Sobre esperança

Lá na sexta-feira eu imaginava acordar com várias capitais de estados brasileiras tendo como prefeitos e prefeitas eleitas gente de esquerda. Não foi bem isso que aconteceu, especialmente em Porto Alegre, onde eu achei que dava pra ganhar e onde a esquerda brasileira tem raízes fortes.

Ou tinha, sei lá.

[Minhas duas filhas são porto-alegrenses de nascimento e tenho um grande carinho pela cidade.]

Tem um monte de explicações para as derrotas, porque se tem uma coisa que era óbvia era a qualidade da Manuela, ou da Marília Arraes, candidata em Recife. Ou mesmo do Boulos em São Paulo. Mas não quero falar dessas explicações.

[pra imprensa/ou colunismo de política, qualquer dono de mercearia tem mais experiência de “gestão” do que líder de movimento social, como se administrar uma cidade fosse só cuidar de planilhas e decidir onde o dinheiro deve ser gasto].

Quero falar um pouco de sentimento. Porque a política é um bom tanto sentimento. Por mais que o meu guru Bertrand Russell dissesse que a política devesse ser tratada sem paixão, ela é uns 70% paixão.

Um colega, certa vez, num almoço na universidade, comentava que a esquerda tinha perdido o monopólio da esperança. Essa talvez seja uma chave pra isso tudo.

Claro, a memória da corrupção nos governos do PT e todo o alarde que se fez em torno dos escândalos, contribuíram para colar à esquerda a pecha de corrupta. Lembro claramente do Arnaldo Jabor esbravejando que o PT tinha um esquema pra se perpetuar no poder e essa balela toda. Isso foi lá em 2004, 2005 (se não me engano), quando estourou o mensalão. Essa tese veio se repetindo desde então. Até a patota de Curitiba convencer a opinião pública em termos jurídicos.

Uma certa classe média e uma boa parcela do colunismo de política sempre detestou o PT, a esquerda, e os ideais que representam (especialmente o poder nas mãos dos trabalhadores), embora muitos sejam progressistas no debate dos costumes.

Isso explica o Bolsonaro ter recebido 46% dos votos válidos em 2018 no primeiro turno? Talvez sim. Talvez aquele deputado simplão que nunca tinha feito nada de relevante na vida se apresentou como a esperança para aquele povo todo que achava que o PT não deveria voltar ao governo e que estava cansado da violência.

Foi um voto com raiva, mas foi um voto também da esperança.

Porque a política é um pouco (ou muito?) isso. Olhar para aquele indivíduo que vai te representar ou governar tua cidade, estado ou país e ver nele alguém capaz de tornar a sua vida melhor.

Vai ver os partidos de esquerda precisam contaminar de novo o trabalhador com o bichinho da esperança, fazendo ele ver que quem vai de fato representá-lo são esses partidos.

A opção pela barbárie e pela mentira

Que os políticos mintam isso não é novidade. Sempre mentiram e sempre vão mentir. É uma questão de sobrevivência. Como num relacionamento. Às vezes a gente precisa contar umas mentirinhas porque se ficar falando a verdade o tempo todo vai ter muita discussão. Mas se a gente precisa mentir é porque está fazendo coisa errada.

É o mesmo com os governos. A mentira ocorre para se acobertar coisas erradas.

Veja o caso das queimadas. Os membros do governo poderiam ser sinceros e dizer que estão cientes do problema e estão fazendo o possível para controlar o fogo, punir culpados, fazer campanhas para que fazendeiros parem de tocar fogo no mato. É ruim pra todo mundo: para os clima, para os animais, para a agricultura.

Não me entra na cabeça que o caboclo ache que vai ser bom tocar fogo no mato. Mas aqui é Brasil, né?

Me lembro daquela passagem do Raízes do Brasil em que Sérgio Buarque de Holanda comenta que os europeus ao chegarem aqui, ao invés de trazerem suas técnicas de plantio se apropriaram das técnicas mais rudimentares dos índios e dos caboclos. Se não me engano um exemplo era justamente o uso do fogo para limpar o terreno.

Mas enfim, qual é a opção do governo? A canalhice. Mentem descaradamente. Não tem fogo, dizem. São poucos focos. Estão queimando de propósito para falar mal do governo. O vice critica um funcionário que divulga os dados.

É como a mãe que, ao invés de ajudar o filho que quebrou o copo e lambuzou o chão, o critica por ter contado o que fez.

Não me entra na cabeça.

Nada de novo no front

Nada de novo no front é o título de um filme que eu ainda quero ver um dia. dizem que o livro é muito bom. Só sei que se trata de um grupo de jovens alemães que é convencido por um professor nacionalista a se alistar no exército. Mas os horrores da guerra fazem com que os jovens mudem de opinião sobre conflito.

Tem dias que a gente desanima. Como convencer alguém a mudar de opinião na política? Isso sequer é possível?

Não sei em que ponto eu mudei minhas convicções políticas e religiosas. Sei que um dia eu acordei e pensei que não podia continuar acreditando nas coisas em que acreditava. Claro que algumas leituras foram fundamentais, e eu acho que é isso um pouco que me move a continuar escrevendo, essa crença de que a gente pode mudar as pessoas.

Mas às vezes nada há para ser mudado. Tem gente que se agarra tão fortemente a uma crença que os fatos lhe são indiferentes. A cloroquina não funciona contra a covid. Ponto. Não existe mais debate. Meses depois, se há algum consenso sobre essa doença, parece ser esse. Mas as pessoas preferem ouvir ginecologistas e presidentes da república a ouvir o que dizem os especialistas.

Como alguém pode acreditar que médicos estão negando tratamento às pessoas só para contradizer o presidente? Como alguém pode acreditar que a pandemia é uma conspiração mundial? Como se convence alguém do contrário?

Como as pessoas parecem preferir o conflito? Estamos no mesmo barco, e continuamos a dar tiros contra o casco, tentando acertar os adversários.

Lembro uma vez num desses encontros familiares em que alguém disse com plena convicção que o Lulinha (filho do Lula) tinha comprado uma ilha. Eu comecei a rir. Foi uma reação natural. E então eu perguntei ao sujeito: “Escuta o que você tá dizendo. Você acredita mesmo que o filho do Lula comprou uma ilha?” Ele não me respondeu. Vai ver preferia repetir aquilo porque era algo que todo mundo falava sem perceber o tamanho gigantesco da bobagem que repetia. Às vezes a bobagem é conveniente às nossas crenças.

Há quem chame isso de “viés de confirmação”. É o que acontece quando estamos apaixonados. A gente só vê as qualidades, não vê os defeitos. Só vê aquilo que cabe dentro do nosso sonho de companheir@. A mesma coisa acontece na política.

Bertrand Russell defendia que a gente deveria discutir os assuntos políticos desapaixonadamente. Mas eu cada vez mais acho que isso é impossível, pois a arena política brasileira há muito esqueceu o seu norte, que é o bem comum, e está só preocupada com o bem individual e a briga pelo poder.

Aliás, foi essa briga mesquinha pelo poder que nos trouxe a esse inferno. Tivéssemos um presidente de verdade já poderíamos estar voltando ao normal. Ou entrando no “novo normal”.

É uma m* de uma pandemia!

Começo explicando o título. Quem me conhece sabe que gosto de palavrão, de falar e de pensar sobre eles. Eles me parecem ter uma força expressiva que nenhum outro vocábulo traz. Mesmo um atenuamento como eu usei no título já é mais forte do que só usar uma exclamativa, eu diria.

É que eu tenho sentido que muita gente não tem sentido a gravidade da coisa. Fui no mercado na semana passada comprar alguns víveres e tinha até loja de material para limpeza de piscina aberta (uma necessidade premente dessa época, né, convenhamos! – só que não).

Tá, eu até nutro uma simpatia pelo pobre comerciante que, de repente, deve viver só disso e precisa manter a porta aberta para pagar as contas. Nada contra pequenos comerciantes, tenho parentes que são e sei dos seus dilemas. Mas eles não percebem que essa urgência deles em abrir as portas se deve à incapacidade dos nossos governantes em lhes oferecer alternativas ou uma simples ajuda legislativa para o enfrentamento da situação.

Juros menores ou subsidiados, empréstimos a perder de vista, descontos em impostos (isenções para alguns casos?), subsídio para folha de pagamentos… há tanta coisa que poderia ser feita. Foda-se o ajuste das contas públicas! Foda-se a responsabilidade fiscal! É uma merda de uma pandemia! Que se imprima dinheiro! Que se emitam títulos da dívida pública! Aposto que o Itaú, o Safra, a XP, o Santander e os investidores de classe média alta os comprariam num piscar de olhos.

E se por um lado a gente tem esse povo louco por voltar ao normal (Não existe mais aquele normal, moçada, desculpa!), tem outro povo louco por fazer alguma coisa em casa: as escolas. A escola brasileira se alimenta da lógica do conteúdo, da matéria, da nota, do resultado, da lição da casa. É uma espécie de urgência quase-capitalista: a educação da meta e do resultado, do número, da produtividade.

Entendo a preocupação dos pais com os filhos desocupados em casa, principalmente uma faixa etária que, se ficar à vontade, vai passar o dia na frente da televisão, no Youtube ou nos serviços de streaming.  Mas se pensarmos bem, pra quê essa urgência? Aonde é que precisamos chegar tão logo? A porra do mundo está parado!

 

Por que paramos para ouvir os idiotas?

E o pior, por que acreditamos neles?

Nenhum idiota vem com uma plaquinha na testa, nem tem uma cor de cabelo especial. São pessoas normais, brasileiros normais, como eu, você ou o dono da padaria aqui da rua.

A internet deu voz a uma trupe de tagarelas que não tinha audiência. Isso é um fato. Se antes um Olavo tinha que suar um pouco para conseguir publicar um artigo ou outro numa Cult ou num jornalão, hoje ele pode publicar no seu site, falar por horas no seu canal no Youtube ou fazer um podcast, e ainda publicar num site qualquer desses de direita que pululam por aí. Que esses caras falem, não me admira, são humanos, e humanos falam. Me admira que alguém pare para ouvi-los.

Para mim, são como aqueles pastores de praça ou mendigos que anunciam que o fim está próximo em filmes de ficção científica, pouco antes de as trombetas dos anjos vingadores tocarem. Quem dá bola para eles? Aparentemente, muita gente está dando. Afinal, por que alguém doaria R$25mil para um canal que defende o terraplanismo? R$25mil!

Há uma espécie de sedução no indivíduo que se expressa bem. É como se o sujeito bem articulado fosse um encantador de serpentes, um flautista de Hamelin, e nós meros ratinhos autômatos, rapidamente sugestionáveis pelo sussurrar de umas poucas palavras que digam o que queremos ouvir. Mas note que não é apenas o conteúdo, é a forma. O idiota fundamental consegue revestir suas palavras vazias com pompa e autoridade; ele sempre está do lado dos fatos, da lógica, da verdade (note como, durante a campanha, Bolsonaro repetia exaustivamente estar ao lado da verdade ao mesmo tempo em que mentia descaradamente) e confunde correlação com causação sem nem ficar vermelho. Há sempre uma exaltação, uma paixão no seu tom de voz; ele não fala, apenas, ele está indignado. E a indignação é contagiante. Não gostamos de coisas erradas, de políticos corruptos, de funcionários públicos preguiçosos. O moralismo conquista as massas. E o idiota fundamental sempre está do lado do bem; ele detém o monopólio do bem, da família e da religião.

Talvez algum antropólogo sábio já tenha escrito algum livro sobre o poder de sedução que a fala exerce, nesse sentido de pararmos para ouvir o que alguém tem a dizer apenas por que essa pessoa é bem articulada e fala sedutoramente. Suponho que assim tenham nascido a religião e os líderes (não há sociedade humana sem religião e sem líderes, sejam políticos ou espirituais), fazendo aqui uma sociologia artesanal. Não são poucos os que correlacionam falar bem com inteligência e calar com burrice.

“a idolatria da técnica verbal vista como o supremo sinal de inteligência a despeito do conteúdo ralo ou nenhum são constantes da mentalidade brasileira, independentes dos grupos e classes, das épocas e situações.” (Olavo de Carvalho, Bravo! Out/1999)

Na Roma Antiga, falar em público era uma arte e o estudo da Gramática era um pré-requisito para o desenvolvimento dessa habilidade. A escolha das melhores palavras, a boa conjugação dos verbos, a adequada declinação dos nomes, a disposição das palavras na oração, a construção de figuras de linguagem (de pensamento, sintáticas etc.) eram aspectos formais importantes. Note como os jovens vêm se apropriando da nomenclatura de estruturas argumentativas (falácia, solipsismo, ad hominem, etc.) – Nota: Olavo prefaciou uma edição brasileira do livro “Como vencer um debate sem precisar ter razão”, de Schopenhauer”, no qual diz que seu objetivo é ajudar o leitor “a resguardar-se dos tagarelas, e não a transformar-se num deles”.

O idiota fundamental é um tagarela. E o tagarela nunca estará desempregado: ele está na frente dos microfones nos rádios, ele é entrevistado constantemente, ele exerce cargos públicos variados, ele é o professor da escola, do curso técnico, ele é o advogado, ele é o vendedor, ele é o sacerdote das religiões, ele faz discursos nos bares… Falta-nos, talvez, um esforço de ceticismo. Ao ouvirmos alguém falar tão apaixonadamente sobre alguma coisa, deveríamos ficar com um pé atrás e não acreditar naquilo tudo. Por óbvio que há questões ideológicas envolvidas. Se fulano diz coisas com as quais eu concordo sistematicamente, irei ouvi-lo e tenderei a crer nele sempre; agora, se um jornalista diz coisas que eventualmente contradizem minhas crenças, é provável que eu pare de ouvi-lo.

 

Por que “fake news” funciona: a linguística da mentira

Se eu batesse na sua porta, tarde da noite e dissesse: “Me esconda, por favor! Estou sendo perseguido por agentes da KGB.” Você pensaria que eu enlouqueci. Mas como você chegaria a essa conclusão? Se eu sou seu amigo, confiei em você para me esconder, por que você não acreditaria em mim?

Se você é bem informado, deve saber que a KGB (o serviço secreto soviético) não existe mais e que a probabilidade de eu, Luisandro Mendes de Souza, um mero pai de família de classe média, professor universitário e flamenguista ser um espião também é nula. Ou seja, você se baseou nos fatos, ou melhor, nas relações que a afirmação “Estou sendo perseguido por agentes da KGB” tem com o mundo. Para que essa frase fosse verdadeira seria preciso que eu fosse um espião (ou algo parecido) e que a KGB ainda existisse. Como nenhuma dessas condições é preenchida (talvez tenha outras), você conclui que eu devo ter enlouquecido.

Mas agora, veja as afirmações seguintes:

(1) O Lula é dono da Friboi.

(2) A Dilma é dona de uma fazenda gigantesca no Mato Grosso com milhares de cabeças de gado.

(3) Jesus Cristo caminhou sobre as águas.

Considere (1). Por que tanta gente acredita nela (vai saber, né? Ou acreditou por tanto tempo), mesmo não existindo nenhuma prova material de que é esse o caso? O que nos leva a tomar como verdadeiras afirmações que carecem de base factual? O mesmo vale para (2) e (3). (3) é um dogma religioso. Por que acreditamos nesse milagre, mesmo sabendo que ele nos foi contado por alguém que escreveu essa história há quase dois mil anos, e que provavelmente não testemunhou o milagre, alguém contou a ele? Literalmente é uma fofoca: alguém contou para ele e ele está contando para a gente. Por que não tomamos (3) como ficção ou mito?

O filósofo Paul Grice (1913-1988) propôs que existe o que ele chamou de Princípio de Cooperação, uma espécie de acordo tácito entre os falantes de uma língua, que diz que todos fazemos afirmações que contribuem para os propósitos da conversa em que estamos envolvidos. Claro que esse princípio é uma idealização, mas tem um poder explicativo muito poderoso. Ele inclui ainda algumas máximas e a que nos interessa é a da Qualidade. A Máxima da Qualidade especifica que i) não afirme o que acredita/sabe ser falso e ii) não afirme algo para o qual você não possa fornecer evidências. Seria o paraíso se todos se comportassem assim.

A mentira funciona justamente porque temos uma tendência muito forte a obedecer o princípio da cooperação e acreditar que a pessoa com quem estou conversando está seguindo as máximas, principalmente a da qualidade. As conversas seriam muito complicadas e cansativas se a cada afirmação que meu interlocutor fizesse eu duvidasse da veracidade delas. Claro, talvez possam existir situações em que estamos dispostos a violar essas regras. Por exemplo, um pai pedindo explicações a um filho por algo que ele tenha feito de errado. O pai supõe que a probabilidade de o filho falar uma mentira é alta, principalmente se o filho já fez isso antes e teme alguma punição. Ou um investigador de polícia interrogando um suspeito de um crime.

É possível que outros fatores estejam envolvidos, como ideologia. Acredito em afirmações que carecem de base factual porque elas se encaixam na minha visão de mundo. Em função de toda a ajuda que o governo federal deu à JBS, alguém supôs que ela pertencesse a Lula, ou alguém mentiu mesmo só para ver se a mentira colava (e colou). Mas caras como Trump, ou Dória, ou Bolsonaro, sabem que podem afirmar o que quiserem, verdade ou não, que ninguém vai se importar. A menos, claro, que seja algo muito estúpido, tipo, “A terra é plana”, ou “Vacinas causam autismo” (uma tese menos estúpida, mas que carece de evidência, afinal, autismo não se adquire depois do nascimento).

Essa onda de se criar notícias falsas recebeu até um nome bonito “pós-verdade”. Um nome que me passa a conotação de que a era da verdade acabou, como se fosse datada. É coisa velha falar a verdade. Não deveria ser assim. Estamos, perigosamente, caminhando para a era da “não-verdade”, ou da mentira deslavada.

A mentira sempre existiu no debate político. Isso é um fato. Quando Regina Duarte afirmou que tinha medo que Lula ganhasse a eleição numa propaganda do PSDB muita gente acreditou. Um pouco em função da imagem que Lula tinha construído para si nos anos 1980-1990, a de um sindicalista radical que ia decretar a moratória da divida externa e acabar com a propriedade privada (risos). Personalidades públicas dão um ar de credibilidade ao que afirmam. Se a Fátima Bernardes diz que os produtos Seara são de boa qualidade, por que eu duvidaria, se ela todos os dias entra nos lares das pessoas falando sobre muitos assuntos?

Da mesma forma, por que eu duvidaria de uma afirmação de Bolsonaro, que eu sei que está do meu lado e não mentiria para mim (se eu estivesse do lado dele, o que não é o caso deste que vos fala)? Por que eu duvidaria de uma afirmação do Lula, que eu sei que também não mentiria para seus eleitores? Simplesmente não me dou ao trabalho de duvidar do que os políticos e jornais afirmam porque é mais fácil acreditar em afirmações que se enquadram na minha visão de mundo.

As redes sociais são pulverizadoras de mentiras. Deveríamos combater isso. Muitos grupos na nossa sociedade não estão interessados na verdade ou no bem comum. No debate político o objetivo principal é um só: o poder. É óbvio que de posse do poder grupos políticos diferentes irão tomar decisões baseadas em programas políticos, ou declarações que fizeram na campanha eleitoral. Ficar de olho no que eles afirmam deveria ser a regra. Não deveríamos aceitar generalizações, que também são falsas, como “Todos mentem”, ou “Todos são iguais”, que só ajudam os mentirosos e os canalhas.

Outro fato que me assusta: por que as pessoas acreditam que há um programa nacional de doutrinação comunista nas escolas e que isso precisa ser combatido? Por que se acredita nessa tese, vindo ela de pessoas que acreditam em afirmações como: “Jesus andou sobre as águas”, “O PT quer instalar o comunismo no Brasil”, “Os homossexuais estão destruindo a família”, “Reduzir a maioridade penal traz mais segurança”? Ora, talvez porque eu já acredite em todas estas, porque eu não acreditaria naquela também?

A guerra persuasiva

Desde que a guerra é guerra, ela também se dá no plano ideológico. Nazistas, comunistas, norte-americanos, o regime militar brasileiro, a atual propaganda estatal (por que diabos o governo precisa fazer propaganda que não seja de utilidade pública? Coisas como campanhas de vacinas, alistamento militar etc. até entendo). Podem bombardear todo e qualquer vilarejo suspeito no Oriente Médio, essa guerra não pode ser vencida.

Não pode porque não se pode matar uma ideia. Hitler conseguiu mobilizar um povo em torno de uma ideia. Perdeu a guerra, mas a ideia não morreu. De tempos em tempos ela ressurge. Os alemães (ou os brancos em geral) são superiores a outras raças, destinados à grandeza, e o estrangeiro está no seu quintal para tirar dele o seu emprego, o seu dinheiro, a sua terra. É o mesmo discurso que os extremistas islâmicos usam: estão destinados à grandeza, são o povo escolhido por Deus, e o outro está lá para roubar as suas riquezas. Estou simplificando, mas acho que a ideia é essa.

Como é que esse discurso funciona? Propaganda. As imagens que nos chegam são de um bando de maltrapilhos no meio do deserto. Mas eles têm wi-fi, têm celular. Eles andam em Mitsubishis e Toyotas, falam em Iphones e S4s, conversam pelo Skype, pelo Facebook e pelo Twitter. Se duvidar suas armas são israelenses e americanas, justamente os povos que tratam como inimigos.

Vi há pouco um documentário na GloboNews. Uma jornalista se infiltra em grupos pró-estado islâmico no Facebook e entra em contato com eles como se fosse uma francesa convertida que quer se casar com um soldado. Eles a orientam a ir até a Turquia. Lá um contato a ajudaria a chegar até uma cidade Síria onde seu futuro marido estaria. A promessa é que ela teria luxos, ficaria segura em uma mansão onde as mulheres dos soldados moram. Na Turquia ela conhece uma jovem francesa (nascida na França de pais franceses) que fugiu de casa para se juntar ao Estado Islâmico. A idade da jovem: 15 anos. Isso mesmo. Ela tem 15 anos! É ingênua, está completamente iludida pelas promessas de luxo e vida boa. E se nada der certo, a jornalista pergunta: ainda posso virar uma mártir, a garota responde. 15 anos! E o pior. Ela fugiu com uma identidade falsa. Embarcou tranquilamente na França, passou tranquilamente pela alfândega na Turquia. Ninguém a parou, ninguém percebeu que a foto na sua identidade não era sua, era da sua irmã mais velha. Estava de burca, claro. Era só mais uma muçulmana saindo do país.

Discordo do Tulio Milman. A história mostra que o capitalista está pouco se lixando. O dono do banco não quer saber de onde vem o dinheiro. O fabricante de armas não se importa com o número de vítimas que elas produzem. O dono do Facebook se importa com uma foto de peitos, mas não se se criam grupos para espalhar preconceito e ódio, ou aliciar simpatizantes para qualquer causa obscura. Alguém financia a guerra. E quem a financia não está rasgando dinheiro.

O mesmo documentário mostra que a propaganda é superproduzida. Os vídeos são em HD. Neles soldados são retratados como heróis; as cidades, oásis de prosperidade. Além disso, crianças sorridentes, com fuzis empunhados, brincam nas ruas; e mulheres fazem as compras em feiras-livres com frutas e verduras frescas. Nada mais longe da realidade. Quem permanece nas cidades passa fome, é roubado, e praticamente toda atividade econômica individual é suprimida. Não há comércio, não há agricultura, não há serviços públicos. Mas o convertido não se importa, para ele a ilusão é mais importante que a realidade. Um francês, um belga ou um inglês tem acesso à informação, sabe o que acontece lá, pelo menos via noticiário. Por que escolhe acreditar na ilusão e no que diz o seu irmão de fé? Aliás, por que um cristão se converteria ao islã? Por que esses filhos de imigrantes, ou mesmo cidadãos de países europeus engrossam a lista do EI? Por que se voltam contra o seu país natal ou o país que acolheu seus pais? Propaganda. Pura e simples propaganda.

Memória do Campos é documentário que mostra alguns campos de concentração descobertos depois da derrota nazista. Muitos campos ficavam na região rural de cidades pequenas. Os habitantes dessas cidades sabiam o que acontecia lá, embora a maioria não testemunhasse. Quando americanos chegaram a essas cidades, obrigaram as pessoas a irem lá ver. Saber é uma coisa, testemunhar a olho nu é outra. Mesmo conscientes da maldade, parece que havia ainda um certo pudor. Com o EI é diferente. Eles têm orgulho da maldade, a espetacularizam (e o jornalismo internacional divulga essas imagens aos borbotões: não percebem que é isso que eles querem?). Hannah Arendt disse em algum lugar que o ser humano não é mal por natureza. Ela, Rousseau, e tantos outros que repetem essa ladainha, estavam errados. Todo ser humano é mau, basta que tenha oportunidade para mostrar isso (se não conhecem a história do experimento da prisão com estudantes universitários, vejam a palestra no TED, é bem convincente; ainda não se convenceu, leiam o Tábula Rasa do Steven Pinker). Por outro não é justamente o que os americanos fizeram após a invasão ao Iraque? Os soldados americanos não faziam piada com os prisioneiros? Não faziam filmagens humilhando os coitados? Nós, os civilizados? Não linchamos um ladrãozinho de galinha, filmamos e jogamos no Youtube? Não lincharam uma mulher em Santos no ano passado por conta de um boato de Facebook? (foi tudo filmado, não?) Não bateram em um guri até a morte há pouco tempo no interior do Rio Grande do Sul por conta de uma briga de boate por um motivo banal qualquer? Os conservadores não ficam xingando conhecidos políticos petistas em ambientes públicos simplesmente porque a narrativa construída é de que o PT é o partido mais corrupto do Brasil? Aposto que o Maluf nunca foi incomodado num jantar; muito menos Luis Estevão.

No final das contas, me parecer que o horror é só uma questão de perspectiva. Ou melhor, de propaganda. Assim como o ódio.

Dilma: craque ou perna-de-pau?

Um dos predicados da Dilma era não ser um político. Ao passo que sempre foi tida como boa administradora. Agora todos querem que ela faça política, lamba o saco de aliados, dê telefonemas pedindo desculpas ao Temer toda vez que ele ficar magoadinho por alguma coisa. Claro que adversários se apegarão a qualquer coisa para a criticarem. Seja sua dificuldade para falar em público de improviso ou sua falta de habilidade para lidar com o congresso e o senado. Ela não governa mais, dizem (quem diz tem autoridade para o dizer?). E em que sentido é esse “governar”? Fazer com que o congresso aprove tudo o que o planalto desejar? Sei não. De qualquer forma, se a comparação vale, pelo menos como ilustração: será que não contratamos um volante de contenção, enquanto o que se espera que ela faça é armar o time?

Liberdade, liberdade!

Eu tinha anotado umas ideias pra escrever sobre isso já há algum tempo e fui deixando, deixando… e vou escrever logo antes que a caravana passe, embora eu creia que vá demorar a passar. A Piauí desse mês me soa como um retrato da época em que vivemos, o esgotamento de um modelo de gestão política federal. Talvez a eleição passada fosse mesmo o momento da mudança, mas as alternativas soaram muito piores do que o que estava aí. De qualquer modo, vou falar disso de novo. Por que tem gente que quer voltar a ser governado por militares?

Eu tenho algumas respostas pra isso, hipóteses, digamos. Uma boa parcela da população mais velha tem boas lembranças do período. “Eles não conhecem a história? Não sabem o que acontecia nos porões do DOPS etc.”? Sabem. Claro que sabem. Devo ter dito isso no texto anterior, mas não custa repetir. Quem era preso? Comunistas, sindicalistas e outros arruaceiros. Tinham mais é que tomar bordoada mesmo. É isso o que pensam aqueles que querem a volta de um governo militar, pra colocar ordem nessa bagaça.

Ordem? Pois é. Aqui está a segunda razão. As Forças Armadas são encaradas como um bastião da moralidade: lá não há ladrões, todos são disciplinados e obedecem seus superiores, são organizações bem estruturadas… (clichês, óbvio; em parte verdade, certamente) em suma, não há ladroagem e putaria, coisa que o PT institucionalizou na coisa pública, dizem. Me soa como uma explicação quase psicanalítica. A sociedade não consegue se autoadministrar, precisamos de um irmão mais velho, alguém que nos coloque no lugar, que diga que não devemos sentar com as pernas abertas, tirar tatu do nariz, ou coçar o saco em público. Sinto que falhamos enquanto sociedade, enquanto democracia.

Nesse sentido, notem, a democracia tem a ver com aceitar coisas de que não gostamos. Num governo militar legalizar aborto, consumo de maconha ou casamento homossexual jamais entraria na pauta de discussão da sociedade e do congresso. É nisso também que se apegam. Os que pedem a volta de um regime militar se ancoram nesse passado glorioso onde a família tradicional estava livre disso tudo. Sabemos que não, óbvio. As coisas aconteciam escondido, e é melhor que permaneçam assim.

Podemos culpá-los por pedir isso, diante de tudo que temos visto? A economia viveu momentos gloriosos, o país crescia, tinha emprego, tinha escola (pra quem?), tinha vaga na universidade (pra quem?), a violência era baixa (era mesmo?) e os marginais presos (eram mesmo?).

A liberdade assusta algumas pessoas. Preferem a opressão, a polícia moral. Afinal, a liberdade gerou esse fuzuê todo. O pobre não sabe votar, é manipulado pela militância-lavadora-de-cérebro-propagandista do PT (livre-arbítrio, escolhas, oi?), num regime militar isso não aconteceria, afinal, não teria voto.

Ditadura? Como assim?

Alguns de nós se fizeram essa pergunta ao descobrir que algumas pessoas saíram às ruas ontem com cartazes em que se lia “intervenção militar já!”. Muita gente escreveu por aí: eles não conhecem a história? Não saberiam o que os militares fizeram durante o período em que governaram o país? Não sabem o que os ditadores fazem? Claro que eles sabem. Mas vou adotar um ponto de vista diferente aqui, me interessa entender por que é que mesmo assim há um grupo de indivíduos na nossa sociedade que prefere a perda da liberdade a ser governado por um governo do qual discorda.
Fazendo uma sociologia de fundo de quintal, eu diria que a política tem um quê de religião, no sentido em que as pessoas estão dispostas a acreditar em certos tipos de coisas, mesmo que as evidências as contradigam. Vejam-se os debates eleitorais, por exemplo. Não se está ali para avaliar o melhor candidato, por mais que nos digam que seja essa a sua função. Os candidatos estão muito mais preocupados em colocar o adversário em uma posição vexatória ou mostrar os seus defeitos; além, claro, de apresentarem suas propostas. Na letra fria, é um concurso de retórica.
Outro “argumento” nesse sentido. Por que o PT possui a fama de ser um partido corrupto quando não é o partido com mais membros envolvidos em casos de corrupção? Eu diria que isso se deve a uma perseguição incessante de certos veículos de comunicação. Uma denúncia de mal-feito toma uma dimensão espetacular se o político envolvido for do PT ou de alguém minimamente envolvido com o partido. Não estou defendendo os corruptos, apenas gostaria que a imprensa tratasse os políticos desonestos com a mesma medida. E além do mais, eles estão sendo processados, qual é a bronca, então?
Voltando à questão inicial, agora acho que posso arriscar uma resposta. As pessoas estão dispostas a abrir mão de sua liberdade porque acreditam que entre isso, e tirar do poder um governante que elas não aceitam, a primeira opção é melhor. Nossa ditadura recente foi civil-militar, embora apenas militares tenham sido presidentes. Os vinte e poucos anos sem eleições pra presidente só funcionaram pelo apoio civil. Ás vezes tenho a impressão que as pessoas falam do período como se os generais faziam o que bem entendiam e a sociedade assistia a tudo de braços cruzados com medo. Desculpa informar, mas tinha muita gente aplaudindo.
Além do mais, as pessoas que saíram às ruas ontem acreditam piamente que estão fazendo a coisa certa. Para elas não há uma segunda opção. Aceitar o resultado das eleições seria aceitar a derrota e compactuar com os escândalos de corrupção – na visão estreita de mundo dessas pessoas, quem votou em Dilma está sendo cúmplice da roubalheira. Não é nada disso. Tem a ver com representação, e isso vale para um bom grupo de pessoas. Arriscando uma estatística mequetrefe, eu diria que pelo menos uns 30% de cada lado jamais votaria do oposto, não importa o que acontecesse – uns 20% tendem a apelar para critérios mais racionais, e uns 20% não estão nem aí. Conservadores nunca votarão no PT, nem que o partido tivesse feito o governo mais honesto da história. Petistas jamais votarão num candidato de direita, nem que ele seja o candidato mais preparado e qualificado. Assim, se o sujeito diz que não vota no PT porque o governo é desonesto ele está apenas se enganando. Eu arriscaria a perguntar a essa pessoa por que ela não muda de religião, já que muitos padres são pedófilos, pastores abusam sexualmente de fiéis, mentem milagres, e descaradamente pedem dinheiro de pobres coitados enquanto moram em coberturas de luxo.
E justamente por pensarem estar fazendo a coisa certa, o fato de que em uma ditadura as liberdades sejam cerceadas, os opositores normalmente são presos ou calados, ou exilados, tudo isso é até justo. Afinal, quem apoia um regime desse tipo não tem com o que se preocupar, pois foi aquilo mesmo que ela pediu: a polícia tem mais é que descer o sarrafo nesses vagabundos.