Ser pai

Nunca quis ser pai. De verdade. Às vezes eu me pergunto por que é que eu fui me casar justamente com alguém que eu sempre soube que queria ser mãe. Mas é aquela coisa, a gente vai lidando com o que consegue controlar, os próprios medos, expectativas, desejos… entidades mutantes… e o negócio é que eu casei, passei num concurso público, me mudei para Porto Alegre e… por que não ser pai? Esse é ciclo tradicional da vida adulta e eu fui me deixando levar.

Eu poderia ter batido o pé. Ela sabia. Tínhamos conversado sobre isso algumas vezes. Eu não me via como pai. Eu, Luisandro, pai? Um colega de universidade, naquela época em que a Gisele estava tentando engravidar, me disse que também não pensava em ter filhos quando era jovem (aliás, coisa muito comum isso de não querer ter filhos entre professores universitários). Só que aconteceu. Depois de ser pai de duas meninas, ele não se arrependia. O sentido era o oposto. Naquela altura da vida, já cinquentão, disse que estaria arrependido se não tivesse sido. Aquilo virou uma chave em mim. Gosto de experiências novas e ao não ser pai eu estaria me privando de emoções que só filhos podem proporcionar.

Pula pra 2022. Sou pai de duas meninas, Gabriela (8) e Sofia (4).

Aparentemente, ser um bom pai nunca foi uma grande questão na arte (no cinema, na literatura). Deus pediu a Abraão pra sacrificar seu filho e ele foi lá sem pestanejar, embora fosse só um teste (Gên., cap. 22). Esse ‘deus pai’ da Bíblia eu dispenso. O mais comum na ficção e na história é os filhos estarem loucos pra tomarem o lugar do pai, ainda mais se houver poder envolvido (Édipo, Rei Lear, César etc.). O Jack Pearson, de “This is us”, é um bom pai, faz tudo pela família e, em vários sentidos, se sacrificou por ela. Talvez porque não exista aí uma questão.  No que eu discordo.

Não acho que seja fácil ser pai. Lembro dum texto do Marcos Piangers que dizia que o principal é estar ali, presente. Crianças são seres que demandam atenção e dão trabalho. Muito. Mais do que a coisa toda de ser pai (colocar alguém no mundo), o que mais me assustava era isso do trampo envolvido: dar banho, trocar de roupa, dar comida, levar pra escola, ajudar na lição, brincar, ter que ver todos os episódios de Ladybug e Princesinha Sofia etc. E o que me pega nem é tanto fazer essas coisas todas, que eu faço (reclamo, mas faço).

O que me afeta muito é que estou deixando de ver minha série pra ver as delas, deixo de ler meu livro para ler uma história para elas dormirem, há um bom tempo não vou ao cinema, e não me lembro da última vez que fui num show para ouvir música ao vivo ou num restaurante sem espaço kids e sem me preocupar se tem também alguma coisa para elas comerem lá. Basicamente a gente deixa de ser a pessoa mais importante da própria vida (frase que vi num seriado cujo nome me escapa agora). E isso assusta um bocado uma alma narcisista e egoísta como a minha. Na real, confesso, o que eu acho difícil é dar carinho.

A gente, bicho homem, não foi ensinado a dar carinho.

Parêntese: tive uns exemplos meio bostas de pai na família. Todos uns cachaceiros, grosseiros. Sabe esses avós grisalhos fofos que brincam com os netos no Natal? Pra mim é ficção. Meu avô materno largou minha avó quando minha mãe e meus tios estavam ali com seus dez anos e pouco, a deixou sem pensão, tirou as filhas meninas da escola e as colocou para trabalhar de domésticas. Baita exemplo. Do avô paterno me lembro vagamente, convivemos pouco. Sem falar que não conheço meu pai biológico…

Mas aí a vida me deu duas filhas meninas. E elas demandam muito carinho. Elas querem colo, querem ir no cangote. Digo que elas não são humanas, são micos que querem viver dependuradas no meu pescoço. Elas choram porque acabou a bateria do tablet, elas choram porque estão com sono e não querem dormir, elas choram porque não querem tomar banho, elas choram porque não querem sair do banho, elas choram porque o cachorro deu uma mordidinha que machucou a mão delas…

Uma voz em mim me diz pra sair correndo, outra pra ir lá dar um tapa na bunda delas, outra pra dar um grito. Pois foi isso tudo que eu vi os homens da minha família fazendo. E talvez tenha que ver um tantinho com essa minha personalidade desajustada também (torcendo aqui pra terapia concertar isso). Decididamente, não quero ser como eles. Mas outra também diz pra ir lá e dar um abraço, pegar no colo e fazer uma coceguinha. Na maioria das vezes, essa é a voz que tem vencido.

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Trecho do Papo de Segunda dessa semana sobre paternidade (onde se inscreve pra ser amigo desses caras?). Ter um programa de televisão falando dessas questões é sintoma disso tudo que eu falei acima.

Ad10s, Maradona!

Lembro de uma vizinha da infância que dizia que futebol era só 11 homens de cada lada correndo atrás de uma bola. Como todas as simplificações, essa aqui não mente, mas não poderia estar mais equivocada.

O futebol é o esporte popular do mundo por algum motivo. Talvez porque basta uma bola e duas pessoas dispostas a jogar, talvez porque é um jogo em que nem sempre o melhor time ganha ou em que um time pode ter um sujeito que seja capaz de colocar a bola debaixo do braço e colocá-la pra dentro do gol com tanta facilidade que a gente fica se perguntando porque ninguém mais consegue fazer isso assim?

[Nisso o futebol tem uma magia parecida com a escrita. Podem falar que é trabalho, leitura, dedicação etc., mas lendo um Ítalo Calvino ou uma Clarice Lispector, a gente logo percebe que tem muito talento ali e o que eles fazem com simplicidade, elegância, e até com naturalidade, a gente (os mortais), precisamos suar muito pra alcançar. E frustrantemente não alcançamos.]

Uma das minhas primeiras lembranças de Copa do Mundo foi aquele jogo de 1990 em que o Maradona parte do campo de defesa e vem com a bola até a entrada da área quando 4 jogadores de amarelo se juntam para bloqueá-lo, mas, já se desiquilibrando, ele acha Caniggia entrando livre pela esquerda, que domina a bola, dribla o goleiro e marca o gol que desclassifica o Brasil daquela competição. A gente (nós, brasileiros) deveríamos odiá-lo por isso. Mas aquele time era fraco mesmo e duvido que algum brasileiro hoje nutra algum ódio contra ele por aquele jogo.

Impossível não se emocionar com o narrador argentino gritando [maravilhado com o que acaba de testemunhar “Quero chorar! Deus Santo! Viva o futebol!”] na narração do segundo gol contra a Inglaterra. É o jogo do famoso gol da “mão de Deus”. Acho que ele fez esse golaço nesse jogo só pra deixar bem claro que a Argentina ganhou à vera.

Como informa o pequeno texto ao final do vídeo, Maradona participou de 10 dos 14 gols da Argentina naquela Copa e para a crítica esportiva, ele levou aquele time nas costas. Parece pouca coisa, mas não é.

Chutar uma bola pra dentro do gol parece um negócio fácil de fazer. Parece fácil quando a gente olha gênios como o Maradona fazendo.

Compartilhando

Essa semana só vou compartilhar coisas.

– No vídeo abaixo, Eduardo Bueno (conhecido na república rio-grandense como ‘Peninha’), gremista e contador de causos, nos conta a história de João de Barros, importante gramático e historiador português.

– Sou fã do Viracasacas, e esse episódio sobre Pós-verdade e ciência está muito bom. Com a convidada especial Tatiana Roque (professora da UFRJ).

https://viracasacas.com/2020/02/18/152-pos-verdade-ciencias-e-acao-politica-com-tatiana-roque/

– Katyn. Drama histórico, dirigido por Andrej Wajda. Trata do massacre de Katyn, ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. No episódio, por volta de 20mil poloneses (a maioria militares, mas também alguns civis) foram assassinados por soviéticos (mais um crime para a conta de Stalin). Algumas cenas são bem fortes. O filme tem como centro uma família que se esfacela durante o episódio, pois pai (professor universitário) e filho (oficial do exército) são presos e assassinados. A família fica sem notícias deles durante toda a guerra e só vai descobrir que estão mortos depois que ela acaba.

A farsa sobre o vocabulário dos Esquimós

É bem provável que o leitor já tenha lido em algum lugar ou ouvido alguém dizer que os esquimós possuem uma dezena de palavras para designar o que em português seria rotulado simplesmente como neve. Essa é uma das falcatruas mais bem sucedidas no século XX. Como suspeita Geoffrey Pullum, no ensaio The great Eskimo vocabulary hoax, pegou muito provavelmente porque se adequava com outras características exóticas do povo inuíte: emprestar a mulher para aquecer o visitante na noite gelada, jogar os idosos para que os ursos polares os comam, comer carne de foca crua etc. Aliás, a palavra esquimó significa “comedor de carne crua” e o povo prefere ser chamado de inuíte.

No artigo, G. Pullum resenha um relatório elaborado pela antropóloga Laura Martin, que atribui a fonte do mito a uma comparação que Franz Boas faz na introdução do livro The Handbook of North American Languages (1911) e o uso desse exemplo por Benjamin Lee Whorf em um ensaio nos anos 1940, Science and linguistics. A partir daí, ela traça como vários livros de popularização da linguística passaram a exagerar a contagem. Boas compara o vocabulário inglês para as diferentes formas de água. Esta língua usa várias palavras formadas a partir de raízes diferentes, com o esquimó, que usa diferentes raízes também: aput é “neve no chão”; qana, “neve caindo”; piqsirpoq, “neve soprada pelo vento”; qimuqsuq, “um monte de neve”, embora pudesse ter se dado o oposto, como é o caso de snow em inglês, que precisa ser complementada com outras palavras se o falante quiser se referir a diferentes apresentações de neve. O que Whorf fez, num enunciado vago, foi aumentar para 7. O engodo chegou ao ponto em que o New York Times afirmou num editorial que o vocabulário inuíte para neve era de uma centena.

A questão toda envolveria um debate mais profundo sobre o conceito de palavra e sobre a comparação entre línguas sintéticas e analíticas (o vídeo linkado abaixo faz um pouco essa discussão). O negócio é que em inuíte a expressão neve derretida seria expressa com uma forma linguística que seria uma unidade linguística que chamaríamos de palavra e não duas como em português.

Pullum brinca que o relatório de Martin apresentado num congresso de antropologia em 1982 e as tentativas pessoais dele de esclarecer o público não foram suficientes. Ele faz uma comparação com o Alien (do filme de Ridley Scott): um monstro difícil de matar. Ele conta que num curso sobre administração universitária que fez ouviu dois palestrantes recontarem esse mito. Embora tenha ficado calado, ele pede que não façamos a mesma coisa e mostremos que os dicionários de inuíte trazem apenas duas palavras para neve: qanik “floco de neve” ou “neve caindo”; aput “neve no chão”.

Só que ainda repetem essa história. Não precisamos ir longe, uma matéria do G1 conta que pesquisadores encontraram mais de 400 palavras para neve em escocês. A pesquisadora entrevistada afirma que: “Acredita-se que os esquimós têm mais de 50 palavras para descrever a neve”. A matéria não cita muitas palavras escocesas, só 5: snaw “neve”; sneesl “quando começa a never”; skelf “floco de neve grande”; snaw-ghast “imagens que a neve forma”; snaw-pouther “neve fina”. Outra matéria da CNN, repercutindo o lançamento do dicionário do escocês, também traz a lenda das várias palavras para neve em inuíte. Mas fica a pergunta: será que o escocês tem mesmo 400 palavras para neve?  Será que esse pessoal não está exagerando um pouco? Por que algum povo precisaria de tantas palavras para designar diferentes tipos de neve? Claro, a resposta é: falar sobre o tempo é algo importante para os escoceses. – Para que povo não seria?

Um parêntese: Rodrigo T. Gonçalves lembra o jornalista Sérgio Augusto, para quem o português teria mais de 200 sinônimos para bunda. Brincadeira, claro, que mostraria como nós brasileiros nos preocupamos com outras coisas. – No artigo, Gonçalves traz o caso das palavras para neve dentro de uma discussão sobre relativismo linguístico. Podemos nos lembrar também da quantidade de termos que Guimarães Rosa usa em Grande Sertão para se referir ao Coisa Ruim. Por termos dezenas de palavras para bunda e para o diabo, isso mostraria algo fundamental sobre a nossa sociedade? Sou bem cético sobre essas especulações.

Contudo, assim como uma pesquisa online ainda nos mostra muita gente repetindo essa história, também há várias páginas por aí a desmentindo. Achei textos na Superinteressante e na Reader’s Digest de Portugal e em vários blogues. (Aqui tem um exemplo bom)

Googlando sobre o tema, achei também um canal no Youtube: Enchendo Linguística. O vídeo sobre o tema explica a história detalhes bem importantes, incluindo alguns aspectos morfológicos do inuíte e outras referências.

Referências

PULLUM, Geoffrey. The great Eskimo vocabulary hoax. Natural language and linguistic theory, n. 7, p. 275-281, 1989.

GONÇALVES, Rodrigo Tadeu. Relativismo linguístico e o ensino de língua estrangeira. Revista X, vol 1., p. 19-40, 2009.

Sobre relativismo linguístico

Acabei de ver o vídeo da palestra da Lera Boroditsky (encaixado acima) e fiquei com sentimentos contraditórios: ela fala com clareza e é relativamente convincente; mas ao mesmo tempo não consegui acreditar nela, ela me pareceu listar uma série de curiosidades, e não conseguiu de fato mostrar nenhuma conexão real entre a linguagem e o pensamento.

Até que ponto a capacidade de reconhecer tons de azul com mais rapidez é de fato uma habilidade cognitiva “diferente” que os russos possuem? Até que ponto isso é uma visão de mundo diferente? Como se pergunta John McWhorter: o que 200milissegundos (é essa a medida em que os russos são mais rápidos do que falantes nativos de inglês no reconhecimento dos diferentes tons de azul) de fato mede?

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O livro de McWhorter, The language Hoax: why the world looks the same in any language (Oxford University Press, 2014) é um manifesto contra o que ele chama de linguajar publicitário. Livros como o de Guy Deutscher, Through the language glass, por exemplo, criam no público a impressão de que temos evidências de que existe uma conexão efetiva entre linguagem em pensamento. Claro, há também todo um apelo poético nessa visão de que cada língua representaria uma visão de mundo (o que é outra coisa).

Mas não se engane. É óbvio que existe uma conexão entre a linguagem e o pensamento. A questão mais profunda é: línguas que possuem vocabulário mais extenso para as cores permitem aos seus falantes uma percepção diferente da realidade? Ninguém até hoje conseguiu mostrar que sim.

O que há, principalmente no léxico, são diferentes recortes da realidade, por assim dizer. A lenda de que o inuíte (a língua dos esquimós ou inuítes) teria uma centena de palavras para o que chamamos simplesmente de neve faz parte desse imaginário. Não é difícil perceber a necessidade que um esquimó possui de nomear diferentes tipos de neve.

Um belo resumo desse imbróglio pode ser lido nesse breve texto disponível na página da Linguistic Society of America: https://www.linguisticsociety.org/sites/default/files/Does_Language_Influence.pdf

Recentemente esse debate voltou à pauta por conta do filme A Chegada. A personagem principal é uma linguista que ajuda a estabelecer diálogo com os alienígenas. E parece que no processo de aprender a língua deles ela ganha uma habilidade especial. É o relativismo levado ao seu extremo: aprender uma língua diferente me permite ter uma nova visão sobre a realidade.

https://epoca.globo.com/cultura/noticia/2016/12/o-filme-chegada-mostra-como-linguagem-influencia-nossos-pensamentos.html

 

O deputado mineiro que queria proibir Guimarães Rosa nas escolas

A semana passada foi bem bagunçada e acabou que não consegui atualizar o blogue na sexta, por isso o texto saiu hoje. A ideia de publicar um post por semana (pelo menos), é para justamente me obrigar a ter uma rotina de escrita. E eis que duas coisas interessantes aconteceram na semana passada, consegui ver a palestra do Carlos Alberto Faraco no youtube e descobri o projeto de lei do deputado estadual Bruno Siqueira (PMDB). Bruno é de Juiz de Fora, e é formado em engenharia civil. O projeto do deputado quer defender a língua portuguesa (clique aqui para ver o projeto). Mas defendê-la de quem? Dos seus próprios falantes? Daqueles escritores que contrariam a norma culta com objetivos estilísticos? Se o lugar da produção cultural brasileira escrita em vernáculo não é a escola também, onde ela deve ser consumida e apreciada? Nos guetos?
O texto do projeto de lei é o seguinte, foram suprimidos os trechos que listavam os autores que estariam proibidos de serem lidos nas escolas mineiras. Pelo menos é o que está na página:
“A Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais decreta:
Art. 1º – O art. 2º da Lei nº 8.503, de 19 de dezembro de 1983, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo único:
“Art. 2º – (…)
Parágrafo único – Será priorizada a adoção de livros que não contrariem a norma culta da língua portuguesa.”
Art. 2º – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.”
Primeira coisa: qual a justificativa para isso? Com base em que tipo de estudo o autor da lei está excluindo livros que contrariem a norma culta? Por que desenterrar um projeto de 1983, que por alguma razão não foi aprovado na época em que foi elaborado. Pelo que eu entendo, as leis são propostas para melhorar a vida da população ou regular atividades sociais que precisem de regras, como o trânsito, a venda de armas e remédios, essas coisas. Por exemplo, o governo quer proibir o consumo de cigarros com sabor porque eles incentivam os jovens a fumar. Como as doenças decorrentes do fumo geram custos para a saúde pública, essa decisão tem um certo apelo, embora esteja lidando com o direito do cidadão se envenenar da maneira que julgar conveniente. Alguns fumam cigarros sabor menta, outros comem hambúrgueres e sorvetes do McDonald’s, outros preferem costela e cupim, outros ainda preferem bebidas alcóolicas. No final das contas não vejo nenhuma justificativa científica para esse projeto (o do ensino). Mas há uma, e ela é essencialmente ideológica.
Por que alguém iria proibir o português coloquial escrito de entrar nas escolas? Por que alguém acredita que ler os gibis do Chico Bento, as poesias de Patativa do Assaré, Manoel Bandeira e Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade entre muitos outros, é prejudicial ao ensino de língua portuguesa quando não há nenhuma evidência científica de que seja esse o caso? Ora, porque esses escritores justamente buscavam se expressar utilizando o português coloquial e mesmo o português culto brasileiro (não o português culto dos portugueses). Vejamos o que diz um trecho do poema “Evocação do Recife” de Manuel Bandeira: “A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros/Vinha da boca do povo na língua errada do povo/Língua CERTA do povo/Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil/Ao passo que nós/O que fazemos/É macaquear/A sintaxe lusíada.” A crença de que existe uma língua correta apenas e que é preciso defendê-la de seus falantes incultos é tão ingênua que chega a ser triste uma iniciativa como essa. Se o deputado tivesse conhecimento sobre a matéria que pretende legislar teria se dado ao trabalho de ler os parâmetros curriculares nacionais, documento oficial do estado que dá embasamento ao tratamento da língua no ensino básico. Vejamos o que nos diz o documento:
“Para cumprir bem a função de ensinar a escrita e a língua padrão, a escola precisa
livrar-se de vários mitos: o de que existe uma forma correta de falar, o de que a fala de
uma região é melhor da que a de outras, o de que a fala correta é a que se aproxima da
língua escrita, o de que o brasileiro fala mal o português, o de que o português é uma língua
difícil, o de que é preciso consertar”a fala do aluno para evitar que ele escreva errado.” (BRASIL, 1998, p. 31)

Um pouco antes dessa discussão sobre o lugar da variação e da gramática no ensino, os parâmetros estabelecem o seguinte em relação ao texto literário:

“O tratamento do texto literário oral ou escrito envolve o exercício de reconhecimento
de singularidades e propriedades que matizam um tipo particular de uso da linguagem. É
possível afastar uma série de equívocos que costumam estar presentes na escola em relação
aos textos literários, ou seja, tomá-los como pretexto para o tratamento de questões outras
(valores morais, tópicos gramaticais) que não aquelas que contribuem para a formação de
leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a
profundidade das construções literárias.” (BRASIL, 1998, p. 27).

Bom, supondo que o deputado é um sujeito responsável, que quer fazer o bem para as pessoas e melhorar a qualidade do ensino nas escolas públicas, acho que ele não faria uma lei que proíbe as pessoas de dirigirem embriagadas, porque ele sabe que já existe uma lei que faz isso. Então porque ele está querendo fazer uma lei para dizer aos professores de língua portuguesa o que eles devem levar para seus alunos ler quando já há um documento oficial que faz esse trabalho? Por puro achismo. Justamente pelo preconceito com as variedades populares da língua portuguesa falada no Brasil. Elas não possuem nada de errado intrinsecamente. Suponha que você esteja aprendendo o português agora, como uma língua estrangeira, e na aula você aprenda que deve-se dizer coisas do tipo “Quero dez pães.”, só que quando você vai na padaria escuta as pessoas dizendo “Quero cinco pão.”, “Dois pastel de carne.” “Custa cinco real.”. Você não sabe muito bem porque essa diferença existe, e pergunta ao seu professor que responde: quem fala assim é ignorante, é errado falar assim. Essa resposta seria dada por um professor preguiçoso, ou por alguém que nunca se deu conta de que não existe nada mais feio ou mais bonito em “dois reais” e em “dois real”, o valor que atribuímos à primeira alternativa é social. É a forma correta porque é a forma usada pelas pessoas escolarizadas (as ditas cultas), por quem detêm o poder econômico, pelos advogados, pelos juízes, nossas leis são escritas utilizando-se dessa variedade da língua, nossos melhores escritores (os modernos são uns fanfarrões, querem fazer literatura com o português coloquial, veja se pode uma coisa dessas, que atrevimento!). Ou alguém acha que escolheriam a língua dos sertanejos, dos motoristas de ônibus, das empregadas domésticas e dos feirantes para redigir leis? Claro que não, porque esses falantes da língua não possuem prestígio social. O que a proposta do deputado faz é, além de menosprezar a língua das classes populares, menosprezar a produção cultural realizada com essa variedade do português. Por mais que o Chico Bento use uma versão caricata do ‘caipirês’ (isso é, ninguém fala exatamente daquele modo), por mais que Patativa e outros cordelistas, ou mesmo canções tradicionais como o cuitelinho ou alguns sambas de Adoniram Barbosa sejam parte do nosso arsenal artístico, projetos desse tipo as rebaixam ao estatuto de mero folclore (quem devem ficar confinadas aos botecos, às favelas, às feiras-livres), quando a variação (entendida como a possibilidade estrutural de se expressar a mesma informação se utilizando de estruturas linguísticas diferentes) é um fenômeno muito mais complexo que isso. A isso se acresce o fato de que o deputado sequer deve ter ouvido algum especialista no assunto. Nesse caso, deixo aqui a palestra que o prof. Carlos Alberto Faraco, da UFPR, ministrou em um seminário da Olímpiada de Língua Portuguesa. Mas nem precisava vir até aqui. Ele poderia ter dado um pulo na UFMG e batido um papo com o Mário Perini.