Legislando sobre a língua

Na semana passada dei umas pinceladas sobre o ‘erro de português’. Claro que em função do espaço e dos objetivos do blogue não daria pra se aprofundar muito. Talvez cada uma das modalidades de erro mereça um post à parte, ou uma série de posts. Além do livro citado na semana passada (Norma Culta Brasileira, Carlos A. Faraco, Editora Contexto), existe também no mercado uma coletânea de artigos organizada por Marcos Bagno (Linguística da Norma, Editora Loyola), com vários textos de especialistas na área que discutem facetas do problema da norma culta brasileira em várias dimensões (política, pedagógica, ideológica, histórica, etc.). Se você ainda, por um acaso, acreditar que esse é um problema só do português falado no Brasil, dá uma olhada no capítulo “language mavens” do Instinto da Linguagem de Steven Pinker. Lá verá que os americanos também possuem vários consultórios gramaticais em seus jornalões. No post de hoje quero argumentar que os legisladores são mais realistas que o rei. Com isso quero dizer que os consultores gramaticais e os metidos que ficam por aí dando dicas de como escrever correto tomam “recomendação” por “obrigação” e não conseguem admitir a existência de duas formas de uso de uma mesma expressão linguística. Vamos a alguns exemplos. Vou seguir mais ou menos o que o Faraco faz no seu livro pra ilustrar alguns casos simples.

“Presidenta”. Suponha que um biólogo misture os genes de um limão com alguma outra coisa e dali saia um limão doce. Ele planta a dita árvore e a partir daí a árvore passa a dar limõezinhos doces. Alguém cético dirá que não existem limões doces e que isso só pode ser uma aberração. A palavra ‘presidenta’ sofre do mesmo mal. Para fazer o feminino da maioria das palavras que variam em gênero temos o sufixo –a, que é adicionado no final das palavras. Se algum falante criou a palavra, claro que ela existe. Mesmo que ainda não esteja presente em algum dicionário. As línguas são sistemas naturais, e é inevitável que elas se adaptem às necessidades comunicativas dos seus falantes. Daí que novas palavras surgem ou palavras velhas adquirem novos significados. O ABC da língua culta de Celso Luft admite ‘presidenta’. Qual é o problema então? (Até o Pasquale Cipro Neto aceita!) O problema é sociológico: mulheres não ocupam, costumeiramente, cargos de presidente, logo, é normal que se estranhe uma palavra nova; Se os bons dicionários, como o Aurélio já registram a forma (mesmo antes da eleição presidencial passada), a explicação pra ojeriza em torno da palavra só pode estar no plano ideológico. Tinha até mesmo um texto condenando a forma. Só que o texto era atribuído a uma professora universitária da engenharia civil, que assumiu publicamente nunca ter escrito o artigo. Claro que esse tipo de coisa só aparece no anonimato, vai ver a pessoa tinha consciência da besteira que disse (Menos o Mainardi, Reinaldo Azevedo e alguns repórteres da Veja que não tem vergonha de assinar o que escrevem). Sempre surgem aquelas explicações de que “presidente” é particípio ativo do verbo presidir, e que portanto não deveria ser flexionado no feminino. Agora eu pergunto, é assim mesmo? Será que ainda existe na gramática do português (aquela que está na mente do falante e que qualquer criança de 5 anos domina perfeitamente) essa flexão verbal? Duvido muito. Pra ser ter uma ideia da mentalidade das pessoas que criticam a forma “presidenta”, chequem esse linque. Obviamente é um blogue escrito por algum babaca que não consegue mulher nenhuma, se fosse um homem responsável e assumisse as coisas que diz colocaria sua foto e identidades reais ali.

Imagem ilustrativa

A regência de alguns verbos. “Você já assistiu o novo episódio de House?” Essa é uma frase certamente corriqueira. Garanto que 90% da população brasileira hoje usa o verbo “assistir” como transitivo direto (TD), não como transitivo indireto (TI) “assistir a”. O Aurélio dá um sentido diferente para cada uso. O uso TI significa ‘ver, acompanhar visualmente’, e o uso TD significa ‘auxiliar, socorrer’, como em “Maria assistiu o doente.”. Só que no português contemporâneo não se usa mais o verbo ‘assistir’ com o segundo sentido, mesmo nas altas literaturas e nos salões da corte. O uso comum é como TD significando ‘ver, acompanhar visualmente’. Acontece que alguns dicionários ainda não se atualizaram nesse sentido e é normal que a imprensa seja conservadora e utilize a forma arcaica. Daqui algum tempo vai estar institucionalizado, porque perder tempo com isso? Veja que ele é de fato um verbo TD, já que permite passivização, como em “O filme foi assistido pela família toda.”, enquanto verbos TI clássicos não permitem, “Eu simpatizo com o João.” Vs. “*O João é simpatizado por mim.” (o asterisco * marca impossibilidade de uma oração desse tipo ocorrer na língua). Veja que no fundo é uma questão de modalidade de uso. Na fala a forma TD já tomou conta, mas como a escrita é mais conservadora, ainda levará um tempo para ela ser institucionalizada nas gramáticas e pararem de azucrinar com isso. Veja o caso do verbo “obedecer”, que é parecido. Que mãe nesse país diz “Obedeça ao professor, meu filho.”? Não muitas, quiçá nenhuma. Só que olha o que diz o Aurélio sobre esse verbo: “ocorre, em bons autores, a forma transitiva direta; é melhor, entretanto, na linguagem culta formal usar a regência indireta.” O mesmo nos diz Luft no ABC. E agora leia o que diz o Manual de Redação e estilo d’O Estado de São Paulo: “exige sempre a preposição ‘a’.” Tanto para “assistir” quanto para “obedecer”. E mais, o mesmo manual diz que é errado usar a forma passiva do verbo “assistir” (eu inventei um limão doce, então?). Só que com “obedecer”, pasmem, a voz passiva tá liberada! Legal, né? Vai entender. O detalhe é que a recomendação dos dicionários vale para linguagem culta formal, novamente, o português dos salões, da academia, dos magistrados… não há razão para o usuário comum se preocupar com isso. Pergunta: Por que não tem acento grave (a popular crase) nas placas “Obedeça a sinalização”?

Resumindo essa ária da ópera. Não sei se convenci vocês do ponto: certo ou errado é relativo. Obedecer as regras ou às regras requer antes de tudo conhecimento de como a língua funciona. E ela funciona à serviço dos usuários. Portanto, seguir ou não uma regência tem a ver, primeiramente com a gramática que está na sua mente e que ninguém te ensinou. Essa gramática influi na forma como escrevemos e para escrever com a correção que a gramática escolar tradicional (que é só uma tentativa de descrição dessa gramática que existe na sua mente de falante do português) exige, é necessário muito treino e estudo. E um estudo que mostre justamente essa diferença entre o que se recomenda e o que se espera de um bom usuário da língua escrita. Quanto à “presidenta” isso depende de muita coisa, mas principalmente de a comunidade de fala adotar a palavra. Se isso acontecer em uma geração ou duas ela já não será mais estranha. De outra forma ela vai cair no esquecimento, e não há decreto que mude isso.