Jornalismo: modo de usar

“Eles ficam um tempão aí discutindo política e não resolvem nada.”

Essa foi a reação do meu sogro esses dias, ao me pegar ouvindo um podcast de política. “Mas não é esse o trabalho deles”, respondi. “O papel do crítico e do jornalista é criticar, apontar os problemas. Quem só olha para o lado positivo é o publicitário, quem quer fazer propaganda. O jornalista tem que ver os problemas, para que os governantes possam melhorar e prestar contas dos seus erros”, expliquei.

Não sei se ele se convenceu.

Tem um pouco dessa reação em relação ao trabalho do Atila Iamarino, da Natalia Pasternak e de outros cientistas que vem ganhando espaço na mídia comentando o andamento da pandemia e das medidas que os governos estaduais do país e do mundo estão tomando. (Afinal, o governo federal decidiu não fazer nada). Eles fazem cálculos, previsões e emitem opiniões baseados em dados. Sem os dados, fazem inúmeras ressalvas para destacar que estão fazendo conjecturas que precisam de mais base.

Enquanto isso um médico qualquer duma cidade do interior, que nem especialista em imunologia é, dá cloroquina pra uma dúzia de pacientes, que se curam, e acha que descobriu a pólvora. As pessoas não percebem que mesmo que déssemos cachaça para essas pessoas elas iriam se curar. Não é assim que se testa um remédio. Fosse assim, babosa curaria câncer. Há relatos. Por que não contam para os pesquisadores da Universidade Johns Hopkins? Deve ser por que os hospitais e laboratórios lucram com as doenças, não com a cura.

A crítica é para que possamos como sociedade entender os buracos, problemas e consequências de se tomar decisões apressadas que afetam a vida de todos. Uma querentena açodada e mal feita nos colocou nessa posição de protagonistas duma catástrofe. A gente se horrorizava com os mil mortos por dia na Itália. Agora olhamos para os nossos mil mortos e achamos que os governos estão inventando números.

Mas olhando para os relatos do final de semana de calor, parece que está tudo bem. Bares e praias cheios. Normalizamos a epidemia.

Na crônica esportiva é a mesma coisa. O papel dos críticos é criticar, apontar os problemas e elogiar o que deve ser elogiado. Há poucas semanas criticaram muito um jornalista por ter divulgado informações sobre um treino fechado do Flamengo. Ele cumpriu o seu trabalho: recebeu as informações e as repassou para o público. Azar é de quem deixou vazar a notícia.

Neymar não joga mal porque recebe críticas, ele recebe críticas quando joga mal. O Brasil não tem problemas porque a impresa faz críticas, a imprensa publica críticas porque os políticos e gestores do país fazem coisas erradas.

É evidente que podemos questionar “como” as coisas são publicadas. Numa sociedade em que não se pode criticar nenhuma autoridade, se vive sob o jugo do autoritarismo. Na qual, suspeito, ninguém sensato queira viver.

O ensino de português na escola e na universidade

Sempre sinto uma dose de culpa quando vejo essas reportagens que mostram alunos recém-saídos do ensino médio (EM) ou graduandos se dando mal em redações, ditados, entrevistas ou atividades que requerem o uso da língua portuguesa (LP), afinal, parte do meu trabalho como professor universitário é formar professores. Claro que o português é o centro de tudo e há três causas para o fracasso do ensino público: a) despreparo do professor; b) estrutura escolar (currículo equivocado, espaço físico, bibliotecas, etc.); c) cultural: nossa sociedade não valoriza as atividades de leitura e escrita como um bem a ser cultivado, o discurso é bonito, mas na prática ainda lemos menos livros per capita do que a Argentina. Não quero falar disso exatamente, mas há uma ligação entre esse problema e o que eu faço: ensinar LP para calouros. A pergunta inevitável é: por que precisamos ensinar LP para quem sai do EM de onde deveria sair sabendo tudo que é preciso saber para seguir a vida profissional? Não é uma forma de “consertar” ou “amenizar” o fracasso do ensino de português nas nossas escolas? Eu diria que sim e que não. Vejamos os dois lados.

Sim, estamos consertando o ensino fracassado. Primeiro devemos ter em mente qual o objetivo do ensino de LP nas escolas. Lendo os documentos oficiais (os parâmetros curriculares), o leitor vai encontrar expressões bonitas como “cidadania”, “formação integral do indivíduo”, “preparação para o mercado de trabalho”, etc., tudo isso é algaravia pra dizer que o objetivo da escola é formar cidadãos capazes de utilizar a leitura, a escrita, e a fala em situações sociais com competência. Afinal, não escrevemos, não lemos e não falamos em todas as situações sociais da mesma forma. O fato é que mudamos a organização da nossa produção linguística, quer estejamos no trabalho, quer estejamos em casa, quer estejamos com amigos.  Ensinar LP na universidade seria então ensinar o que o cidadão deveria ter aprendido no EM e não aprendeu, coisas como ortografia, pontuação, expressar-se oralmente sem usar gírias (que nada mais é do que mostrar para o aluno que se precisa mudar a forma como se fala dependendo da situação, uma tarefa fácil, mas poucos professores fazem isso) e efetuando todas as concordâncias, tarefa impossível de se realizar, se a pessoa não mergulha no uso culto do português (escrito e oral: não basta ler e ouvir, é preciso pensar e analisar o que se lê e o que se ouve). O que chamamos de “português” não deveria ser um conjunto de “conteúdos”, mas um conjunto de competências que os jovens deveriam adquirir, de posse delas (ler, escrever, falar, ouvir) ele deveria ser capaz de se sair bem em qualquer carreira que escolhesse: de instalador de telefone da Oi, até engenheiro mecatrônico ou atendente de teleatendimento.

Não, tem coisas que não precisam ser ensinadas no ensino médio e deveriam ser ensinadas na universidade. Para quem não sabe, o ensino de LP na universidade busca essencialmente refinar as capacidade de leitura e escrita dos calouros. Isso acontece através de atividades de escrita e leitura que trabalham com os gêneros textuais que circulam, preferencialmente, na academia: resumos, resenha, fichamento, relatório, projetos, artigo, ensaio, etc. Para um aluno que conclui o ensino médio e não vai entrar na universidade esses gêneros não são importantes, e portanto, não precisam ser ensinados na escola. Será? Eu diria que as duas premissas estão erradas:  a) a necessidade de refinar as habilidades de leitura e escrita; b) a universidade precisar ensinar os gêneros que utiliza. Há várias formas de resumos circulando na nossa sociedade, tais como sinopses de filmes que lemos em jornais e sites, na quarta capa dos livros ou na orelha sempre temos uma breve descrição do enredo, no começo ou no final dos artigos científicos, projetos e monografias temos um resumo (teses e dissertações são monografias também, só cumprem funções diferentes e se exigem padrões qualitativos diferentes também aos autores delas), que cumpre a mesma função em todos esses lugares: apresentar o conteúdo ao leitor e seduzi-lo a ler a obra. O professor de português universitário dirá: tá, cara pálida, e artigo científico? Não existe em outro lugar além das revistas acadêmicas. Ledo engano, existe sim. Se o professor lesse revistas como a Scientific American de vez em quando saberia, ou mesmo grandes jornais nacionais, que ocasionalmente publicam ensaios de cientistas. Chamados de “artigos de divulgação” esses textos possuem basicamente a mesma estrutura dos artigos acadêmicos, embora em linguagem mais acessível, e sem a profundidade de discussão que se exige dos textos que são submetidos aos periódicos acadêmicos. Se esses textos fossem lidos e estudados na escola: nas aulas de física, química, biologia, e mesmo língua portuguesa ou história, quando o aluno chegasse na universidade seria um leitor e escritor competente. Professores de física, química ou matemática que dizem que não se precisa saber ler e escrever para ser um físico, químico ou um matemático são estelionatários e deveriam ser demitidos. Só pra citar dois importantes físicos do século XX, Einstein e Feynman possuíam um grande apreço pela escrita e pela popularização da ciência. Assim, o meu argumento essencialmente é: não se ensinam os gêneros da academia na escola porque não se ensina ciência na escola. Todo mundo já deve ter feito aquele experimento de cultivar um grão de feijão no algodão. O professor provavelmente pede um relatório(!), que nada mais é do que um narração que descreve dia a dia o que aconteceu com a semente, as transformações pelas quais ela vai passando ao longo dos dias, desde que bem cuidada e aguada. Isso não difere em nada de um pesquisador da Embrapa que está estudando novas sementes de soja para aumentar a produtividade e fazer a semente resistente às pragas. E por que no ensino médio não se fazem experimentos? Lembro que as escolas em que eu estudei possuíam laboratórios fantásticos, cheios de pipetas, tubos de ensaio e outros vidros de formatos diferentes que não sei nomear, no Colégio Estadual Túlio de França (União da Vitória-PR) tem até um esqueleto (espero que ainda esteja lá), não é qualquer escola pública que tem o privilégio de ter a estrutura que aquela escola tinha, mas porque a gente ia pro laboratório como se fôssemos fazer uma excursão a um museu, em que não tínhamos o direito de tocar em nada, passar em linha pelo microscópio e olhar rapidamente o que tinha na lâmina, meramente um exercício de curiosidade (o sangue é assim?!).

Mas por que então não se ensina o português nas escolas se utilizando desses gêneros? Por uma série de razões: a) currículos equivocados: a perspectiva conteudista e vestibuleira torna o EM uma grande apresentação de períodos literários e redação dissertativa, a redação do vestibular e dos concursos, que é importante claro, mas que deveria ser um subproduto, não um objetivo final do ensino (qual a diferença entre o ensino público e o privado? Há muitas, mas a principal é cultural, meninas de classes humildes saem da escola para virar balconistas, e meninas de classe média saem da escola privada para virarem psicólogas, farmacêuticas, fonoaudiólogas, etc., os professores sabem disso, e fazem a sua parte para que esse destino se cumpra); b) professores mal-preparados: infelizmente muitos professores dos cursos de letras parecem ter orgulho de dizer que não fazem ciência (não sei o que fazem na academia então) e essa desvinculação entre o fazer científico e o fazer pedagógico (o tipo de ideia que colocam na cabeça dos graduandos e futuros professores de português) faz com que tenhamos propostas pedagógicas mirabolantes desligadas da realidade; c) se tivéssemos uma política séria de ensino de língua ela estaria inexoravelmente vinculada a uma perspectiva interdisciplinar: professores da área de exatas e biológicas (matemática, física, biologia) e de humanas (geografia, história, filosofia, etc.) deveriam estar engajados em um projeto escolar de se trabalhar com textos acadêmicos de divulgação: hoje, felizmente, temos revistas como a História, a Filosofia, a Scientific American, a Galileu que são destinadas ao grande público; d) como consequência de (c), projetos de pesquisa interdisciplinares que tivessem como requisitos relatos escritos, em conjunto, o professor de português e o professor de biologia ou história, poderiam desenvolver projetos de escrita em que o biólogo ou o historiador fornece o mote da escrita e o professor de português auxilia os alunos no “como” escrever, possivelmente tornando esse resultado depois público, na forma de escrita de livros, exposição dos trabalhos aos pais, feira de ciências da escola, escrita coletiva de um artigo de divulgação a ser enviado para o jornal da cidade, etc. As alternativas são muitas, falta o quê então: vontade, estímulo, compromisso, gestão eficiente, formação adequada, etc. Como o personagem Walter White de Breaking Bad, o professor de física, química ou biologia das nossas escolas é alguém que não se deu bem na iniciativa privada e virou professor para não passar fome, muito poucos escolhem o magistério como primeira opção (é só comparar o salário de um químico na iniciativa privada com o salário de um professor com graduação para saber o porquê).

Por que pesquisar o português?

O Mario Perini explica melhor que eu o que é pesquisa em gramática

Eu tinha planejado falar de outra coisa hoje, mas como o meu professor de violão me desafiou com a pergunta  “o que se descobriu sobre o português nos últimos tempos?” resolvi pensar sobre isso já que a minha aula de violão acabou virando um debate sobre a importância da pesquisa científica, que pra ele é nenhuma. É difícil explicar para o leigo os problemas científicos em linguagem, afinal, para o cidadão comum não há nada relevante a ser estudado ali e as consequências desse estudo não possuem uma aplicação direta na sua vida (tá e daí se o português brasileiro tem objeto nulo?), não é como se estudando o solo pudéssemos melhorar a produtividade de uma plantação ou saber que tipo de planta cresce melhor naquele ambiente, ou fôssemos curar alguma doença estudando uma bactéria ou vacina nova.
Por que, mesmo com as diferenças regionais de pronúncia, nos entendemos?
Eu tentei explicar pra ele (talvez o exemplo não fosse o mais adequado, mas foi o único que me surgiu naquelemomento) que hoje sabemos melhor como funciona a comunicação e conseguimos explicar porque, apesar das diferenças regionais de pronúncia e sotaque, falamos que um gaúcho, um mineiro, um cearense, ainda falam o português. Eu perguntei a ele como ele explica que embora existam diferentes pronúncias regionais para uma mesma palavra, as pessoas ainda se entendem. Um cearense vai falar ‘mininu’, um paranaense ‘meninu’ e um gaúcho ‘menino’, essa última pronúncia é mais próxima da nossa escrita, só que isso não é relevante, estamos preocupados com a fala. Para o J. (meu professor de violão), isso é óbvio, a língua é uma convenção, e as pessoas se entendem porque convivem na mesma sociedade. Eu repliquei, mas suponha que um gaúcho dos pampas se encontre pela primeira vez com um sertanejo do ceará, e o gaúcho fale ‘menino’. Será que o sertanejo vai encontrar problemas para entender o que o gaúcho quis dizer? Ele não se convenceu, pois não entendeu o problema. Tentei ser mais específico. Vejamos o seguinte. Agora compare os seguintes pares: ‘pira/pêra’, ‘murro/morro’. O que aconteceu? Se eu troco um som pelo outro as palavras mudam de significado nesse caso, mas não mudam no outro. Será que não temos um problema científico interessante aí? Como é que o cara que nunca falou ‘mininu’, e vive em uma comunidade que só fala assim, ouve alguém falar ‘menino’ sabe que essa palavra significa o que significa e significa a mesma coisa que se ‘mininu’ significa? É, ele não viu graça e interesse nenhum em estudar isso.
O que aprendemos sobre o português nos últimos 100 anos?

Gramática de João de Barros (1560), segunda gramática sobre o português, e há quem diga que é cópia de uma gramática latina

Claro que para o leigo dizer que: descobrimos os nomes nus; que o português está passando por um processo de rearranjo do sistema pronominal (tônico e átono) e de concordância verbal; que usar o pretérito perfeito não acarreta que a ação que descrevo tenha chegado ao seu final natural no passado; que só se pode concordar em gênero e número, não em grau, porque o grau não é um processo flexional, logo não desencadeia concordância; são coisas que não farão o menor sentido. Provavelmente se ele souber algum dia que se estuda matéria escura, ou física quântica vai achar uma perda de tempo. Descobrimos que não há nada mais feio ou mais bonito ou mais certo ou mais errado entre ‘dois reais’ e ‘dois real’, entre ‘nós vamos almoçar’ ou ‘a gente vamos armoçá’ ou ‘nóis vai armoçá’. Pelo menos ninguém conseguiu provar que quem usa as opções ditas ‘corretas’ é mais inteligente e capacitado para tarefas cognitivas do que o sujeito que utiliza as opções coloquiais. O fato de que uma é considerada a correta é uma opção política, uma escolha, e escolhas envolvem juízos de valor. Não é um fato natural que as opções ditas ‘corretas’ sejam as mais adaptadas para a comunicação. Pelo contrário, o que a pesquisa nos mostra é que se uma comunidade usa uma forma linguística qualquer (gostemos disso ou não), essa forma se presta aos usos comunicativos de que aquela comunidade necessita. Acho que aprendemos também que as línguas não pioram, não deterioram, não se corrompem, e por mais que Saramago pareça uma autoridade em termos de língua, não se preocupem, jamais voltaremos a grunhir, como ele prevê no seu depoimento para o documentário ‘Língua: vidas em português’. Também tentei argumentar que, por mais que agora muita pesquisa não tenha aplicação prática, no futuro poderemos ver os resultados, e aquilo que parece sem valor agora, poderá ter amanhã, ou contribuir, mesmo que seja um pouquinho, para a compreensão da nossa realidade linguística ou para como o português funciona e com isso, entender como as línguas humanas funcionam de uma maneira geral. Uma das mais importantes descobertas do século XX (embora no funda seja uma hipótese) é a Gramática Universal. Acreditando que ela existe, quais as consequências? Nascemos aptos pra falar qualquer língua, e em decorrência disso há regras muito abstratas que todas as línguas obedecem, apesar das diferenças superficiais arbitrárias.

Se J. conhecesse os gregos mesmo diria que Aristóteles já acreditava nisso, que gramáticos de Port-Royal também defendiam isso e que o Chomsky só copiou a ideia. Só que a diferença é que hoje podemos mostrar isso, mostrar que línguas tão diferentes como o inglês, o português e o japonês obedecem aos mesmos princípios gramaticais. Mas pra ele isso não fará diferença, já que é só uma hipótese de trabalho, uma teoria, e por enquanto não temos certeza absoluta disso, e se a ciência não nos dá verdades (dá verdades, mas provisórias), pra que se dar ao trabalho? E se descobrirmos que o c-comando é uma princípio universal, que diferença isso vai fazer? Não vai mexer com o preço do petróleo, certamente, mas estudos desse tipo nos ajudaram a perceber que mesmo a língua de uma pequena tribo na amazónia é tão complexa quanto o alemão ou o japonês, que a língua que o sertanejo ou o colono da roça falam tem tanta regra quanto a língua que os nobres jornalistas da Veja e da Folha de São Paulo falam. Se a pesquisa linguística nos ajudou a ter menos preconceito em relação a povos ‘menos civilizados’ que nós ou em relação a comunidades brasileiras com menos oportunidades de educação que nós habitantes das cidades temos, isso já não é um ganho suficiente? Ou ainda, de que adianta ensinar linguística nas faculdades de letras se nunca teremos um Bloomfield, um Sapir, um Jakobson, um Chomsky. Tivemos um Mattoso Camara Jr., para o qual muitos alunos ainda torcem o nariz, infelizmente não sabemos apreciar os nossos gênios. Todo mundo na academia tem um currículo Lattes, mas quantos sabem quem foi César Lattes? Afinal, o senso comum nos diz, através da voz de J. que o estudo não importa, precisamos ter talento. Não existe novidade na ciência, só cópia. Vai ver o Mattoso descreveu o sistema vocálico do português brasileiro copiando a gramática do latim.

Educação científica em língua portuguesa, é possível?

Creio que uma das grandes dificuldades dos alunos de letras em lidar com a linguística se deve pela falta de preparo científico na educação escolar. É famosa a afirmação de Richard Feynman sobre o ensino brasileiro de física, quando ele cá esteve, nos idos dos anos 70, se não me engano. Para ele não se ensina a pensar cientificamente nas escolas. E me incomoda demais quando os alunos estão somente preocupados com o que vai cair na prova e não em compreender o que eu estou dizendo, como se o objetivo do ensino fosse incorporar noções e conceitos para dali um mês se dar bem na prova e depois deletar essa informação da memória.

Chomsky (nas Manágua Lectures) nos fala que o ensino só atinge resultados duradouros se os alunos são estimulados a se interessarem pelo conteúdo. Para ele pouca diferença faz o método do ensino, contando que o aluno se sinta curioso sobre aquilo. Ambas as afirmações colocam o peso no professor e no planejamento do conteúdo. Só irá fazer sentido para o aluno se ele se interessar seriamente pela matéria. Enquanto nossos alunos aprenderem para a prova a situação da nossa educação escolar continuará como está, e formar cientistas será sempre um efeito colateral. Temos cientistas porque algumas pessoas são curiosas por natureza, não porque foram propriamente estimuladas a pensar cientificamente. De outra forma, os cursos de mestrado e doutorado estariam cheios, e não com vagas ociosas porque os candidatos não conseguem ser aprovados nos testes de admissão. Isso é fruto de um ensino regular e universitário que privilegia o conteúdo e não o desenvolvimento de habilidades de reflexão e síntese. Quando vejo alunos grifando páginas inteiras de um texto, ou fazendo citações do tamanho de um parágrafo, me preocupo com esse tipo de habilidade, que aparentemente não foi desenvolvida, e o desafio está justamente em fazer isso.

Quando se trata de língua a coisa complica. Primeiro porque precisamos combater toda uma tradição de ensino que fala de língua em termos de certo e errado. Segundo porque essa mesma tradição não fez os alunos pensarem criticamente sobre isso, nem sobre as classificações que a tradicação gramatical propõe, que no fundo, são apenas teorias. Que as orações comparativas na língua portuguesa são subordinadas adverbiais é uma teoria, facilmente contestável ou demonstrável através da razão e de bons argumentos. As orações comparativas são como as baleias, seres que nadam, vivem na água, mas não são peixes. Há quem defenda que elas são orações coordenadas (correlativas, uma classe pouco discutida, sequer apresentada em nossas gramáticas), há ainda quem diga que tem um pouco dos dois, coordenação e subordinação. Quando se trata de fonética e fonologia o negócio complica ainda mais porque os alunos demoram pra conseguir desligar a associação entre escrita e som. A fonte dos dados fonéticos não é a escrita, é o som, a produção falada dos falantes. Falar em fonologia então complica ainda mais, porque a fonologia vai tratar de coisas ainda mais abstratas, que são os fonemas, unidades distintivas (como o /p/ e o /b/). Por isso, quando o Possenti falou em um programa, algum tempo atrás, que discutia o internetês, que a escrita de ‘não’ como ‘naum’ era evidência de uma análise bastante sofisticada do sistema fonológico do português, pouca gente entendeu. Assim como muito alfabetizador não deve saber porque a criança escreve ‘muinto’. Se vocês não sabem eu explico. J. M. Câmara Jr., principal linguista nacional, defendia que as vogais nasais na língua portuguesa são a união de um fonema vocálico oral, mais um arquifonema nasal /N/ (os fonemas são representados entre barras). Veja que o /N/ é uma entidade abstrata, uma construção teórica. Supondo que ela existe o que aconteceria? acontece o que vimos acima com o ‘muinto’, e provavelmente uma criança que aprendeu a escrever ‘som’ irá escrever também ‘lam’ para ‘lã’. Na hipótese do Câmara Jr. sempre depois de uma vogal nasal temos um arquifonema e não uma consoante nasal [m] ou [n] (os elementos entre colchetes são fones, unidades atestadas na fala, não letras). Repare que isso é apenas uma teoria, não um fato. As coisas podem não funcionar, assim. Essa explicação é hipotética no sentido de que pode ser refutada, ou podemos encontrar mais evidências para confirmá-la. Só que quando os alunos não sabem o que é uma ‘teoria’, um ‘fato’ e uma ‘hipótese’ ou mesmo um ‘argumento’, fica muito mais difícil o trabalho, porque ao mesmo tempo em que é preciso fazê-los compreender análises complexas temos que introduzir fundamentos de ciência, como o conceito de ‘premissa’, por exemplo (daí eu me pergunto o que eles tem aprendido nas aulas de filosofia).