pontuação, expressar-se oralmente sem usar gírias (que nada mais é do que mostrar para o aluno que se precisa mudar a forma como se fala dependendo da situação, uma tarefa fácil, mas poucos professores fazem isso) e efetuando todas as concordâncias, tarefa impossível de se realizar, se a pessoa não mergulha no uso culto do português (escrito e oral: não basta ler e ouvir, é preciso pensar e analisar o que se lê e o que se ouve). O que chamamos de “português” não deveria ser um conjunto de “conteúdos”, mas um conjunto de competências que os jovens deveriam adquirir, de posse delas (ler, escrever, falar, ouvir) ele deveria ser capaz de se sair bem em qualquer carreira que escolhesse: de instalador de telefone da Oi, até engenheiro mecatrônico ou atendente de teleatendimento.

Não, tem coisas que não precisam ser ensinadas no ensino médio e deveriam ser ensinadas na universidade. Para quem não sabe, o ensino de LP na universidade busca essencialmente refinar as capacidade de leitura e escrita dos calouros. Isso acontece através de atividades de escrita e leitura que trabalham com os gêneros textuais que circulam, preferencialmente, na academia: resumos, resenha, fichamento, relatório, projetos, artigo, ensaio, etc. Para um aluno que conclui o ensino médio e não vai entrar na universidade esses gêneros não são importantes, e portanto, não precisam ser ensinados na escola. Será? Eu diria que as duas premissas estão erradas:  a) a necessidade de refinar as habilidades de leitura e escrita; b) a universidade precisar ensinar os gêneros que utiliza. Há várias formas de resumos circulando na nossa sociedade, tais como sinopses de filmes que lemos em jornais e sites, na quarta capa dos livros ou na orelha sempre temos uma breve descrição do enredo, no começo ou no final dos artigos científicos, projetos e monografias temos um resumo (teses e dissertações são monografias também, só cumprem funções diferentes e se exigem padrões qualitativos diferentes também aos autores delas), que cumpre a mesma função em todos esses lugares: apresentar o conteúdo ao leitor e seduzi-lo a ler a obra. O professor de português universitário dirá: tá, cara pálida, e artigo científico? Não existe em outro lugar além das revistas acadêmicas. Ledo engano, existe sim. Se o professor lesse revistas como a Scientific American de vez em quando saberia, ou mesmo grandes jornais nacionais, que ocasionalmente publicam ensaios de cientistas. Chamados de “artigos de divulgação” esses textos possuem basicamente a mesma estrutura dos artigos acadêmicos, embora em linguagem mais acessível, e sem a profundidade de discussão que se exige dos textos que são submetidos aos periódicos acadêmicos. Se esses textos fossem lidos e estudados na escola: nas aulas de física, química, biologia, e mesmo língua portuguesa ou história, quando o aluno chegasse na universidade seria um leitor e escritor competente. Professores de física, química ou matemática que dizem que não se precisa saber ler e escrever para ser um físico, químico ou um matemático são estelionatários e deveriam ser demitidos. Só pra citar dois importantes físicos do século XX, Einstein e Feynman possuíam um grande apreço pela escrita e pela popularização da ciência. Assim, o meu argumento essencialmente é: não se ensinam os gêneros da academia na escola porque não se ensina ciência na escola. Todo mundo já deve ter feito aquele experimento de cultivar um grão de feijão no algodão. O professor provavelmente pede um relatório(!), que nada mais é do que um narração que descreve dia a dia o que aconteceu com a semente, as transformações pelas quais ela vai passando ao longo dos dias, desde que bem cuidada e aguada. Isso não difere em nada de um pesquisador da Embrapa que está estudando novas sementes de soja para aumentar a produtividade e fazer a semente resistente às pragas. E por que no ensino médio não se fazem experimentos? Lembro que as escolas em que eu estudei possuíam laboratórios fantásticos, cheios de pipetas, tubos de ensaio e outros vidros de formatos diferentes que não sei nomear, no Colégio Estadual Túlio de França (União da Vitória-PR) tem até um esqueleto (espero que ainda esteja lá), não é qualquer escola pública que tem o privilégio de ter a estrutura que aquela escola tinha, mas porque a gente ia pro laboratório como se fôssemos fazer uma excursão a um museu, em que não tínhamos o direito de tocar em nada, passar em linha pelo microscópio e olhar rapidamente o que tinha na lâmina, meramente um exercício de curiosidade (o sangue é assim?!).

Mas por que então não se ensina o português nas escolas se utilizando desses gêneros? Por uma série de razões: a) currículos equivocados: a perspectiva conteudista e vestibuleira torna o EM uma grande apresentação de períodos literários e redação dissertativa, a redação do vestibular e dos concursos, que é importante claro, mas que deveria ser um subproduto, não um objetivo final do ensino (qual a diferença entre o ensino público e o privado? Há muitas, mas a principal é cultural, meninas de classes humildes saem da escola para virar balconistas, e meninas de classe média saem da escola privada para virarem psicólogas, farmacêuticas, fonoaudiólogas, etc., os professores sabem disso, e fazem a sua parte para que esse destino se cumpra); b) professores mal-preparados: infelizmente muitos professores dos cursos de letras parecem ter orgulho de dizer que não fazem ciência (não sei o que fazem na academia então) e essa desvinculação entre o fazer científico e o fazer pedagógico (o tipo de ideia que colocam na cabeça dos graduandos e futuros professores de português) faz com que tenhamos propostas pedagógicas mirabolantes desligadas da realidade; c) se tivéssemos uma política séria de ensino de língua ela estaria inexoravelmente vinculada a uma perspectiva interdisciplinar: professores da área de exatas e biológicas (matemática, física, biologia) e de humanas (geografia, história, filosofia, etc.) deveriam estar engajados em um projeto escolar de se trabalhar com textos acadêmicos de divulgação: hoje, felizmente, temos revistas como a História, a Filosofia, a Scientific American, a Galileu que são destinadas ao grande público; d) como consequência de (c), projetos de pesquisa interdisciplinares que tivessem como requisitos relatos escritos, em conjunto, o professor de português e o professor de biologia ou história, poderiam desenvolver projetos de escrita em que o biólogo ou o historiador fornece o mote da escrita e o professor de português auxilia os alunos no “como” escrever, possivelmente tornando esse resultado depois público, na forma de escrita de livros, exposição dos trabalhos aos pais, feira de ciências da escola, escrita coletiva de um artigo de divulgação a ser enviado para o jornal da cidade, etc. As alternativas são muitas, falta o quê então: vontade, estímulo, compromisso, gestão eficiente, formação adequada, etc. Como o personagem Walter White de Breaking Bad, o professor de física, química ou biologia das nossas escolas é alguém que não se deu bem na iniciativa privada e virou professor para não passar fome, muito poucos escolhem o magistério como primeira opção (é só comparar o salário de um químico na iniciativa privada com o salário de um professor com graduação para saber o porquê).

Planejando uma disciplina

Muito do sucesso de uma empreitada pedagógica se deve em função do planejamento (como quase tudo na vida). E planejar uma disciplina acadêmica que irá decorrer ao longo do ano não é tarefa das mais fáceis. Claro, quando chegamos na universidade temos programas pré-estabelecidos e nossa tarefa se resume, quando muito, a selecionar dentro da bibliografia sugerida por quem elaborou o programa quais textos iremos trabalhar ao longo do semestre ou do ano. Mas essas escolhas em geral são difíceis, porque na sua maioria os textos introdutórios que possuímos no Brasil são frutos de escolhas sempre tendenciosas, que deixam em descoberto áreas importantes, quando não passam batido por temas básicos, supondo uma falsa homogeneidade nos cursos de Letras pelo Brasil afora.

Aqui onde leciono, FAFIUV, a disciplina da Linguística possui uma carga horária pequena (72hrs anuais com aulas nos quatro anos do curso). Isso é muito pouco. Como comparação, na UFSC, as disciplinas da área de linguística têm 60hs/aula de carga horária por semestre. A linguística aqui tem 30-32h/a por semestre, uma aula na semana (2h/a), o que de fato é muito pouco. Isso se deve a uma grade que supõe que o núcleo do curso de Letras é a disciplina de Língua Portuguesa, organizada basicamente em torno da gramática e da produção e estudos textuais (se os acadêmicos saíssem da faculdade dominando a GT e sendo bons escritores já valeira a pena, mas não é isso o que ocorre, de fato é o contrário). Na verdade o curso de Letras deveria ser organizado em função da linguística e da literatura (teoria e literaturas brasileira, portuguesa e específicas das línguas). Em função dessa carga horária temos que organizar e selecionar tópicos importantes no estudo da linguagem: introdução aos estudos linguísticos, fonética/fonologia, morfologia, sintaxe, semântica/pragmática, aquisição de linguagem, sociolinguística, linguística textual e análise de discurso. Na realidade, temos 30hrs para dar uma disciplina como sintaxe, que tomaria pelo menos o dobro para ser ministrada de forma mínima. Aí reside o dilema.

O dilema está nas escolhas: que tipo de informação é importante? Será que a escolha do material didático não revela um preconceito teórico da minha parte? Privilegiar um tópico de estudo poderia excluir outro que poderia ser mais relevante para a prática futura desse profissional? Será que os textos são acessíveis aos alunos? Quanto tempo levarei para explicar a dicotomia língua/fala? Veja que se eu passar 3 dias falando de Saussure, são 6hs/a, numa carga horária de 30-32, isso é bastante tempo. Daí advém o dilema da escolha: será que eles sabendo pelo menos isso está bom? Será que não estarei negando a eles um conhecimento que poderia ser passado de maneira superficial, mas que pudesse instigar neles o desejo de se aprofundar, mesmo que por conta própria? No momento prefiro a última opção, ressalvando que, por exemplo, a noção de valor é fundamental para entender o funcionamento da fonologia e da morfologia (e.g.: o plural é o não singular e o singular é a ausência do plural), pelo menos no paradigma estruturalista.

A grande queixa dos professores é que os alunos, a cada ano, chegam sabendo menos na universidade. Não gosto desse discurso derrotista. No fundo, a culpa é de quem forma professores também (não só do estado, da escola ou do professor preguiçoso). Se estamos recebendo alunos fracos é porque os professores deles são fracos ou despreparados. Acredito no que o Noam Chomsky disse no Managua Lectures, o sucesso do ensino depende muito mais do professor saber despertar no aluno a curiosidade, gostar de aprender o tópico (qualquer que seja ele). De resto, opções pedagógicas ou teóricas são o que menos importa. Se o aluno tiver curiosidade ele vai atrás e vai descobrir por si mesmo as coisas. Sabe aquele ditado: time bom, nem técnico ruim consegue estragar? Acho que aluno bom, nem professor ruim consegue estragar. Só que o problema são aqueles que precisam de monitoramento e atenção. Esses são estragados pelos professores ruins. No final das contas, penso que se queremos acadêmicos melhores, está na hora de formarmos professores melhores. E isso passa necessariamente por uma reflexão sobre que tipo de professores estamos formando, que tipo de conhecimento esperamos que eles tenham. Não é preciso saber teoria gerativa para ser um bom professor de língua portuguesa. Mas entre um professor que conhece o funcionamento da língua (da fonética ao discurso) e um que sabe mal e porcamente a GT, eu fico sempre com o linguista. Um linguista rudimentar sempre será capaz de ler e entender facilmente qualquer GT escolar, já o oposto não ocorre.