O esporte favorito do professor é reclamar de aluno

Essa semana um professor universitário rateou no Twitter que os alunos não leem os textos das aulas. O tuíte rendeu um pequeno bafafá. Para ele, é difícil entender esse comportamento, já que, em tese, esses alunos estão num curso que escolheram.

Como é costume meu, lá vou eu falar da minha experiência na coisa. É o que consigo oferecer.

Fiz graduação numa época difícil, fim dos anos 1990, início dos 2000. Eu não tinha grana para comprar os livros de inglês e sempre me faltava para tirar cópias dos textos. A biblioteca da FAFIUV na época era ridícula de pequena e também não tinha material para todos os alunos. Lembro de que comprei apenas os Fundamentos da Linguística contemporânea, do Edward Lopes naquele primeiro ano. Foi o que deu pra fazer. A professora de sociologia passava uma carga grande de leituras e não li a metade, até onde me lembro. Mas outras disciplinas eram mais tranquilas, como a Teoria Literária, que não tinha lá muita leitura teórica. Ou vai ver eu não tinha grana pro xerox mesmo e me virava assistindo as aulas, fazendo anotações ou emprestando o texto do povo.

Claro, aos poucos fui comprando outras coisas, como uma gramática, um bom dicionário de inglês… e ao final do curso eu tinha um pequeno acervo. Pequeno mesmo.

Como professor eu gosto de dar leitura pra moçada, mas ao mesmo tempo tenho consciência de que o público do curso de Letras é, na sua maioria, um povo que também trabalha, mora longe, vive com grana contada etc. As disciplinas que eu leciono são mais ‘técnicas’, digamos assim, o que me permite assumir ali um livro texto e não ficar entupindo eles de referências. A vantagem dos livros-texto é que eles apresentam o conteúdo básico e essencial da área. Quando quero discutir algo a mais coloco como referência complementar e sugestão de leitura. Hoje temos a vantagem de digitalizar os textos, assim ninguém mais precisa ficar gastando com fotocópia. Sem contar que o preço dos livros não é tão caro assim e as editoras volta-e-meia fazem promoções.

Perguntei aos meus alunos se eles conseguiam vencer a carga de leitura das disciplinas que estavam cursando. Ninguém disse que conseguia. Se nas minhas disciplinas imagino ali um conteúdo por volta de 15-20 páginas/aula, certamente tem professores que pedem mais. Muito mais. Não os julgo. Também adoraria usar o manual do Saeed (Semantics, Blackwell) com 500 páginas.

No mundo ideal, nossos alunos se dedicariam exclusivamente ao estudo em sala de aula durante 20h por semana, o que sobraria outras 20h para leitura e outras atividades. Pesquisas mostram que 61,8% dos alunos de instituições privadas trabalham, enquanto nas instituições públicas o percentual de alunos que trabalham é de 40,3% (Agência Brasil: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-05/mapa-do-ensino-superior-aponta-para-maioria-feminina-e-branca).

Que os alunos não leiam não me surpreende. Acho até que eles tentam (tá, eu sou um bom moço que acredita ainda na boa disposição dos jovens para o aprendizado). Mas é aquela coisa, tem dias em que o que o aluno quer é maratonar o livro que está lendo por prazer (risos) e talvez a nossa aula seja aquela aula porre que o aluno vai só porque é obrigatória mesmo.

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Documentário: O silêncio dos homens (Youtube). Vi semana passada. Documentário extremamente necessário. Tenho pensado muito sobre masculinidade tóxica (também porque tenho lido muitas mulheres, sempre gostei de lê-las, a propósito) e a dificuldade dos homens em falar dos seus sentimentos é só mais uma faceta dessa cultura masculina heteronormativa que só faz mal a todo mundo.

Dario. (Caio R. Bona Moreira, Humana). O livro faz parte da coleção Biografemas. Além dos traços típicos da biografia, o livro é o relato de uma jornada pessoal. Dario Velloso foi objeto da tese de doutorado de Caio e nesse relato curto o autor se volta para a busca pelo escritor enquanto personagem, tocando em vários aspectos da vida do biografado, um dos grandes nomes da poesia curitibana simbolista e grande personalidade da capital paranaense no início do séc. XX.

Frentear

Não sei se os jovens de hoje conhecem o conceito de ‘frentear’, uma atividade que mostra muito da realidade socioeconômica dos anos 90 e início dos anos 2000, pelo menos na cidade em que eu morava na época. A “minha galera”, quer dizer, a galera que meio que me adotou, era uma mistura confusa de metaleiros de diferentes bairros da cidade, aglutinados por alguns líderes com essa capacidade de fazer aquele povo se reunir pra beber e falar de bandas, gibis e leituras – especialmente Paulo Coelho, uma febre naqueles anos 1990 (tinha uma longa lista de espera para ler seus livros na biblioteca do colégio).

O frentear era basicamente ir para a frente da balada ou da lanchonete da moda. Como muitos de nós não tínhamos dinheiro (ou idade) para se sentar no bar, ou entrar no clube, o jeito era fazer uma vaquinha pra comprar alguma coisa pra tomar e ficar ali pela frente bebendo e conversando. As festas aconteciam em clubes, o Concórdia e o Aliança. Os sócios não pagavam entrada, e pagar para entrar não era lá muito barato.

Suspeito que não conheçam. Faz muito tempo que não saio à noite, mas o fenômeno me parece ter desaparecido, embora nas grandes cidades eu imagino que os jovens tenham pontos de encontro para paquerar ao ar livre nos finais de semana.

Lendo e vendo

O declínio do império americano (1986): revi o filme Denys Arcand final de semana. Ele tem mais de 30 anos e me soa hoje como ‘a vida sexual dos intelectuais canadenses de meia idade feios’. O filme é bem humorado, mas acaba num tom ácido. Tem o professor pegador divertido, tem o professor que se apaixona pela aluna muito mais nova, a solteirona com um homem mais novo, o gay (provavelmente com AIDS, não entendi se está ou não).

Saturno translada (7 Letras, 2022). Lucas Lazaretti, além de escritor, é tradutor e doutor em Filosofia pela PUC-PR. Fiquei intrigado pelo ‘saturno’ do título e demorei pra entender que tem a ver com a chegada dos 30 anos e a maturidade. O livro trata de um grupo de amigos que por essa idade enfrentam dilemas pessoais e profissionais. O músico que volta de uma temporada no exterior e está sem perspectiva; o artista que se exila da Alemanha com medo das hordas conservadoras; a recém-doutora que não consegue trabalho nem bolsa de pós-doutorado e que vê no exterior uma oportunidade de continuar na sua área de pesquisa; o psicólogo suicida. Todos são personagens interessantes, cujos dilemas e questões estão inseridos nesse Brasil em que vivemos, narrados por uma voz com muito estilo e erudição.

Dois livros de crônicas

Tem dias que eu sinto que não tenho talento pra nada. Meio que é um milagre eu ter dado certo na vida como professor e linguista, que periódicos publiquem meus artigos, que editoras tenham topado publicar meus livros. Nem pra fazer amigos eu tenho lá muito talento. Como aquele meme, sou o introvertido que é sempre adotado pelos extrovertidos onde quer que chegue.

Tergiverso (e isso tudo aí é assunto pra outro texto). Por que na verdade eu queria era falar do talento de dois caras que eu conheço para a crônica. Não é pra puxar o saco, não! Eles mandam bem demais. Escrevem com aquela naturalidade do olhar do poeta que prefere fazer prosa e tirar um sarrinho. Se me permitem a metáfora, a crônica é um ensaio de bermuda e chinelo de dedo. Até onde eu entendo essas coisas, né!?

Leonardo Antunes foi meu colega na UFRGS. É um tímido desavergonhado. Em pouco tempo ficou amigo de todo mundo. Aposto que em seis meses fez mais amizades no meio literário do que eu fiz em sete anos de Porto Alegre. A pequena coletânea de crônicas que lançou recentemente, Diários de um paulista em Porto Alegre, é uma delícia. Só tem um defeito grave: são poucos textos. Trata dos desencontros da linguagem, rotinas de polidez, e especialmente da alimentação e rituais à mesa (como o uso de palitos de dente).

O Yuri Al’hanati eu conheci esses dias num churrasco. Depois que tomei conhecimento das coisas que ele faz, fiquei me perguntando como é que eu vivi tanto tempo sem saber da existência do blogue (https://livrada.com.br/) e do canal do Youtube. Na real eu não sou lá muito fã de canais que comentam livros, justo porque não tem graça se eu não li a obra comentada. Mas o canal do Yuri não é só isso. Tosquice minha, óbvio! Sou um rato digital que zanza pelas quebradas erradas, eu acho.

Yuri é autor do recente A volta ao quarto em 180 dias, uma coletânea de crônicas sobre o primeiro ano da pandemia. Diferentemente de um Rubem Braga encastelado na sua cobertura com vista para o mar em Ipanema, ele é um dos muitos adultos solitários que habitam essa metrópole de cimento e ônibus biarticulados que é Curitiba, se contentando com uma vista para o pôr do sol, cuja trilha sonora é o som das furadeiras e makitas. Suas crônicas falam de objetos, como uma bola de poeira e cabelos num canto, a máquina de lavar roupas; sobre atividades, como cozinhar para si, beber vinho, maratonar séries; e das coisas da pandemia: máscaras, distanciamentos, testes… embora trate dessas coisas todas dum jeito bem informal, ele eventualmente resvala para a reflexão sociológica: “A máscara é a nova camiseta, usada no calor por convenção e decência, o respeito pelo próximo. Sem ela, somos mais selvagens, menos sensíveis, menos humanos”.

E é justamente essa reflexão mais elaborada misturada com o cotidiano o que dá para as crônicas esse jeitão massa que elas têm.

Consignado

Todos os dias a cada hora, às vezes a cada trinta minutos alguém me liga. É sempre um número desconhecido. Ignoro, geralmente, ciente de que deve ser alguém tentando me vender algum serviço de que não preciso, como uma pós-graduação qualquer com descontos imperdíveis, condições facilitadas de pagamento, aulas totalmente online e daí por diante.

Eventualmente atendo, na esperança de que seja alguma proposta inédita, algum prêmio que ganhei, alguma dívida que nem sabia que tinha… mas não, é sempre uma proposta de renegociação do meu consignado. “Luisandro? Bom dia, Sr. Luisandro, eu falo aqui do Banco XY, somos correspondentes do Banco Grande Marca Conhecida”. Desligo. Às vezes vou até a parte em que me perguntam se eu já recebi alguma proposta de renegociação. Dá vontade de rir, porque eles sabem que me ligam umas dez vezes por dia.

Mas quem me liga? Ingenuamente imaginei certa vez que fossem sempre os mesmos bancos e escritórios. Não são. Quantos escritórios desses existem pelo país? É difícil saber também, pois os DDDs são aqui do Paraná, Santa Catarina, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo… e tirando os cariocas e nordestinos, não consigo distinguir os outros. Supondo que existam uns dez escritórios em cada cidade grande desse país, quanto tempo levaria para que todos me ligassem? Mas eles não vão desistir, pois há aqueles que eu não atendo, e tenho certeza que meu número voltará para alguma lista e o computador tentará me ligar de novo.

E esse é o dilema todo. Imagino meu número lá no meio de toda uma lista de números de funcionários públicos com empréstimo consignado. Como eu, esses coitados recebem dezenas de ligações diariamente. E continuaremos a receber, até que todos os escritórios do Brasil tenham ligado e sido atendidos, nem que seja para dizer que não se está interessado, quanto, então, o número voltará para uma outra lista: “ligar novamente em seis meses”.

Links

Os gregos não enxergavam a cor azul?

O que é ‘tankar’?

A arte agonizante do ensino na sala de aula digital

Livros:

O diário da queda, Michel Laub (Companhia das Letras, 2011): Homem dos seus quarenta anos relembra a relação com o pai e com um colega de escola. Judeu, seu avô (que não conheceu) é sobrevivente de Auschwitz. Isso ele só descobre depois de uma briga com o pai, que então lhe mostra os cadernos do avô, que ao final da vida resolve escrever uma espécie de dicionário pessoal da vida, embora seja incapaz de falar sobre o trauma do campo de concentração. O livro é narrado em primeira pessoa, em capítulos curtos. Não é um diário, como o título dá a entender. São recordações do passado, às vezes misturadas com reflexões sobre o presente. Tem uma reflexão interessante sobre a condição judaica, a construção da identidade na adolescência e sobre a relação com o pai.

Cafuné

“Cafuné” é uma palavra de origem controversa. É o que os dicionários nos dizem, embora se supõe que venha do quimbundo onde significa algo como “torcer a cabeça de alguém”. Como é que um ato agressivo foi atenuado para um ato carinhoso me soa como um completo mistério. Essa palavra significava isso quando nos foi emprestada? É difícil responder a essas questões, já que é bem comum que nos empréstimos ocorra algum tipo de uso “equivocado”. Para dar um exemplo, o que chamamos de ‘outdoor’ os americanos chamam de ‘billboard’, sem falar do caso mais extremo: ‘cheese burger’ é o sanduíche com queijo e hambúrguer que a gente abrasileirou simplesmente como ‘xis’ para designar qualquer variação desse sanduíche.

Eu fiquei na dúvida porque eu estava lendo com as minhas filhas um livro de uma coleção da Turma da Mônica com as letras do alfabeto. Na letra I, o personagem principal é um indígena, o Papa-capim. Acontece que ele tem um amigo de tribo chamado “Cafuné” e como eu já tinha ouvido falar de que ‘cafuné’ era de origem africana, fiquei intrigado e fui pesquisar um pouco mais. De qualquer forma, achei um nome pouco convencional para um indígena, um nome que nem tupi é. Já ‘capim’ sim é tupi, mas também me parece estranho nomear um guri (outro termo que veio do tupi, ‘gwiri’, que significa “bagre novo” e “criança”) como “comedor de capim”.

De qualquer forma, meu estranhamento não ficou por aí. Na história, os indiozinhos estão vendo formas nas nuvens. E para minha surpresa, entre as várias coisas que imaginaram na forma das nuvens, eles viram uma iguana e um iceberg. Iguanas no Brasil? Fiquei intrigado também e fui descobrir que aparentemente há iguanas no Brasil (na Amazônia, Pantanal e Caatinga). Mas também me perguntei de onde vem a palavra. Vem do aruaque, ‘iwana’, e nos chegou pelo espanhol. Nova dúvida: se há iguanas mesmo no Brasil, porque não temos uma palavra de alguma língua jê ou tupi para essa criatura? Mistérios do vocabulário.

Uma última dúvida, leitor, será que os indígenas brasileiros já viram um iceberg? Imagino que não seja algo muito comum no nosso litoral.

Férias

Estou a poucos dias do final das minhas férias e daqui já avisto o seu final, como aquele aventureiro que desfruta mais a jornada do que a chegada ao destino. Férias. É plural! É quantidade! E nos perdemos facilmente nesse encadeamento de dias. Triste, começo a pensar na volta à rotina na próxima segunda-feira. Infantilmente triste. E férias é como aquele jogo de futebol da infância. Eu curtia mais o jogar em si do que eventualmente ganhar.

Não que eu não tenha sido feliz nessas curtas férias. Não joguei bola nem nadei na cachoeira, como eu fazia nas minhas férias nos tempos de piá pançudo. Vi algum filme, algum seriado, alguns jogos de futebol. Passeei com minhas filhas no final de semana. Mas tudo isso já é coisa que eu meio que faço normalmente. Então vai ver que está aí esse sentimento de férias não gozadas, de férias desfrutadas em época de frio e muitos dias úteis em sequência, acostumado eu em feriar no verão ou no alto do inverno.

Planejei uma tarde de cinema, que não aconteceu. Mas fui colocar exames e consultas médicas em dia. Planejei conhecer livrarias e cafés que ainda não tinha visitado em Curitiba. Também não aconteceu, nem acontecerá, dado o estado chuvoso e arredio a passeios que se apresenta nessa semana.

Ficarei recolhido terminando de organizar as leituras das disciplinas e os exercícios. Como bom acadêmico, aproveito as férias para colocar as leituras do trabalho em dia. A Sofia tomou vacinas segunda-feira pela manhã e faltou à aula dois dias. Mesmo que no final das contas ela passe mais tempo na cama vendo televisão (ficou com dor na perna e está convalescendo como a senhorinha de 4 anos que ela é), é preciso dar atenção constante aos lanches, aos brinquedos e às idas ao banheiro.

Queria ter lido mais (por prazer e por compromisso profissional), visto mais filmes, mais séries… queria ter caminhado no centro sozinho sem destino. Mas para que ler tanto, não? Tenho pensado que nessa altura do campeonato, minha meta é ler menos e melhor. E reler.

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O que andei lendo e vendo

a) Nós que nos amávamos tanto (Ettore Scola, 1974). Na Itália do pós-guerra vemos a relação de 3 amigos e uma garota, Luciana, que se apaixona por Antonio, mas logo se encanta por Gianni assim que são apresentados. Todos são cheios de sonhos e esperanças, aos poucos a vida os distancia e soterra seus ideais românticos. Nico, por exemplo, deixa a família para buscar em Roma seu sonho de escrever sobre cinema. Me pareceu uma crítica ao idealismo socialista. A certa altura, um dos personagens diz, tristemente: “Nós queríamos mudar o mundo. Foi ele que nos mudou.” O filme também homenageia grandes figuras do cinema italiano como Vittorio de Sica, F. Fellini e Marcelo Mastroiani. b) Adeus às armas (E. Hemingway, 1929). Todo o estilo de Hemingway já está ali, nessa obra sobre o romance entre um motorista de ambulância americano e uma enfermeira inglesa que se conhecem na 1. Guerra. Pouco estudo psicológico, pouca presença da voz do narrador e muitos diálogos. Saí da leitura sem saber o que Henry queria, por que um americano tinha se alistado como voluntário no exército italiano. Talvez eu não tenha entendido. Como agora, enquanto leio “Por quem os sinos dobram” me pergunto por que também aquele americano, o protagonista, está no meio da guerra civil espanhola. Hemingway participou desses dois conflitos e os dois livros são inspirados nessas experiências. Queria ele testemunhar “a grande história” e ver seus efeitos sobre os homens? Não sei. Talvez o próprio autor tenha falado sobre isso em algum momento, ele que era um sujeito inquieto e também estava sempre perambulando. Ele usa e abusa do espaço, como a fuga do casal de namorados através do lago Maggiore em direção à Suíça, as cidadezinhas por que passa ao nordeste da Itália, na fronteira com a Áustria, palco de algumas batalhas. Não gosto de ler procurando “sobre o que é o texto”, ou “qual é a mensagem filosófica” que está ali escondida. Antes de tudo, Hemingway é um grande narrador e um grande construtor de diálogos. Embora alguns por vezes me soem cansativos e mais longos do que é preciso. Mas quem sou eu pra colocar defeito no mestre da concisão? Nesse sentido essa obra é bastante ágil. Apenas durante a recuperação dele em Milão a narrativa fica mais lenta (há pouca “ação”), mas no restante da obra Henry sempre está em movimento.

Livro novo

Quem nunca sentiu, pelo menos uma vez, aquela estranha sensação de ser personagem da própria vida? Quem nunca se perguntou qual é o seu papel nesse teatro? Talvez o protagonista de “Verde Amarelo Vermelho” não seja de fato um personagem. Talvez ele seja o leitor de
nossa história (o leitor, aliás, sempre me pareceu um tipo estranho de personagem). Talvez sejamos nós os atores. Ele nos mostra o quanto somos fictícios. O que não significa que vivamos de mentira, mas que atuamos sempre nesse espetáculo que é a realidade. Somos o Maurício interpretando nossa novela cotidiana. Mas, simples como ele, nem percebemos que, no nosso drama, somos sempre – e por direito – o personagem principal.

Caio Ricardo Bona Moreira

Disponível no site da editora Kotter: https://kotter.com.br/loja/verde-amarelo-vermelho-luisandro-mendes-de-souza/ (preço com desconto)

Disponível também na Amazon

Uma língua é uma lente para o mundo

Há várias estórias boas no livro de Ted Chiang (História da sua vida e outros contos, 2016, Intrínseca), mas a “História da sua vida” é novela muito original e bem narrada. O filme segue o mesmo enredo, intercalando presente e um suposto passado. Sou faísca atrasada mesmo e só agora estou lendo o livro – terminei ontem. Há uma hipótese sobre a linguagem muito interessante ali, embora não seja nova.

Não seria fantástico se cada língua nova que a gente aprendesse nos fornecesse um tipo de ferramenta cognitiva que nos permitisse ver coisas que a nossa língua não deixa porque não tem conceitos para expressá-los?

Não precisamos de alienígenas que nos tragam uma tecnologia de escrita para avançarmos cognitivamente. Imaginem o choque dos europeus quando viram que fazer matemática com os algarismos dos árabes era muito mais fácil. Pensem também na quantidade de vocábulos gregos e latinos que boa parte do globo usa para nomear conceitos filosóficos e científicos, doenças, remédios e assim vai. De certa forma, a cada momento em que aprendemos/assimilamos um vocábulo novo para nomear algum aspecto da realidade (material ou abstrato) aprendemos algo novo, há um ganho cognitivo.

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– Esses dias revi ‘Tomates verdes fritos’. O povo fala muito mais de Thelma e Louise (também de 1991) – tem mais ação, é um road movie etc. – mas esse filme tem um elenco excepcional e também trata da luta de mulheres para lidar com homens escrotos, racismo, sem falar nas outras tristezas normais da vida (doença, morte etc.).

– O povo sempre reclama de algumas premiações do Oscar. Normal. Nem sempre o melhor é premiado. Não consegui ver muita coisa esse ano. Como sempre, os melhores filmes nos chegam sempre muito perto ou depois da cerimônia. A safra não foi lá aquelas coisas. Mesmo assim, um Almodóvar médio/bom sempre vale o nosso tempo. O Will Smith mereceu o prêmio. Ele está ótimo no filme, que é mais sobre a obstinação do pai de Serena e Vênus do que sobre elas. ‘Ataque dos cães’ também é ótimo e as indicações dos atores em várias categorias é sinal disso.

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Maria Helena de Moura Neves fala sobre linguagem neutra

Fala muito rapidamente, já que a matéria é mais sobre um prêmio concedido a ela em homenagem à sua trajetória de linguista e professora.

Por que uma palavra ‘pega’?

Muitas vezes olhamos para a língua como se os indivíduos que as falam tivessem um papel pouco importante na sua mudança histórica. A entidade teórica do ‘falante/ouvinte’ ideal, uma abstração, parece se aproximar muito pouco do feirante, da balconista de loja de calçados, do professor de escola básica ou do profissional que usa a linguagem como ferramenta de trabalho (o jornalista, o influencer, o político, o publicitário, o profissional do livro…).

As línguas mudam em todos os níveis da sua gramática e as mudanças nas palavras são, certamente, um reino especial. Como as palavras já existentes ganham novos significados? Como criamos palavras novas? Essas são duas questões bem interessantes que têm uma dimensão comum: depois de a palavra nova ser cunhada e/ou o significado novo surgir por algum processo (metáfora, metonímia etc.), o que a populariza? Como ela passa a fazer parte do vocabulário comum de uma comunidade?

Profissionais da palavra são fundamentais no processo. Em algum momento, um professor/gramático decidiu que ‘risco de vida’ significava “risco de viver” e não “risco de perder a vida”, como a expressão era usada desde sempre. Isso motivou a criação de ‘risco de morte’, que então passou a ser usada nos telejornais da emissora. Como a Globo é a principal rede de televisão do país, é inegável que esse uso teve influência em outros veículos e na fala da população em geral.

Quando se fala em ‘bloquinho’ a primeira coisa que me vem à cabeça é um bloco de anotações. Agora, de uns tempos pra cá, fala-se em ‘bloquinho’ para se referir a ‘bloco de carnaval’. E, metonimicamente, já se fala em ‘bloquinho’ para designar uma festa de carnaval, sem que necessariamente existam blocos de carnaval na festa. Me pergunto quando o termo começou a se popularizar, pois não tenho lembrança dele sendo usado dessa forma há uns 10 anos, quando eu ainda ia em carnavais e blocos.

Minha intuição estava correta. Uma rápida busca nas estatísticas do Google mostra que ‘bloquinho’ cresce nas notícias a partir de 2017. O termo vai crescendo no uso até 2020, quando estaciona. Em 2021, como não houve carnaval, há poucas ocorrências. E nesse fevereiro já há 64 ocorrências, aproximando-se das 99 de fev/2020.

Claro, a minha pesquisa está limitada às notícias que o Google consegue identificar. Uma pesquisa mais detalhada em corpus poderia delimitar a busca em textos sobre carnaval e avaliar a frequência da palavra ao longo do tempo. Mas notem um aspecto interessante: se a mídia impressa está usando a palavra, é porque ela já está caminhando para se institucionalizar-se, isto é, virar parte do vocabulário da comunidade de falantes. Para se ter um retrato mais concreto dessa expansão, em fevereiro de 2016, na Folha de São Paulo, há apenas 5 usos de ‘bloquinho’ com o sentido geral de “bloco de carnaval”, enquanto em fevereiro de 2020 contei 35 (o último carnaval antes da pandemia).

Notem que no final das contas temos um sistema que se retroalimenta. O uso geral da palavra faz com que a imprensa também a adote, e na medida que a imprensa passa a usar a palavra com o novo sentido, isso lhe dá um selo de “autorização” para circular. O próximo passo é ir parar nos dicionários oficiais.

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Li pouca coisa não acadêmica nos últimos dias. O artigo abaixo me chamou a atenção. Sempre quis ser mais extrovertido. Sempre me senti quase um anormal por não ser tão falante quanto meus irmãos e minha mãe, avó, tios… Nasci numa família de tagarelas e acho que só meu pai, que não era muito de falar, me entendia e não pegava no meu pé por isso. Enfim, se você quiser mudar sua personalidade, parece que tem jeito.

https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/03/how-to-change-your-personality-happiness/621306/

Começos

Todo começo de semestre uma sensação já familiar me assalta. Sinto que não sei mais dar aula e que vou ter que aprender de novo a planejar um semestre, organizar leituras, exercícios, datas de avaliações, que atividades são interessantes para ajudar os alunos a compreender e a assimilar os conceitos etc… Síndrome do impostor? Sei lá. Já estou há 12 anos nessa indústria vital e vai ver que a explicação seja mais simples. É só a ansiedade dos recomeços: novos alunos, novos textos para se falar de velhas questões sobre a linguagem…

Sinto essa sensação também quando vou escrever ficção. Preciso retomar anotações, dicas de escritores, manuais… como se cria um personagem, o que é um enredo, como criar pontos de vista… e assim vai. É cansativo.

Mas logo que entro de cabeça, é como andar de bicicleta de novo depois de meses sem andar. Não dá pra esquecer nem que a gente queira.

Dica de leitura: texto muito interessante sobre a voz na nossa cabeça que “lê” os textos quando fazemos leitura em silêncio.

Uma série:

A diretora (2021). Sandra Oh vive uma professora do departamento de literatura de uma universidade fictícia que é alçada ao posto de chefe e precisa lidar com os problemas dos professores, alunos e da administração. Nesse meio tempo tem que lidar com a filha, o pai, e a relação com um colega que é acusado de ser nazista após fazer o famoso gesto durante uma aula.