Tchau, plural!

Como é que um plural morre? O Leandro Karnal afirmou no Roda Viva nessa segunda-feira que o plural vai desaparecer. Volta e meia algum gramático ou gramatiqueiro desavisado afirma a mesma lorota, pintada com tintas de erudição, como se fosse um profeta anunciando a chegada do desastre. Na verdade a pergunta poderia ser mais ampla: é possível uma língua perder uma categoria gramatical?

A pergunta geral é difícil de responder, mas o que a história das línguas nos mostra é que perder uma propriedade gramatical acarreta, normalmente, que a tarefa exercida por um elemento seja tomada por outro. Um exemplo. Tem pesquisador brasileiro afirmando que o enfraquecimento da concordância verbal está obrigando que pronunciemos o sujeito. Antes tínhamos uma forma verbal para cada pessoa gramatical (eu sou, tu és, ele é, nós somos, vós sois, eles são). Agora o quadro é outro (eu sou, tu/você/ele/a gente é, nós somos, eles são). Reparem que de seis formas o paradigma se reduziu a quatro, pelo menos no português brasileiro culto falado pela população urbana escolarizada*. Qualquer gramática brasileira honesta vai mostrar isso. A conclusão: como antes o verbo permitia identificar o sujeito gramatical, dava pra ocultá-lo, mas como agora não é mais possível, o jeito é expressar o sujeito lexicalmente.

Quando se fala que o plural está desaparecendo, eu acredito que o camarada tem em mente a regra padrão de formação do plural no sintagma nominal (cf. os meninos espertos) em contraste com o plural coloquial (cf. os menino esperto)**. Em um post de meses atrás eu comparei as duas regras como se fossem hipóteses sobre o funcionamento da expressão gramatical do plural no português do Brasil. Olhando para o fenômeno, é fácil perceber que o plural não está sumindo (nenhum linguista diria isso). A língua continua tendo disponível a expressão semântica do número plural, isto é, quero fazer referência a um conjunto de entidades no mundo e a cardinalidade desse conjunto é maior do que 1, ou é maior ou igual a dois (supondo que seja isso que o plural signifique, em termos simplistas). A diferença é que na variedade padrão o plural é marcado morficamente em todos os elementos do sintagma, isto é, em todos os elementos ligados estruturalmente ao substantivo eu vou ter um pedaço desse elemento que vai me dizer, ei, eu estou no plural (os meninos espertos), já na variedade coloquial basta que eu tenha o plural morfológico no primeiro elemento do sintagma, que nenhum falante vai interpretar que os menino esperto designa um e apenas um menino, que é o que o singular definido refere, cf. O menino esperto comeu o brigadeiro antes da gente cantar o parabéns.

Dizer que uma variedade é inexpressiva ou incapaz de sutilezas gramaticais que a outra é capaz (como os gramáticos normalmente afirmam, sem demonstrar, vocês estão ligados, né?) é de uma canalhice e desonestidade intelectual digna de banimento pra Sibéria. A categoria do número está ali, tanto numa variedade quanto na outra. As duas descrevem o mesmo estado de coisas no mundo, isto é, uma frase como Os meninos espertos comeram todos os brigadeiros expressa o mesmo, ou, é verdade exatamente na mesma situação em que Os menino esperto comero os brigadeiro tudo é. Claro, o fato de uma ser a correta e a outra errada tem a ver com fatores históricos, culturais e ideológicos, não linguísticos. Uma é a correta por que é usando ela que se escreveu os Lusíadas, o Viagens da Minha Terra, o Primo Basílio, o Quincas Borba, a Constituição da República, e assim por diante. Tem a ver com o valor que a sociedade dá praquela forma gramatical, não com a sua capacidade maior ou menor de expressar a noção gramatical de plural.

Isso qualquer gramático sabe (mas não conta). Mas isso seria admitir que mesmo variedades não-padrão também são aptas para a expressão cultural e intelectual, o que daí já é avacalhação, né? Dizer que dá pra fazer filosofia e literatura com português de pobre é um negócio que eles não concebem.

*Notem que com verbos regulares e em algumas classes sociais esse paradigma flexional pode se reduzir ainda mais: eu falo, tu/você/ele/a gente/nós/eles fala.

** Tá, o sociolinguista aí mais bem informado que eu pode estar dizendo “plural coloquial” não é a melhor forma de caracterizar o fenômeno. Tá, não é, mas fiquemos com essa denominação para os fins desse texto.

* * *

Nota final. O Karnal também prevê a morte do subjuntivo e da subordinação. A mesma coisa. Uma língua sem subjuntivo seria uma língua sem capacidade de expressar hipótese. Se a língua já tem essa capacidade, porque deixaria de ter? E, de modo geral, será que tem alguma língua humana por aí que fale apenas factualmente? Eu duvido.

Sobre a subordinação o Chomsky já mostrou pra gente que não existe língua humana sem algum tipo de subordinação (não dá pra ter função sintática sem subordinação) – tá, o D. Everett afirmou que o Pirahã seria uma língua sem subordinação, o que já foi contestado por um bocado de gente. Outra viagem na batata é acreditar que uma oração é mais complexa por ser subordinada em relação a outra coordenada.  Complexidade gramatical não indica complexidade cognitiva, ou seja, um pensamento não é mais complexo por ser expresso por uma coordenação, em relação ao mesmo pensamento expresso por uma sentença com subordinação interna. Claro que isso precisaria ser melhor explorado, mas vou parar por aqui, porque esse assunto daria outro texto.

Ah, e o fato de um sujeito inteligente como ele não saber isso só demonstra a incapacidade dos linguistas se fazerem ouvir pela sociedade. Ele desconhece o que seus colegas de universidade pensam e ensinam ali do outro lado da rua.