Reproduzo abaixo o artigo de Ferreira Gullar, publicado na Folha, no último domingo 25/03. O artigo recebeu uma réplica de Hélio Schwartsman, hoje. O texto do poeta segue em itálico, os negritos são meus. Eu volto depois, pra comentar.
DA FALA AO GRUNHIDO – Ferreira Gullar
DESCONFIO QUE, depois de desfrutar durante quase toda a vida da fama de rebelde, estou sendo tido, por certa gente, como conservador e reacionário. Não ligo para isso e até me divirto, lembrando a célebre frase de Millôr Fernandes, segundo o qual “todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano”.
Divirto-me porque sei que a coisa é mais complicada do que parece e, fiel ao que sempre fui, não aceito nada sem antes pesar e examinar. Hoje é comum ser a favor de tudo o que, ontem, era contestado. Por exemplo, quando ser de esquerda dava cadeia, só alguns poucos assumiam essa posição; já agora, quando dá até emprego, todo mundo se diz de esquerda.
De minha parte, pouco se me dá se o que afirmo merece essa ou aquela qualificação, pois o que me importa é se é correto e verdadeiro. Posso estar errado ou certo, claro, mas não por conveniência. Está, portanto, implícito que não me considero dono da verdade, que nem sempre tenho razão porque há questões complexas demais para meu entendimento. Por isso, às vezes, se não concordo, fico em dúvida, a me perguntar se estou certo ou não.
Cito um exemplo. Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz dizer “nós vamos” como “nós vai”.
Ouço isso e penso: que sujeito bacana, tão modesto que é capaz de sugerir que seu saber de nada vale. Mas logo me indago: será que ele pensa isso mesmo ou está posando de bacana, de avançadinho?
E se faço essa pergunta é porque me parece incongruente alguém cuja profissão é ensinar o idioma afirmar que não há erros. Se está certo dizer “dois mais dois é cinco”, então a regra gramatical, que determina a concordância do verbo com o sujeito, não vale. E, se não vale essa nem nenhuma outra -uma vez que tudo está certo-, não há por que ensinar a língua.
A conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.
Mas esse vale-tudo é só no campo do idioma, não se adota nos demais campos do conhecimento. Não vejo um professor de medicina afirmando que a tuberculose não é doença, mas um modo diferente de saúde, e que o melhor para o pulmão é fumar charutos.
É verdade que ninguém morre por falar errado, mas, certamente, dizendo “nós vai” e desconhecendo as normas da língua, nunca entrará para a universidade, como entrou o nosso professor.
Devo concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opinião crítica com preconceito?
As minorias, que eram injustamente discriminadas no passado, agora estão acima do bem e do mal. Discordar disso é preconceituoso e reacionário.
E, assim como para essa gente avançada não existe certo nem errado, não posso estranhar que a locutora da televisão diga “as milhares de pessoas” ou “estudou sobre as questões” ou “debateu sobre as alternativas” em vez de “os milhares de pessoas”, ” estudou as questões” e “debateu as alternativas”.
A palavra “sobre” virou uma mania dos locutores de televisão, que a usam como regência de todos os verbos e em todas as ocasiões imagináveis.
Sei muito bem que a língua muda com o passar do tempo e que, por isso mesmo, o português de hoje não é igual ao de Camões e nem mesmo ao de Machado de Assis, bem mais próximo de nós.
Uma coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais primários.
Mas a impressão que tenho é de que estou malhando em ferro frio. De que adianta escrever essas coisas que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a fala errada cem vezes por hora para milhões de telespectadores?
Pode o leitor alegar que a época é outra, mais dinâmica, e que a globalização tende a misturar as línguas como nunca ocorreu antes. Isso de falar correto é coisa velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas grunhindo.
VOLTEI. Vou comentar alguns trechos específicos, que contêm alguns equívocos.
a) Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz dizer “nós vamos” como “nós vai”.
Cientificamente ninguém conseguiu provarque a pessoa que diz “nós vamos” é mais inteligente ou mais competente para o que quer que seja do que a pessoa que diz “nós vai” e esteta algum consegue provar que uma é mais bonita que a outra. Critérios do tipo ‘a primeira opção soa melhor’ tampouco são justificáveis. Isso é uma coisa. Agora, as duas opções expressam exatamente a mesma informação, e é disso que se fala quando se diz que não há certo ou errado. É um equívoco imaginar que a escola não deva ensinar ao garoto que lá chega falando “nós vai” que existe a forma “nós vamos”. Para o oposto, no caso do aluno que chega falando “nós vamos”, ele precisa entender que o coleguinha que fala “nós vai”, ou “a gente vai/vamos” não é melhor ou pior que ele. Acontece que a escrita formal exige que se use uma forma apenas “nós vamos”, e essa é a considerada correta por motivos políticos. E não venham me acusar de que isso é papo de esquerda, porque não é. É um fato histórico. Escolheu-se a variedade culta em detrimento do coloquial para ser o padrão brasileiro, e se isso não é um fato político é o que então? (Sugestão de leitura: Carlos A. Faraco “Norma culta brasileira”, vai ser esclarecedor)
b) A conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.
Outro equívoco do poeta. Suponha que abolíssemos o certo e o errado no ensino de português. Há quem defenda que se substituam esses termos por ‘adequado’ e ‘inadequado’, suponho que era disso que o tal professor (quem mesmo, Gullar?) estava falando, mas provavelmente Gullar enfureceu-se só de ouvir que não existe certo e errado e nem se deu ao trabalho de ouvir o restante. Pois bem, pode-se demonstrar facilmente que há tanta concordância verbal em “nós vamos” quanto há em “nós vai”. Só que a concordância que o indivíduo (ou a comunidade de indivíduos) usa não é a considerada ‘correta’. O que faria dela a ‘errada’ por default, não por critérios científicos. Os falantes não inventam regras gramaticais, eles apenas seguem as regras que a sua comunidade segue (é disso que o Hélio S. fala). Querer que um sertanejo ou um gari fale “nós vamos” é o mesmo que pedir que eles usem terno e gravata no serviço.
c) Devo concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde opinião crítica com preconceito?
Repito aqui as palavras de Sírio Possenti em “Por que (não) ensinar gramática na escola”: “O objetivo do ensino de português na escola é ensinar o português padrão [ou a norma padrão ou o português culto], ou, o de criar condições para que ele seja aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e pedagógico.” (p. 17). Repare que ensinar o português padrão/culto não exclui a possibilidade de se reconhecer que o português falado no Brasil possui regras variáveis do tipo discutido pelo poeta, e falar disso faz parte do trabalho do professor. Ensinar quando se pode usar uma e quando se deve usar a outra é tarefa básica.
d) Uma coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais primários.
Acho que estamos diante de uma contradição aqui. Em parágrafo anterior o autor afirma estar consciente de que as línguas mudam. No trecho que eu destaquei ele se posiciona contra a mudança. Quem são os falantes para mudarem a língua, quem eles pensam que são! Me desculpe aí, Gullar, mas eu assisto filmes, jogos de futebol e outras coisas (espero que se ele me ler, entenda a ironia). A lógica natural do idioma é a mudança, e o que você, ou eu deveria dizer, Vossa Mercê, está chamando de ‘erros gramaticais primários’ são um simples reflexo dessa mudança.
e) Isso de falar correto é coisa velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas grunhindo.
Acho que ficou clara a minha posição sobre esse história de certo/errado. Eu só não entendi de onde ele tirou essa história de que quem fala “nós vai” ou “estudou sobre as questões” está grunhindo. Vai ver ele mudou deliberadamente o significado do verbo ‘grunhir’ e não nos contou. Epa! Quem ele pensa que é pra mudar assim o significado de uma forma da língua!
Resumindo a ópera: na verdade falar em certo/errado ou adequado/inadequado é a mesma coisa, sendo cru e rasteiro. À linguística o que é da linguística, à escola o que é da escola, dirão alguns, como o prof. Carlos Moreno (que possui um compromisso abstrato com a cultura, como se quem defendesse a valorização dos falares coloquiais fosse contra a cultura dita erudita, ou vai me dizer que Patativa do Assaré não é cultura?). O papel da linguística é justamente mostrar que há tanta gramática e concordância em “nós vamos” quanto em “nós vai” ou “a gente vai/vamos”. Por que é tão difícil compreender que é justamente esse o papel da escola, mostrar que dentre as quatro opções disponíveis no sistema da língua só uma é aceita como a correta em termos de escrita. Isso é democracia, não achar que quem fala “nós vai” é primitivo e ignorante, ou devo interpretar o verbo ‘grunhir’ aqui como um elogio?. Na fala temos outra situação. Ou vai me dizer que o Ferreira Gullar se arrepia todo quando ouve o Emílio Zurita dizer “A gente vai agora ver uma matéria que…”. “A gente vai” é sim a norma no português coloquial televisivo. É errado? Errado pra quem? Por que seria errado? Só porque é novo?