Notas de leitura: Esquinas

Meu amigo Caio Bona Moreira me enviou com sua mais recente obra, Esquinas (Micronotas, 2020), um conjunto de ensaios ou poemas em prosa sobre diferentes esquinas de Porto União e União da Vitória (duas cidades unidas, como seus nomes sugerem, mas separadas por um trilho de trem que secciona seus centros comerciais). Algumas são reais e icônicas (como a Av. Manoel Ribas com a av. João Gualberto) e outras são imaginadas (como as ruas Rimbaud e Jean Genet). É um pequeno “roteiro sentimental” das Gêmeas do Iguaçu.

Há uma expressão que me pegou logo nos primeiros textos, o ver. Caio é às vezes um voyer da cidade. É alguém que olha a esquina em alguns momentos de fora dela, e em outros, como no caso da Av. Cruz Machado/Av. Ipiranga, converte a própria esquina em testemunha:

“Daquela esquina, a antiga construção tudo viu e tudo sabe.” […] Ali, certa vez, concentrei meu olhar e contemplei emocionado um Aleph.” (p. 26)

Às vezes ele se coloca nela, como personagem também, e passa a relatar tudo que se passa, como se quisesse fotografar a vida que nela se expressa e que, ao transformar em palavra aquele acontecimento, o transforma em literatura (Av. Manoel Ribas/Carlos Cavalcanti):

“[…] paro entre a Manoel Ribas e a Carlos Cavalcanti e, numa tarde de janeiro, anoto o que vi.” (p. 67)

Não é apenas um documento ou uma tentativa de retratar o mundo (impossibilidade que está na própria origem da literatura: ela não é o mundo mas não há outro caminho pra ela senão cantar o mundo tal como o poeta o sente). Como Drummond, sua matéria é o tempo, mas não apenas o presente.

Há outra forma? Como não se contaminar pelo ambiente em que vivemos? Que pulsão (compulsão?) é essa que nos move a sentir a cidade pela palavra?

E eu diria que é isso o que Caio faz ao longo dos seus “cantos”. Ele é um poeta que canta a sua vila, e também a sente. E é essa sensação que quer nos passar (suas cores, suas vozes, seus personagens):

“Daí tantos jardins sempre bem cuidados de flores e ervas regados com terços, lágrimas, chimarrão, e novenas de Natal. O único macho a sobreviver ali é o de um casal de curucacas a zelar pela segurança da rua no alto de um pinheiro quase quadragenário, uma espécie de trono real, paranista ou para-raios.” (pág. 40, ruas Felipe Schmidt/Voluntários da Pátria)

E o que temos é uma pequena epopeia em prosa, algo bucólica, pois o trem (agora parado, apenas objeto decorativo, eventualmente reativado para passeios), os carros, ônibus, caminhões, motos e bicicletas passam bem pouco por essas esquinas, pois não interessa ao poeta o metal, a mecânica e o ruído. Da engenharia, interessa no máximo o ângulo de noventa graus, esse ponto de encontro de duas retas, mas que ao mesmo tempo que é encontro, permite que algo se esconda.

E ajudados pelo seu olhar, vemos e passeamos, por uma cidade que é a cidade da nossa infância e juventude, embora não seja mais também, pois se as esquinas ficam, os personagens que nelas agora passam já são outros (o bar da esquina da Manoel Ribas com a João Gualberto fechou faz poucos anos).

Para o leitor desavisado isso pode tirar o atrativo do livro. Mas não esqueçamos dos passeios que demos pela Nova Iorque de Henry Miller ou pelo Rio de Janeiro, levados pela prosa de Machado de Assis, João do Rio ou Rubem Fonseca. E também não esqueçamos de tudo aquilo que só vemos porque a literatura nos mostra.

p.s.: a qualidade das ilustrações de Raro de Oliveira podem ser admiradas já na capa do livro.

A Carpintaria de Autran Dourado

Eu não lembro quando comprei o “Uma poética do romance/Matéria de carpintaria” do Autran Dourado (Difel, 1976). Provavelmente há uns cinco anos atrás. Acho que foi o Caio quem me falou do livro, e do quanto ele gosta de ler poetas e prosadores falando do seu ofício.

Ser um comprador compulsivo de livros tem dessas coisas, de a gente comprar o livro e só ler algum tempo depois. Tem alguns que eu leio logo. Outros precisam esperar pacientes na estante. Já tentei ler duas vezes o Em Busca do Tempo Perdido do Proust, naquela coleção linda de clássicos que a Abril lançou ano passado. Acho que não estou ainda preparado para ler o livro. Com o livro do Autran o mesmo aconteceu. Já tinha tentado ler o livro umas duas vezes, e ele não tinha me pegado. Acontece que comecei a lê-lo faz umas duas semanas e entrei no dito cujo. Essas coisas sempre que dão a sensação de que há livros para os quais precisamos estar prontos para eles, não adianta forçar a barra.

Por vezes penso que perdi uns dez anos da minha vida pensando ser poeta, quando ramblando (rambling) pelos arquivos do computador reparei que nesses dez anos eu sempre escrevi muita prosa também, ao lado dos poemas que eu anotava em cadernos.  Mudei de apartamento na semana passada e encontrei um velho caderno de 2006. Lá me deparei com uma anotação: “O velho emudece após uma ameaça de derrame. Passa cinco anos sem falar. Quando está pela boa abre a boca e diz que fica tudo pra Jandira, a empregada.” Ri sozinho ao ler isso. Por que eu nunca escrevi esse conto?

Por que eu não sabia escrever, esse era o problema. Depois de ter lido o “Da redação à produção textual” do Paulo Guedes, que me abriu os olhos para um bocado de coisas, como a concretude, o mostrar e não contar (o que ele chama de objetividade), e o questionamento: todo texto precisa ser uma espécie de resposta a uma questão, que não precisa estar necessariamente explícita no texto. O exemplo clássico é o Missa do Galo, do Machado de Assis, que começa fabulosamente: “Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos…” E daí por diante o conto todo é o narrador tentando entender isso. Genial, claro. Ou como a Terceira margem do rio, do Guimarães Rosa, o problema todo surge quando o pai do narrador resolve construir uma canoa, se enfia nela e passa a viver lá no meio do rio ancorado.

Voltando ao livro Autran. O principal problema dele é que pra entender o livro o cara tem que ter lido os livros do autor, senão não dá pra entender bulhufas do que ele diz. Eu não li nada dele, então… (já comprei o Risco do Bordado, que é analisado no capítulo ‘Planta baixa de um livro’, mas ainda não li). Assim, os ensaios de que mais gostei foram o ‘Personagem, composição, estrutura’, onde ele reclama que os críticos parecem não entender nada de personagem, exceção feita a Antônio Cândido, segundo ele o único que parece entender que o personagem na ficção não é e nem tem que ser de carne e osso, o requisito básico é ser coerente com a narrativa, já que a ficção não tem pretensão de ser análise antropológica ou sociológica, segundo ele. ‘Um depoimento pessoal’ também pode ser lido tranquilamente. No texto ele faz uma espécie de análise da sua trajetória literária e o que envolve a criação. O texto começa com uma reflexão entre ser o que ele chama de ‘um bom prosador’ e ser ‘escritor de romances’. O risco todo que se corre é o desejo ou audácia de se querer escrever bem, enquanto ainda o sujeito é incapaz de escrever um romance. Para ele Jorge Amado era um grande romancista, mas não era um bom prosador. Isso me lembrou de algo que o Assis Brasil comentou em uma das aulas: o problema de quem escreve é querer fazer literatura. E é nisso que tenho pensado ultimamente, muito mais em conseguir deixar de pé uma história, com personagens e enredo envolventes do que fazer floreios com a linguagem. Não dá pra querer ser um Picasso se o cara não consegue nem pintar uma paisagem direito, né?

A segunda parte do livro, o Matéria de Carpintaria, envolve uma séria de aulas de ele deu na PUC-RJ como escritor residente em 1974. As aulas todas versam sobre a feitura dos seus livros. O interessante é que ele relaciona as obras com a mitologia grega e principalmente nos conta como bolava o nome dos personagens pensando em significados míticos associados a esses nomes. Batizar um personagem de ‘Maria’, para ele, nunca é algo sem significado. Como disse, não li os seus livros, portanto essa parte do livro só serviu para despertar em mim o desejo de os ler, bem como me deu uma ideia bem interessante de como pensar os nomes dos personagens. Aliás, no Apêndice há um texto chamado ‘O personagem como metáfora’ e outro, que eu achei bastante bom também em que ele discute a questão da língua portuguesa e do problema todo de tomarmos o nosso padrão culto lá no século XIX tendo como base o padrão culto português (não lembro de a literatura linguística citar esse texto).

Provavelmente terei que ler a obra do Autran para poder voltar ao livro e saboreá-lo e apreciá-lo devidamente, mas isso vai demorar um pouco. Outro ponto negativo que vejo no livro é a pouca reflexão sobre a construção dos enredos, algo que eu esperava encontrar, embora todas as referências à mitologia e ao teatro clássicos sejam uma pista nesse sentido. A profusão de dramas humanos que a mitologia grega encerra é uma fonte inesgotável de temas e situações (Nelson Rodrigues que o diga).